MEL, UMA CACHORRINHA
Por Elmar Carvalho Em: 07/07/2012, às 16H44
ELMAR CARVALHO
Quando fui morar, no início de abril de 2007, no condomínio Pingo d’Água, em Regeneração, cidade onde passei, em minha adolescência, alguns dias de férias, em companhia de meu amigo Otaviano, que nela morara alguns anos, juntamente com seu pai, João Capucho do Vale, com sua mãe, dona Consolação, e com seu irmão Augusto César, grande craque do futebol piauiense, logo me chamou a atenção a cadelinha Mel, cujo nome doce não se deve ao seu sabor, mas a sua graciosa cor. Sempre a via quentando sol, graciosamente deitada sobre um tapete, na porta do apartamento em que morava, na companhia de seus donos, o senhor Rodrigo e dona Antônia, dedicada professora de geografia e história, disciplinas de que sempre gostei, ao lado de literatura.
Minha aproximação com essa cachorrinha foi um tanto difícil, pois ela era muito ciosa de seu “pedaço”, de seu território. E eu tinha de invadi-lo, quando ia ao trabalho, ou quando voltava, em meus dois expedientes diários. Ela latia vigorosamente, quando eu passava. Felizmente, eram latidos apenas de advertência, uma vez que ela nunca tentou morder-me. Empenhei-me, então, em conquistar a sua amizade, procurando fazer-lhe alguns “agrados”, estalando os dedos e lhe dirigindo algumas palavras afetuosas. Aos poucos, ela deixou de latir e já me permitia ficar em sua proximidade, mas nunca cheguei ao ponto de lhe tocar e acariciar, como gostaria. Gradativamente, tornou-se amiga de minha pequena cadela Belinha, que é arredia, um tanto desconfiada, mas muito dócil e tímida.
Gostava de ver Mel, passeando e fazendo evoluções e piruetas no largo corredor de acesso ao condomínio. De longe ela me mirava, focando sua atenção ao levantar suas pequenas e pontiagudas orelhas, como se estivesse em guarda ou na defensiva, ante algum eventual e invisível perigo. Sua dona, a bem de sua saúde e também para lhe assegurar a descendência, providenciou o seu cruzamento com um de seus descendentes, talvez na intenção de obter algumas fidedignas cópias. Dessa providência advieram quatro filhotes, um dos quais nascido morto.
Dona Toinha providenciou-lhes uma espécie de ninho, em um cesto, no qual Mel dormia com os seus três rebentos. Era esmerada em seus cuidados de mãe, diligente em seus deveres maternos, inclusive quanto ao asseio e alimentação. Contaram-me que segurava, um a um, os filhotes em sua boca, para descê-los do cesto, a improvisada alcova ou ninho. Quando um dos filhotes punha as patinhas sobre a borda do cesto, insinuando querer entrar nele, Mel o segurava, suavemente, pelo pescoço e o punha no aconchegante reduto.
Entrei de férias e não mais tive notícias dessa família canina. No final delas, vim a Regeneração, numa viagem maçônica, oportunidade em que encontrei a dona da Mel, pois o seu marido é irmão maçônico. Perguntei pela cadelinha e suas crias, tendo ela me dito que estavam bem, com os filhotes ficando tão espertos quanto a mãe.
Retornei de minhas férias e logo ao chegar tive uma forte comoção, um verdadeiro choque emocional, ao saber que Mel havia morrido. Senti uma profunda tristeza e um grande vazio em meu coração. Dona Toinha contou-me como foi o desfecho da vida de Mel. Gostaria de ter o talento de Platão, ao contar a sublime e bela morte de Sócrates, para narrar como foi a morte dessa encantadora e valente cachorrinha. Dona Toinha saíra para visitar uma vizinha, do outro lado da rua. Uma pessoa, inadvertidamente, ao sair, não fechou o portão. Mel, sempre ativa e inquieta, e talvez saudosa de sua dona, atravessou a rua para encontrá-la.
Depois de fazer a “festa” de praxe, abanando o rabinho em cumprimento, começou a brincar na rua, correndo e volteando de um lado para outro, buliçosa que era. Latiu para uns cachorros grandes, e os pôs em fuga. Claro que a fuga devia ser simulada, uma brincadeira dos cães, para aumentar-lhe a auto-estima. Certamente Mel, em sua bravura sem arrogância, achava que os pusera para correr de verdade. Em suas evoluções na rua, verdadeiras coreografias caninas, expunha-se aos perigos do trânsito, em virtude da imprudência e brutalidade dos apressados pilotos e motoristas dos estressantes dias atuais.
De repente, num átimo, que não se mede e não se espera, uma motocicleta, em alucinante disparada, passa por cima da pequenina Mel. A mimosa cadelinha, inteiriçada de dor cruciante, contudo aparentemente perfeita, sem um ferimento sequer, talvez pensando nos filhotes, talvez no desespero de uma dor insuportável, ainda se ergueu, e caminhou em direção a sua casa, tentando atravessar a rua. Mas caiu em seguida. Ergueu-se novamente, em heróico esforço, em busca dos filhos. Tornou a cair, transida de dor, para outra vez se levantar. Tombou, ainda outra vez. E ainda outra vez se levantou, sabe Deus a que custo e a quanto sofrimento.
Porém não resistiu, e, logo nos primeiros passos, voltou a cair para não mais se levantar. Sua dona a ergueu, traspassadas, ambas, de intensa dor; a cadelinha, creio, com dores físicas e sentimentais, pensando nos filhotes, que deixaria para sempre, e a sua dona possuída por forte comoção e tristeza. Levou-a, com muito cuidado e carinho, para o apartamento, em que Mel ainda resistiu por alguns minutos, para depois exalar o seu último suspiro, cercada pelos seus rebentos.
Dois filhotes se encontram, hoje, com parentes da professora Toinha. Cresceram em graciosidade e em esperteza. Todo dia, no Pingo d’ Água, vejo Juquinha, negro como noite sem luar, negro como asa de graúna, para fazer poética intertextualização. Embora negro, como luzidio e ambulante carvão, é uma cópia autêntica de sua mãe. Ao vê-lo, sinto uma grande saudade da Mel, bela e brava cadelinha, que tanto admirei, e que tanto me encantou em sua beleza sem vaidade, em sua bravura sem insolência, como disse o bardo Lord Byron, no epitáfio de seu cão.