Mia Couto retoma sua trilogia sobre a memória
Em: 14/10/2016, às 20H13
Borboletas brilhantes tingiam de luz o rio durante a noite escura. “São as sombras da água”, diz um personagem do segundo livro da trilogia As Areias do Imperador, chamado justamente de Sombras da Água, em que o escritor moçambicano Mia Couto retoma a história de amor entre a jovem africana Imani e o sargento português Germano de Melo. A história se passa no fim do século 19, quando Moçambique está em guerra e o sul do país era governado por Ngungunyane, último líder do Estado de Gaza, o segundo maior império da África dirigido por um africano. Sobre a obra, Couto respondeu por e-mail às seguintes questões.
Sua escrita sempre é marcada pela poesia na prosa. Como funciona o efeito poético em uma obra polifônica como essa?
A poesia é um modo de abrir portas a essa multidão que foi sendo silenciada dentro de cada um de nós. Fomos perdendo o acesso a essa alteridade, mas a vida insiste em construir em cada um de nós uma identidade múltipla. O que quer dizer que o trabalho do escritor se cruza em duas direções aparentemente contraditórias: por um lado, é imperioso que ele encontre a sua própria voz (que deve ser única e singular). Por outro lado, essa voz deve dar vazão à multitude de vozes que moram dentro de nós. No meu caso, tenho o privilégio de ter nascido e viver em um país que é uma nação onde vivem muitas nações. Todas elas pedem para ser faladas, lembradas e cantadas. Em qualquer lugar do mundo, a obra de arte é sempre polifônica. Mas, no caso de Moçambique, essa pluralidade é uma marca claramente vincada.
O colonizador português é mostrado de formas diferentes neste segundo volume, com Germano e Ayres de Ornelas. Por quê?
Pareceu-me que era preciso sublinhar que não existiu uma categoria chamada “o colonizador” ou “os portugueses”. Neste segundo volume, criei um diálogo entre dois militares para mostrar que, do lado do colonizador, ocorriam visões díspares e em conflito. E não apenas distintas visões, mas olhares particulares. Por razões da sua paixão por uma mulher negra e africana, o personagem do sargento vai-se afirmando como uma figura singular e em confronto com o seu mandato de militar europeu.
A captura de Ngungunyane significa a fragilidade de um povo?
Foi uma vitória colonial e uma derrota para a soberania dos africanos. Mas, uma vez mais, esse imperador africano que tanto perturbava o domínio português era um peso fatal para algumas das etnias que ele subjugava. Existiam diversas fragilidades que aqui se conjugam: a de diferentes Áfricas, mas também ironicamente a dos próprios portugueses que derrotaram militarmente esse poderia militar que lhe fazia frente no sul de Moçambique. Mas eram vencedores com vitória hipotecada. Porque era uma vitória apressada, sujeita a uma enorme encenação midiática, para que os ingleses vissem que Portugal merecia um fatia desse apetitoso bolo que era o território africano.
A trilogia trata de uma figura que foi mitificada tanto pelos portugueses como pelos africanos. Como descrever essa figura sem privilegiar um dos lados?
Tive que contrariar a facilidade de ir buscar inspiração apenas nos documentos escritos, que foram todos eles deixados pelos portugueses. Visitei profusamente os territórios de Inhambane e Gaza, no sul de Moçambique, para recolher depoimentos orais que preservam a lembrança desse conturbado período. No ano passado, passei três semanas na ilha dos Açores, lugar onde foi exilado e acabou por morrer o imperador e três dignitários da sua corte. Ali, nessas terras lusas, esses quatro africanos penaram, mas também amaram e fizeram filhos. Hoje, há descendentes desses africanos em território português, gente mestiça, mas de nacionalidade portuguesa.
Nós somos muito aquilo que já fomos, você disse certa vez. Como saber disso a partir de versões provavelmente distorcidas?
As versões do passado não têm sempre que ser interrogadas do ponto de vista da veracidade. Quase sempre elas são reinventadas. Sucede o mesmo quando revisitamos um sonho. O seu relato nunca é fiel. Porque o relato de um sonho pedia um idioma inventado. A única solução é aceitarmos que cada um de nós somos muitos. E somos assim múltiplos no presente porque, no passado, fomos sempre vários. O poeta moçambicano dizia: eu não sou dividido; sou repartido.