Mergulhando nas lembranças de Cavour

Elmar Carvalho

Passei boa parte da manhã deste domingo a folhear, mui lentamente, o livro-álbum da autoria de Raimundo Nonato Caldas (Nonato Cavour), referente às décadas de 1940/1960. Li e reli, salteadamente, vários trechos e legendas. Me concentrei nas fotos de carros, pessoas, prédios, praças e paisagens. Em decorrência, tomei a deliberação de lhe fazer este comentário, em formato de crônica, algo memorialística, para lhe dar mais leveza e melhor condimento, assim espero, e em que desejo fazer intertextualizações contrapontísticas com versos de minha própria autoria.

Tendo chegado a Parnaíba, para morar com meus pais e irmãos, em junho de 1975, posso dizer que tive o privilégio de conhecer a Praça da Graça em seu belo desenho antigo, sem a reforma que a descaracterizou, e que despojou o parnaibano de boa parte de sua memória visual e afetiva, talvez a lembrança da primeira namorada, as recordações da infância e da adolescência no velho e lindo logradouro, no qual residi por muitos anos. Vi a pérgula, o tanque com os peixes e a tartaruga, o antigo coreto, e o elegante traçado dos passeios e jardins, ornados pelos postes de ferro, quase esculpidos, encimados por luminárias em forma de globo. Nela vicejavam orgulhosas e imperiais palmeiras. Já ali pontificava o Louro e a sua Banca de Revista.

Acompanhei a destruição da praça e a colocação dos tapumes, designados pelo povo como sendo o “muro da vergonha”, porque lhe escondia os escombros. Acompanhei sua demorada e problemática reconstrução. O jornal Inovação se insurgiu contra essa reforma e em seus números mensais destilava suas ferinas catilinárias contra os seus promotores e mentores. Em memorável noite a população, sobretudo estudantes, derrubaram e empilharam os tapumes e lhes atearam fogo. Como eu morava na praça, peguei uma motocicleta ou bicicleta, já não me lembro, e fui chamar o Reginaldo Costa e o B. Silva, “inovadores” que moravam na rua Vera Cruz. No dia seguinte houve um verdadeiro carnaval extemporâneo, com passeata de carros e muito buzinaço e foguetório. O Inovação lançou uma edição especial, comemorativa, na qual foi publicado meu poema Balada da Praça da (Des)Graça.

Numa fúria ao mesmo tempo

diabólica e divina,

o povo cheio de uma

dor bem sentida e tristonha

destrói o “Muro da Vergonha”.

Ao folhear o livro do Cavour, fiz uma grande viagem no tempo e no espaço, sem necessidade de parafernálias tecnológicas, com a vantagem adicional de sentir as mesmas emoções saudosistas da época em que vi esses prédios, esses carros antigos pela primeira vez. Vendo a fotografia do depósito imponente da firma Pedro Machado, na beira do Igaraçu, recordei as vezes em que por ali passava em minha motocicleta, simplesmente a passeio, para contemplar os barcos, grandes gaiolas ou chalanas, o rio e as altas chaminés, ou em demanda do Bar do Augusto, o Recanto da Saudade, para tomar uns bons goles de cerveja, enquanto ouvia as lindas músicas extraídas de um bom e velho vinil, cujo discreto chiado ainda ouço em minha memória e numa vitrola retrô que adquiri, para essa finalidade. As grandes chalanas ali já não aportam e o Augusto ficou encantado, numa outra e melhor dimensão do espaço-tempo.

Onde, agora, o Augusto?

Onde, agora, a vitrola, a música e o bar?

Como nos versos sublimes de Bandeira,

 

ficaram de pé, suspensos no ar. . .

Encantados no destempo de um tempo

sem passado, sem futuro, sem presente.

A velha maria fumaça, negra, enfumaçada, fuliginosa, que ainda alcancei em plena atividade, é uma espécie de símbolo de um tempo épico, de muito esforço e trabalho, quando a Parnaíba empresarial e industrial era a mais pujante e imponente cidade do estado, com seus grandes e suntuosos solares, palacetes e sobrados. A construção da estrada de ferro e do canal São José, que engrossou as águas do Igaraçu, para melhorar a sua navegabilidade (que ainda presenciei, no início de sua decadência, quando o extrativismo econômico iniciou a sua derrocada final), foram dois marcos do notável empreendedorismo parnaibano.

E a água do Igaraçu

é uma lágrima de saudade

                                                 (ou sal’dade?)

do fastígio de outrora.

Os parcos barcos são

poemas de chegadas e partidas

e símbolos da decadência.

Nessa época eu ouvia o apito da Moraes S. A., que ainda fabricava os seus produtos, como o óleo de babaçu, hoje considerado vilão alimentício, e o sabonete de glicerina. Um penacho de fumaça ainda ornava sua enorme chaminé, símbolo de seu fastígio. Muitos anos depois, em meados de 80, esse apito melodioso enchia as tardes ensolaradas, e eu me comovia, e voltava para o tempo do final de meu adolescer, em que as emoções se atropelavam em meu peito. O meu romance Histórias de Évora, publicado em 2017, tem como pano de fundo o final dessa época áurea, tempo de orgulho, riqueza e trabalho.

