Vista aérea da cidade de Barras
Vista aérea da cidade de Barras

*Reginaldo Miranda

Foi figura importante na fundação da cidade de Barras, porque doou à Santa Padroeira, Nossa Senhora da Conceição, meia légua de terras para patrimônio da Igreja. Nesse aspecto dava sequência ao trabalho de dois ilustres antecessores, o coronel Miguel de Carvalho e Aguiar, fundador e iniciante da capela e Manuel da Cunha Carvalho, responsável pela conclusão da obra. São, assim, os três principais fundadores da localidade, seguindo-se-lhes outros denodados benfeitores.

Manuel José da Cunha, nasceu e foi batizado em 1758, na freguesia de Santa Maria de Canedo, concelho de Celorico de Basto, arcebispado de Braga, filho de Antônio da Cunha e Perpétua da Cunha[1], ambos oriundos de famílias distintas.

Em sua terra natal viveu os despreocupados anos da infância e juventude, alternando os estudos regulares com as brincadeiras típicas da idade. Porém, mal chegou à adolescência, por volta de 1772, deixou a casa paterna para vir morar em companhia de um abastado tio que morava na fazenda das Barras, no vale do Longá, o fazendeiro Manuel da Cunha Carvalho. Porque este não tinha gerado descendência, passou ele a ser tratado por filho, embora não adotado formalmente, sendo instituído por herdeiro universal. Desde então imiscuiu-se na lida da fazenda, aprendendo o traquejo do gado e as nuances de seu comércio.

Manuel da Cunha Carvalho[2], o tio benemérito, também viera moço para o sertão do Piauí, por volta de 1740. No entanto, embora tivesse diversos parentes desbravando desde seu início os campos de Parnaguá, preferiu situar-se com fazenda no vale do rio Longá, na freguesia de Santo Antônio do Surubim. Ficara, pois, distante daqueles primos[3], mas próximo de um tio por nome Manuel Carvalho da Cunha, que vinha situando fazendas na região. Fora casado em primeiras núpcias com Damiana Lopes, provavelmente herdeira do português Francisco Lopes, fundador da fazenda Buriti dos Lopes; e em segundas com Isabel da Cunha e Silva Castelo Branco, rica herdeira de seus genitores, o comissário-geral de cavalaria Manuel Carvalho de Almeida e sua esposa, D. Clara da Cunha e Silva Castelo Branco, todos oriundos de nobres famílias do norte do Piauí e do reino de Portugal. Com a casamento herdou diversas e boas fazendas dos sogros, fazendo aumentá-las por fruto de seu trabalho, assim adquirindo muitas outras. Fez-se criador de muitas cabeças de gado vacum e cavalar, que distribuíra em diversas fazendas, a saber: na freguesia de Nossa Senhora do Carmo da Piracuruca: era possuidor das fazendas São José de Roncador e Melancias, no rio Parnaíba, mas fez permuta destas com Ignácio Alves de Sousa e outros condôminos pela fazenda Taquari, situada no riacho de mesmo nome e medindo três léguas de comprimento e uma de largura; São João[4], nas margens do rio Longá, com três léguas de comprimento e uma de largura, comprada a um tio por nome Manuel Carvalho da Cunha; e um sítio anexo a esta, comprado ao mesmo tio, medindo légua e meia e comprimento e de largura em partes meia e em outras menos; na freguesia de Santo Antônio do Surubim, da vila de Campo Maior[5], existiam as seguintes fazendas: das Barras, na forma já dita e que fora arrematada em praça no juízo dos ausentes da comarca de Oeiras; das Matas[6], no lugar de mesmo nome, com três léguas de comprido e duas de largura, havida por compra a João de Passos Gonçalves; da Lagoa, medindo nove léguas de comprimento e uma de largura, havida por compra a Joaquim de Souza Benevides[7]; Riacho das Piranhas, que era retiro da anterior e fora dada à sua primeira esposa Damiana Lopes, por seu tio Manoel Carvalho da Cunha; em fontes secundárias encontramos ainda como de sua propriedade as fazendas Alagoas, situada à margem do rio Parnaíba; Cabeceiras, à margem do Riachão de Dentro; Campo Largo, Estanhadinho, Conceição, Corredeiras e Poço Redondo. Por não ter gerado filhos esse tio deixou todos os seus pertences ao referido sobrinho, ora biografado, com exceção de um rendimento para a capela de Nossa Senhora da Conceição das Barras, por ele concluída, conforme já nos reportamos.

