Memória do Fandom
Por Miguel Carqueija Em: 08/10/2012, às 14H47
(Miguel Carqueija)
Uma vista de olhos por nossa ficção não-realista
No início dos anos 80 começaram a surgir espontaneamente, no Brasil, movimentos organizados de ficção científica. Autores, leitores, pesquisadores, colecionadores e editores deste gênero tão aliciante foram somando seus esforços, surgindo assim clubes, fanzines, reuniões de fãs. Chamou-se a isso a “Segunda Onda” da ficção científica brasileira (FCB), porque a primeira ocupara os anos 50, 60 e 70, esvaziando-se aos poucos, e fôra capitaneada pelo editor Gumercindo Rocha Dórea, que incentivou diversos escritores do nosso “mainstream” literário a enveredarem pelos caminhos da FC. Na hoje histórica “Coleção Ficção Científica GRD” alternaram-se nomes estrangeiros e brasileiros. Dentre os últimos alguns já produziam no gênero, como Jeronymo Monteiro; outros realizaram então as suas incursões. O primeiro livro brasileiro de FC da Editora GRD foi “Eles herdarão a Terra”, coletânea assinada pela muito conhecida Dinah Silveira de Queiroz. Saiu em seguida (1960) uma bela coletânea do crítico Fausto Cunha: “As noites marcianas”. Esses e outros livros então lançados hoje são raridades e mereciam ser reeditados.
GRD é um nome lendário na FCB. Hoje, octogenário, ainda edita algum livro de vez em quando. Para nós será sempre o grande incentivador. Naquela época, secundando a GRD, outra editora, a Edart, também lançou uma coleção especializada, a “Ciencificção”, onde, entre outros títulos, saiu a coletânea “Diário da nave perdida”, de André Carneiro — hoje nosso autor decano e ainda em atividade.
É bom lembrar que a Edart pertencia à maior gráfica do Brasil, a “Revista dos Tribunais” de Nelson Palma Travassos. Álvaro Malheiros e o conhecido poeta e crítico Mario da Silva Brito dirigiram a Edart. Quando Mario foi para o Rio de Janeiro dirigir a Civilização Brasileira, André Carneiro ocupou o seu lugar durante muitos anos.
Nos anos 80 a ficção científica brasileira reergueu-se através do trabalho de editores amadores e seus fanzines: Roberto Nascimento com o “Somnium” (do CLFC, o Clube de Leitores de Ficção Científica), Cesar Silva, José Carlos Neves e Mário Mastrotti com o “Hiperespaço”, Marcello Simão Branco com o “Megalon” e Ruby Felisbino Medeiros com “Notícias do fim do nada”; os três primeiros editados em São Paulo (o Hiperespaço em Santo André, não na capital paulista), o último em Porto Alegre. Houve outros, que não atingiram a mesma importância. Só bem mais tarde surgiu “Scarium”, no Rio de Janeiro, revista semiprofissional editada por Marco Bourguignon.
Embora o Hiperespaço seja mais antigo, e tenha durado mais tempo que todos, o último fanzine de papel a resistir — pelo menos no formato tradicional em tamanho ofício — acabou sendo o “Notícias do fim do nada” (NFN) do Dr. Ruby, médico homeopata gaúcho; ele manteve a publicação até 2009, quando a encerrou, já em idade avançada. O Dr. Ruby, a propósito, merece uma menção especial por ser, ao que consta, o maior colecionador brasileiro do gênero.
Hoje, que se multiplicam as antologias e livros individuais por editoras profissionais, em que os autores nacionais de ficção científica e literatura fantástica (pois terminamos por incluir no mesmo movimento o terror, a fantasia, o mistério, a história alternativa, o realismo fantástico) somam a centenas ou milhares em atividade, corremos o risco de perder a memória recente. A maior parte do fandom parece que não tem conhecimento da obra seminal e pioneira de Roberto Nascimento, hoje afastado por razões de saúde; e de Gumercindo Rocha Dórea, e de personalidades já falecidas como José Sanz, que traduziu e editou, e ajudou na organização do famoso simpósio de 1969 (cujo presidente foi André Carneiro, autor brasileiro tão categorizado que Van Vogt comparou-o a Kafka e Camus), que trouxe ao Rio de Janeiro nomes importantes como Poul Anderson, Arthur C. Clarke, A.E. Van Vogt e Robert Heinlein; como Walter Martins e Rubens Teixeira Scavone, escritores de talento que faleceram recentemente e bastante esquecidos. Vivos e em idade avançada temos os nossos decanos: André Carneiro, Gumercindo Rocha Dórea, Ruby Medeiros e R.F. Luchetti, este último um eclético autor da ficção de gênero, do terror à FC, passando pelo policial, e que consta ser (mas os brasileiros nem sabem disso) o recordista mundial em livros publicados, em grande parte sob pseudônimo.
NOTA: Ruby faleceu há aproximadamente dois anos, pouco tempo depois de redigido este artigo.