Elmar Carvalho

 
Devidamente convidado, para gáudio meu, fui ao lançamento do livro Memórias de Campo Maior, da autoria de Francisco da Silva Cardoso, meu conhecido há vários anos, de quem me tornei amigo e admirador. A obra foi patrocinada, organizada e prefaciada por Paulo Castello Branco Vasconcellos Filho, que ainda lhe fez a apresentação de lançamento. Contém belas ilustrações de Guimarães Júnior. O autor é parente próximo de três importantes amigos meus: Carlos Cardoso, José Ataíde e Otaviano Furtado do Vale. Os dois primeiros são irmãos sanguíneos, dos quais sou irmão maçônico. O lançamento “pegou carona” no aniversário de dona Lourdinha Brandão, mulher do escritor. Sentei-me à mesa em que estavam os amigos e professores Demerval Sousa e Sílvia Melo Sousa, com cujo casal entretive agradável e proveitosa conversa.


Posteriormente, sentou-se à nossa mesa o arquiteto Olavo Pereira da Silva Filho, parente do autor e dos três amigos referidos acima. Embora nascido em Teresina, passou parte da infância em Campo Maior, na fazenda Rocio, então situada nos arredores da cidade, mas que faz algumas décadas se constituiu em bairro da velha urbe. Na velha casa, salvo engano, nasceu o grande teatrólogo Francisco Pereira da Silva, um dos maiores do Brasil; uma de suas peças ficou em cartaz na Alemanha durante vários anos, o que demonstra o seu imenso valor. O poeta H. Dobal, em versos, disse haver tomado banho de leite em fazenda campomaiorense. Naturalmente, também deve ter bebido leite mungido, morno, gostoso, tirado na hora, no momento da ordenha.

Olavo é hoje uma das maiores autoridades a respeito do patrimônio arquitetônico do Piauí, já tendo escrito trabalhos sobre a construção das velhas casas de fazenda, e sobre a arquitetura urbana de Oeiras, Amarante, Parnaíba e Campo Maior. Segundo ele, apesar da destruição e mutilação de muitos prédios, o conjunto arquitetônico campomaiorense é ainda hoje um dos mais ricos do estado, sobretudo pelo fato de que muitas casas e solares, ao menos na parte interna, ainda conservam suas linhas e formas originais. Combinamos fazer algum evento em prol da conservação desses velhos edifícios. Talvez uma caminhada pelos velhos casarões e uma mesa redonda, com palestra, em que serão discutidos os impactos das novas construções sobre o entorno paisagístico dos vetustos prédios.

Francisco Cardoso, anteriormente ao Memórias de Campo Maior, já andou aprontando algumas “reinações”. Entre os seus sonhos mais caros e acalentados, tinha ele o desejo de descer de canoa o rio Surubim, de Altos a Campo Maior, e subir, à noite, a pequenina Serra Grande desse município, também conhecida como Azul ou de Santo Antônio, numa incursão que só findaria ao amanhecer. O rio, de poucas e rasas águas, ele o percorreu, ainda na juventude, flutuando sobre o tronco de uma carnaubeira, da Primavera até a ponte, como um Tarzan tupiniquim, realizando parcialmente o seu sonho de adolescência. Para a escalação noturna da serra, ele me convidou, já homem maduro, assim como a vários outros amigos e parentes. Era um verdadeiro programa de índio, para o qual não tive disposição física nem coragem, pelo que declinei da difícil empreitada. Mas ele encontrou seguidores, e a aventura foi realizada na íntegra. Contudo, para não ficar como uma molenga e medroso, devo dizer que já fui ao cume da serra, em outra ocasião, à luz do dia.

Porém, creio ter sido uma das maiores travessuras de Francisco Cardoso o fato de haver ele escrito o livro Memórias da Adolescência, em que narra episódios engraçados e surpreendentes de sua vida, mas ainda, além de outros fatos e costumes do cotidiano, consignando notas memorialísticas sobre figuras populares e folclóricas da velha urbe, no que elas tinham de mais pungente ou de mais engraçado. Nesse livro ele conta façanhas dessas pessoas, que nos emocionam, alegram ou nos enternecem, que nos podem arrancar lágrimas sentidas ou risos que nos fazem gargalhar, mesmo em solitária leitura. Na época, dispondo de mais tempo do que hoje, pude colaborar em sua organização e revisão, bem como apresentar sugestões, tendo algumas sido acatadas pelo escritor, mas sem interferência no estilo e na essência narrativa da obra.

Em Memórias de Campo Maior, o autor tece comentários descritivos e historiográficos sobre os seus mais antigos prédios e logradouros. Descreve usos, modas e costumes da época. Narra fatos que foram objeto de comentários em toda a cidade, mas que não foram registrados pelos historiadores, por não serem fatos relevantes da administração pública, e por não envolverem as figuras proeminentes do município, seja do setor político, seja da seara econômica. Todavia, foram acontecimentos importantes, uma vez que tiveram forte repercussão em toda a cidade, alimentando as conversas, as fofocas e o imaginário das pessoas mais simples. Alguns desses episódios foram crimes, motivados pela cobiça, pela paixão ou pela política atrasada e acirrada do período enfocado. O autor registra o nome das importantes firmas comerciais da época, em que imperavam os coronéis da carnaúba e da pecuária.

Discorre sobre a boêmia e sobre os velhos cabarés de antigamente. Enumera as pessoas simples, do povo, mas que eram conhecidas de todos, pela singularidade de suas personalidades ou pelos serviços que prestavam, como os carregadores de malas, os transportadores de água potável em “roladeiras” (barris ou tonéis, que eram rolados pelas ruas da cidade) e os locadores de bicicletas e velocípedes. Através de suas páginas podemos imaginar como era a vida, os costumes, as atividades profissionais, as diversões dessa época, que corria sem pressa e sem violência, ao contrário dos dias conturbados de hoje. Francisco Cardoso recolheu fatos que jamais iriam para os pomposos e pernósticos fastos da considerada grande história. Muitas vezes composta de pequeninos e enfatuados “grandes homens”.