Pois bem, herdando todas essas fazendas e o imenso rebanho bovino e cavalar que nelas pastava, Manuel José da Cunha se tornou um dos mais abastados fazendeiros do vale do Longá e norte do Piauí. Como a unanimidade dos fazendeiros de seu tempo comercializava suas boiadas nas feiras de Pernambuco, Bahia e Maranhão. Mais tarde, passou a vender o grosso do rebanho aos empresários de Parnaíba: primeiro a João Paulo Diniz e depois a Domingos Dias da Silva, este último tendo monopolizado o comércio de carnes no norte do Brasil.

Foi casado com D. Ignácia Teresa Pereira Castelo Branco, filha do abastado fazendeiro e capitão Francisco da Cunha e Silva Castelo Branco e de D. Anna Rosa Pereira Tereza do Lago. Foi um casamento arrumado pelos parentes, vez que a esposa era sobrinha-afim de seu tio, porque Francisco da Cunha e Silva Castelo Branco era irmão de Isabel da Cunha s Silva Castelo Branco. Também não tiveram filhos, falecendo a esposa em 1802.

Tendo ficado viúvo em 1802, no ano seguinte Manoel José da Cunha vai protagonizar um contrato esponsalício com uma menina de nove anos de idade, contando ele com 45 anos. Tudo por conta de cobiça no rico patrimônio do nababo pelo pai da menor, o ganancioso capitão Manuel Antônio da Silva Henrique. O contrato foi celebrado em 27 de dezembro de 1803, na cidade de Parnaíba e previa entre outras cláusulas: que o casamento fosse celebrado na forma do Concílio de Trento, tão logo a menor Matildes Nonata Angélica da Silva, completasse a idade de direito; que se o contraente falecesse antes de ser celebrado o matrimônio, fazia pura, especial e irrevogável doação à contraente da meação de todos os seus bens móveis, imóveis, herança, ações efetivas e futuras, assim como a constituía herdeira universal dos seu bens, depois de cumpridas as suas disposições e legados; e no caso do contraente se recusar a prosseguir no matrimônio, ficaria obrigado a pagar a título de dote, a quantia de oito contos de réis.

De fato, o matrimônio não pôde ser consumado porque o contraente varão faleceu em 2 de abril de 1804, em seu engenho Conceição, situado na referida fazenda São João[8], termo de São João da Parnaíba. O óbito ocorrendo assim, apenas três meses depois de celebrado o contrato, demonstra que o noivo já se encontrava enfermo, sendo essa uma arrumação entre este e o pai da menor, dois velhos amigos e parceiros de negócios. Falecia Manuel José da Cunha, com apenas 45 anos de idade, deixando em testamento[9] meia légua de terras na fazenda das Barras, no entorno da capela, para a Igreja, sob o orago de Nossa Senhora da Conceição. Também todo o gado vacum e cavalar que nela se achasse com seu ferro. Teve seu corpo sepultado nesta capela, de que fora grande benfeitor. Por ser uma peça jurídica rara e interessante, vamos transcrever na íntegra o referido contrato esponsalício.

 

“Escriptura de Contrato Exponsalício[10], que fazem Manoel Joze da Cunha, e Dona Matildes Nonato Angélica da Silva, por seu Administrador e Pai o capitão Manoel Antonio da Silva Henriques.