Uma da tarde. O apito da Moraes

estridula no ar. Emocionado

sinto como se o tempo houvesse parado

e eu me encontrasse ainda

preso às âncoras do passado.

Folheando e fruindo essas páginas de “Mergulho nas lembranças da minha ‘Parnaibinha’ – anos 40/60”, revi muitos amigos e conhecidos. Alguns já ocupam lugar de destaque no panteão de meu peito, e deles sinto saudade; uma espécie de saudade alegre, pela satisfação de tê-los conhecido, de lhes ter desfrutado a companhia e uma boa conversa. Claro está que não conheci todos; mas conheci boa parte deles. Muitos desses personagens, assim como outros não referidos, foram objeto de alguma crônica minha, enquanto outros foram estampados em meus PoeMitos da Parnaíba, entre os quais Pacamão (sr. Pereira), Maria das Cabras, Luse e o velho Marechal de mar e guerra, enquanto outros aparecem disfarçados ou dissimulados nas minhas Histórias de Évora.

Maluco, se dizia alta

autoridade do planalto.

(...)

Davam-lhe plaquetas e selos

e pequenas chapas de metal:

eram as condecorações e os

distintivos com os quais desfilava

entre continências de

risos e zombarias.

Muitos foram meus professores no curso de Administração de Empresas, no Campus Ministro Reis Velloso. Muitos são de minha maior estima e admiração, como o Canindé Correia, Alcenor Candeira Filho e Dr. Lauro Correia, que foi meu diretor e professor no CMRV – UFPI. No primeiro ano, quando eu ainda não tinha motocicleta, esperava o ônibus escolar na escadaria do pátio da igreja de São Sebastião, que ainda não era gradeado. Os monsenhores Antônio Sampaio e Roberto Lopes ainda estão vivos em minha saudade. O primeiro foi meu professor na faculdade e meu antecessor nas Academias Piauiense e Parnaibana de Letras; o segundo, é o patrono de minha cadeira na APAL. Ó bons tempos em que ainda se podia conversar na calçada, sem risco de assaltos e sobressaltos.

memória:

lâmina de desassossego

cornucópia insana insaciável

a jorrar o passado

que não morre nunca

sempre ressuscitado

no eterno regresso

a nós mesmos.

No capítulo Minhas Contemporâneas faz referência às belas garotas, que ornaram a Parnaíba de sua adolescência e juventude. Muitas não conheci, porque foram morar em outras paragens. Contudo, lhes conheci a beleza e a simpatia, através das fotos e das descrições que Nonato Cavour lhes faz no seu notável livro. Posso dizer que, na segunda metade da década de 70, na Praça da Graça e na Praça Santo Antônio, desfilavam as mais lindas moças em flor do Piauí, para dar uma conotação proustiana a esta crônica evocativa.

Parnaíba sempre foi referta de belas mulheres, de verdadeiras rainhas da beleza, de sinuosas curvas, miragens e viagens, tendo legado ao Piauí muitas misses. À tarde, uma bela da tarde, ou uma belle de jour, numa tarde azul, de um domingo azul qualquer, como na música de Alceu Valença, passeava sua beleza soberba por entre os   soberbos oitis da Santo Antônio. Após, a bela da tarde ia degustar, sem pressa, um sorvete de murici ou bacuri, na sorveteria do amigo Araújo, que então já imperava nesse ramo de atividade.

Na tarde antiga

de sol e bruma

de luz e penumbra

as dunas mudaram

de cores e formas.

 

Os belos olhos esplendentes –

pálidas  cálidas opalas ou

esmeradas esmeriladas esmeraldas –

da mulher bonita

de sinuosas dunas e viagens

furta-cores furtaram

outros tons e sobretons.

Como observou o dramaturgo, poeta e escritor Benjamim Santos, que figura em negrito, itálico e neon no livro, com todo o destaque que lhe compete, uma segunda edição, talvez aumentada, com uma melhor revisão e diagramação, daria à obra uma maior beleza plástica, que ela bem merece. Ela há de permanecer em minha biblioteca, em lugar de realce e relevo, de onde eu posso retirá-la para novos e mais profundos mergulhos.

Para coroar esse belo e agradável passeio proporcionado por esse livro, também percorri os poemas e as fotografias de “Parnárias – poemas sobre Parnaíba”, livro-álbum editado pelo SESC-PI e organizado pelo grande poeta Alcenor Candeira Filho e por mim, e ilustrado pelas excelentes fotografias de Inácio, o velho Marinheiro, não de primeira, mas de inúmeras viagens, que também lhe fez, com Terceiro Matos, a programação visual. E me senti o velho garoto de outrora a percorrer as ruas de Parnaíba em minha moto uivante, com os meus cabelos, então vastos, bastos e encaracolados, farfalhando ao vento.

Ao ler e reler o livro de Nonato Caldas, posso dizer, como disse o poeta Luís Guimarães Júnior no soneto Visita à casa paterna, sobretudo agora que perdi minha mãe e meu pai: “... O pranto / Jorrou-me em ondas...  Resistir quem há-de? / Uma ilusão gemia em cada canto, / Chorava em cada canto uma saudade.” Apenas com a ressalva de substituir pranto por emoção.

ó emoções redivivas

e ampliadas

das sensações

de nervos expostos

nas carnes pulsantes

de um passado

                      sempre lembrado.