Memorial de Aires ou o Elogio da velhice


 

Zemaria Pinto



Memorial de Aires, publicado em 1908, foi o último livro de Machado de Assis. Naquele mesmo ano, o mais festejado autor brasileiro viria a falecer.


Machado, que já zombara dos vivos através das memórias póstumas de Brás Cubas, parece, no Memorial de Aires, olhar o mundo com um sorriso terno, embora cético, irônico e pragmático.


O Conselheiro Aires, um diplomata aposentado, viúvo, vive sozinho, mas tem uma vida social razoavelmente intensa na pequena cidade do Rio de Janeiro do final do século passado. Entrado nos sessenta anos, sua única preocupação parece ser preparar-se com serenidade para o inevitável descanso final. Aires não sofre com isso. Pelo contrário: pelas anotações de seu diário, observamos uma personagem fria, seca, que, sem ser amarga, contempla o mundo com ironia, tomando como seu lema um verso do romântico Shelley: eu não posso dar o que os homens chamam amor.


Aires só se expressa pelo intelecto, jamais pela emoção. Sua faina diária é observar, comparar e analisar, com fino humor, o pequeno universo que o cerca.


O Memorial de Aires é composto pelas anotações, ao longo de dois anos, desse cotidiano doméstico. Se fôssemos extrair-lhe um enredo, poderíamos tomar como centro não a história do Conselheiro, que nada de interessante lhe acontece, mas sim a de um casal seu amigo, Aguiar e Carmo.


 

 

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Sem filhos, há muito tempo pegaram para criar um recém-nascido chamado Tristão, filho de uma amiga de D. Carmo. Tristão cresce e é tomado de volta por sua mãe, que o leva a morar em Portugal, deixando de dar notícias. Anos depois, o casal de velhos afeiçoa-se de Fidélia, uma jovem viúva a quem o pai renegara por não concordar com seu casamento. Fidélia torna-se, então, a nova filha do velho casal. A situação complica-se quando Tristão volta ao Brasil para uma breve estada com os padrinhos. Como não poderia deixar de ser, apaixona-se pela bela viúva Fidélia, herdeira de grande fortuna, retornando com ela para Portugal, onde seguirá carreira política. Os velhos Aguiar e Carmo, desolados, depois de conhecerem a felicidade junto aos dois filhos postiços, abandonam-se à sua solidão.


Aires conta essa história quase romântica com tintas pálidas, notas econômicas e uma linguagem despojada de ornamentos, como se a contasse a si mesmo, conversando com o papel em branco. Daí sua simplicidade e espontaneidade.


O Conselheiro Aires já fora personagem de destaque em Esaú e Jacó, o livro anterior de Machado de Assis, o que leva muitos críticos a ver no velho Conselheiro uma projeção do escritor. E talvez seja, pela estatura intelectual refinada e pelo humor tão próximos, além de outras similitudes como a viuvez e o fato de não ter filhos. D. Carmo, entretanto, o próprio Machado de Assis confessou-o a Mário de Alencar, é a sua esposa Carolina, morta quatro anos antes. D. Carmo é forte, bondosa e compreensiva, colocando o amor ao velho companheiro acima de tudo.


Alguém pode observar que a velhice é o ponto de convergência das frustrações humanas. É uma boa frase de efeito, menos para quem, como o Conselheiro Aires, ou como o velho Machado de Assis, souber envelhecer com a consciência de que este é um estágio inevitável, e que se deve chegar até ele vivendo-o plenamente nas suas limitações.


A terceira idade é tempo de novas descobertas, de novos prazeres, de novas paixões, o que é uma maneira de prolongar a vida: afinal, a morte não gosta de gente feliz.