Mariana-MG: o tempo se cuida em guardar

Dílson Lages Monteiro - editor de Entretextos

Para onde vão as lembranças quando o tempo não se cuida de guardar? Acaso se escondem em alguma voz solitária? Em alguma parede envelhecida? Em alguma árvore que resistiu ao vento? Em algum cheiro em lugar inexato, resistindo, resistindo... até que se apague de vez quem alguma(s) história(s), de tempo já decretado como quase-mentira, ainda pode contar?

Que acontece quando vemos as sobras do passado lutando para se conservarem em sombras que alargam as calçadas? Uma data no alto de um armazém, já adaptado para a modernidade; os filmes estendidos onde o babaçu se derretia (ou pelo menos, no próprio pensamento, dissolvia-se), vagando entre grossas paredes ou  nas soleiras, nas quais jegues um dia fizeram fila para despejar cargas. Que acontece com as sobras do passado? Rendem tributo ao progresso e aos valores da nova era?

Não sei se apodrecerão – estas e outras marcas – comigo e com quem mais, de passagem, vai vencendo o destino; destinando, destinando, para trás, o que se poderia  repetir em registros e memórias palpáveis. Não voltará, porém, exceto em “ouvi dizer”, o que não se conserva para permanecer. Não sei se  os que não se percebem que decidem a vida particular e a de milhares conservarão ruas de minha cidade – digo minha, porque quem nasce em qualquer torrão que ama, não vê cada esquina senão como propriedade sua – em olhar para elas, ao que de triste ou de belo emociona, enxerga o horizonte como extensão de si.

Não nos pertence o horizonte? O infinito azulado de uma cor tão próxima? O cinza triste de nuvens que despencam? Nossa transitória certeza no céu parado ou em movimento? A quem pertenceriam?

Na praça Cláudio Manuel da Costa, vejo respostas para perguntas a que outras paisagens não me respondem. A igreja me faz ri – não a igreja em suas formas barrocas, em ouro que se guardou para quem admirar gosta. Me faz ri a visão anunciada do adro. Miro a placa, o prefeito maior que o poeta. Encosto-me às paredes volumosas da sorveteria, piso firme no chão de pedra secular – o prefeito, maior que o poeta. Na placa, em traços minúsculos, o nome do inconfidente; mas o do poderoso da vez, grafado para uma eternidade que se derreterá quando assumir outro alcaide ou a peça de metal enferrujar. O poeta não; o suor e o sangue inscritos nos séculos por nascerem.

Em Mariana-MG, é assim: registros e memórias palpáveis. Poetas que se conservam e mantém a história. Entro no museu. A casa um dia abrigou o poeta simbolista Alphosus de Guimarães. Subo acompanhado de uma guia, atento mais aos detalhes da mobília, aos objetos e principalmente à raridade que é estar diante de um original de escritor famoso, embora desaparecido. Tenho que levar comigo um registro disso. Por que somente uma foto?Encontro a eternidade em pessoa, encontro palavras impressas para serem repetidas, encontro um livro, de onde extraio os sentidos da existência do autor de Ismália. Uma história que não significa apenas a de um poeta, mas também a de um tempo, a de uma cidade, conservados para permanecerem.

No aconchego de casas e ruas, em cuja arquitetura revive o século XVIII, ponho-me a ver para onde vão as lembranças quando o tempo se cuida em guardar.

Na foto, o escritor Dílson Lages e grupo de amigas em visita ao Museu Alphonsus de Guimaraes, em Mariana-MG.