Mia Couto: Antes de Nascer o Mundo
Em: 11/01/2011, às 20H49
O escritor moçambicano Mia Couto é um homem simples, nada afeito a rotina de um escritor profissional - e nem quer ter esse estilo. Gosta de ter outro tipo de relação com as pessoas, realizar trabalhos em equipe, trocando experiências e informações. Por isso faz questão de manter como ganha pão sua atividade como biólogo – foi até neste exercício que encontrou inspiração para desenvolver seu último trabalho Antes de nascer o mundo (ou simplesmente Jesusalém, adotado em Portugal, por exemplo – Mia deu os dois títulos como opção para suas editoras). Na conversa que teve com o público, que lotou o teatro Eva Herz – para minha surpresa já que não trata-se de um nome “pop” da literatura universal - ele deixou um recado interessante quando foi questionado sobre como divide o seu tempo para conseguir publicar obras. Ele disse: “o importante na escrita não é os termos técnicos que nós temos, mas sim o tempo para estarmos com os personagens, o tempo pra nós próprios sermos um dos personagens que criamos. É isso que me obriga a ser cada vez mais um escritor insone”. Mia diz acordar entre três e quatro da manhã, assombrado pela histórias e pelos personagens dentro de si. Esquece as horas e se põe a escrever. Taí um exemplo de que falta de tempo não é motivo para deixar de produzir literatura. Aqui segue um trecho do que é o livro e o que a obra representa para o escritor. Depois do jump peguei mais trechos das respostas que ele deu a perguntas feitas pela sua editora no Brasil. Veja também aqui a entrevista que fizemos com Mia na edição de fevereiro da Revista da Cultura.
inspiração
“A condição desta família é inventada. Mas em meu trabalho como biólogo pelo interior de moçambique conheço muitas famílias. E recentemente em uma viagem a um deserto conheci uma que vivia tão isolada do mundo que parecia a reencarnação daquilo que havia imaginado. Mas depois de estar lá, conhecer o espírito do lugar, percebi a rede que no mundo não permite que se construa uma lugar totalmente como ilha. Sim, existem povoados, existem pequenas aldeias que me inspiraram a criar essa condição, que é uma condição delirante, de não querer apenas esquecer-se do mundo como do próprio passado, por razões que no final da história ele vê que eram equivocadas”.
Guerra
“A guerra [civil moçambicana] ajudou a fragmentar uma sociedade que foi muito criada através das redes de trocas, redes de ajuda. Mas a guerra não explica tudo. Comentei com algumas pessoas da editora como fiquei marcado pelo encontro com a família do interior de Moçambique porque de repente há um velho que é o chefe desta família, um caçador. Ele é convocado sempre quando é necessário matar um animal. E ele tem uma ligação com o espirito dos animais. E esse homem me marcou porque numa certa manhã ele me guiou por atalhos que apenas ele conhecia para chegar em um lugar chamado gruta, que é onde as hienas nasciam. E mais tarde, a noite – e estou resumindo a história ao máximo – quando eu pedi para que ele me levasse num lugar ele disse: “Eu não posso pois sou cego, eu não vejo”. Fiquei surpreso porque ele havia me conduzido por atalhos e me mostrado coisas que só era possível se a pessoa enxergasse. E ele respondeu que não via com os olhos dele, mas sim através dos olhos de outro alguém. E há semelhança com a minha história que notei quando o livro já havia chegado em minhas mãos. O narrador dessa história confessa ao irmão que tem a mesma doença do pai: “eu só vejo sombras”; e o irmão pergunta como ele escreveu isto, que é a sua própria história. E ele responde: “eu só vejo quando escrevo”.
A mulher
“Nessa história todos os personagens são homens. E que se retiraram do mundo por causa de uma mulher e é exatamente uma mulher que acabará fazendo retornar ao mundo. É um circulo que se fecha por uma mão feminina. Mas mesmo enquanto a história está dominada por personagens masculino escolhi como epígrafe para os capítulos o texto de autoras. É uma tentativa de estabelecer diálogo entre o lado masculino e o feminino, mas não sei se alguém sabe o que é esse lado masculino e o lado feminino da humanidade – não que eu esteja confuso quanto a identificação dos sexos não é isso – mas eu mesmo não sei onde está a fronteira destes lados. De qualquer maneira, acho que as mulheres nas minhas histórias ocupam sempre esse lugar central, de organizadoras daquilo que seria o tempo, responsáveis por entregar as gerações próximas a promessa do que seria uma outra vida. E creio que não tenho isso apenas como uma obsessão literária, mas sim como uma obsessão profunda. Não presto uma homenagem as mulheres por conta de simpatia, mas porque acho que elas ocupam uma papel central em todos os aspectos. São elas que transportam literalmente o mundo nas costas”
Guimarães Rosa
O livro de Mia tem proximidade com o conto A terceira margem do Rio, publicado no livro Primeiras estórias, que trata de um homem que se isola também do mundo navegando rio abaixo.
Não pensei no conto. Mas tenho que dizer que esse conto me marcou muito.