‘Saibam quanto este Público Instrumento de Escriptura de Contrato Exponsalício, ou como em Direito melhor nome, e lugar haja virem, que sendo no Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil outocentos e três, aos vinte e sete dias do mez de Dezembro do dito Anno nesta villa de São João da Parnahiba, comarca de Oeyras e capitania de São Joze do Piauhy, em cazas de moradas do capitão Manoel Antonio da Silva Henriques, aonde Eu Tabelião ao diante nomeado vim, e sendo ahy apparecerão partes presentes outorgantes, e contratantes Manoel Joze da Cunha, morador neste termo, natural e baptizado na freguesia de Canedo, Arcebispado de Braga, filho legítimo de Antonio da Cunha, e Perpétua da Cunha, de idade de quarenta e cinco anos; e da outra parte o capitão Manoel Antonio da Silva Henriques, como Administrador e Pai de D. Matildes Nonata Angélica da Silva, filha legítima do mesmo, e de sua mulher fallecida Dona Maria Victoria Thomazia Clara, natural e baptizada nesta freguesia da Parnahiba, de idade de nove anos, pouco mais ou menos, de mim reconhecidos pelos próprios de que tracto, e dou fé: E logo pelo contrahente Manoel Joze da Cunha foi dito perante as testemunhas ao diante nomeadas, e assignadas, que de sua livre vontade, sem alguma coação se havia contractado em matrimônio com a sobredita Dona Matildes Nonata para a receber na forma do Consilio de Trento, logo que a mesma estiver em Idade de Direito, com a condição porém, que sucedendo, que ele Esposo falleça antes da contracção do Matrimônio, fazia pura, especial, e irrevogável Doação, e era contente, que a mesma sua Esposa houvesse a meação de todos os seus Bens móveis, e inmóveis, heranças, acções, effectivas, e futuras, assim como a constituía herdeira universal dos seus Bens, depois de cumpridas as suas Disposições, e legados, por isso, que ele contrahente não tinha herdeiros Alguns, Ascendentes, ou Descendentes, que legitimamente lhe possão suceder, e que as mesmas Condições, se verifiquem no cazo de não ter filhos della; e que outrossim succedendo, que ele contrahente não queira receber em matrimônio por algum princípio qualquer que ele seja, será obrigado a satisfazer-lhe a benefício de Dote a quantia de outo contos de Réis,  e que para inteira validade da prezente Escriptura se conformava com a Disposição da Ley de seis de outubro de mil setecentos outenta e quatro. Logo pelo Pay da contrahente foi dito, que como seu Administrador da contrahente aceitava esta Escriptura, prestando-lhe o seu especial, e pleno consentimento, conforme exigia a referida Ley, e hum e outro, disserão finalmente, que para integridade deste Contracto, se dessaforão de todos os Foros, e Privilégios, que alegar possão e da Ley do veliano[11], que favorece as Mulheres, e que erão contentes esta se cumprisse, como nella se conthém, para oque sugeitavão suas pessoas, e bens; e de como assim o disserão, e outorgarão, mandarão fazer esta Escriptura nesta Nota, que Eu tabelião a fiz, por me ser distribuída pelo Juiz Odinário Caetano da Silva Lopes, que serve de Distribuidor do Juízo, sendo a tudo prezentes por Testemunhas David da Costa Bezerra, e João Antonio da Silva, moradores neste Termo, pessoas Reconhecidas de mim Tabellião João do Rego Barros[12], que a escrevy. Manoel Joze da Cunha. Manoel Antonio da Silva Henriques. David da Costa Bezerra. João Antonio da Silva. E não se continha mais couza alguma em a dita Escriptura, que do próprio original a que fiz trasladar pela Escrivão Ajudante, a qual se acha em Notas a folhas cento e quarenta, ao que me Reporto, e me Assigno em Público, e Razo. Villa da Parnahiba aos vinte e sete de Dezembro de mil outocentos e três. Eu João do Rego Barros, Tabellião que a subscrevy, e assigney de meus Sinais Públicos, e Razos, de que uzo. Em testemunho da verdade. Lugar do Signal Público. João do Rego Barros, tabelião.

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*REGINALDO MIRANDA, autor de diversos livros e artigos, é membro efetivo da Academia Piauiense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI. Contato: [email protected]

 

 


[1] AHU. ACL. CU. 016. Cx. 27. D. 1404.

[2] Também natural de Celorico de Basto. Faleceu em sua fazenda das Barras, no interior de cuja capela foi sepultado.

[3] Conforme demonstrado na relação de possuidores de terras, existia um tio seu no norte do Piauí, por nome Manuel Carvalho da Cunha.

[4] Depois chamada Currais Novos.

[5] Possuía a fazenda Santa Cruz, havida por arrematação que fizera no juízo dos ausentes, mas a vendeu a Luiz Ferreira da Silva Rosa; e a fazenda São Domingos, havida em dote sua esposa, mas a vendeu a Manoel Simões Vale.

[6] Em sua origem mais remota fora do coronel Miguel de Carvalho e Aguiar.

[7] Joaquim de Souza Benevides era casado com uma filha de Manuel Carvalho da Cunha, tio de Manoel da Cunha Carvalho.

[8] Não morava em Barras, mas possuía na povoação uma casa de taipa com cobertura de telhas que utilizava em suas visitas, também esta ficando para a Igreja, porque fazia parte da gleba doada.

[9] O testamento fora celebrado em 16 de março de 1804. Ficou como administrador da capela, Francisco Borges Leal, sobrinho de sua esposa. Mais tarde, em 22 de agosto de 1819, tomou conta dessa administração da capela, José Carvalho de Almeida, também parente de sua esposa. No testamento ele também ratificou a meação deixada à menina noiva, tendo havido posterior demanda com o provedor dos ausentes.

[10] AHU. ACL. CU. 016. Cx. 27. D. 1404.

[11] Princípio advindo do direito romano: Senátus-consulto Veleiano.

[12] Esse tabelião João do Rego Barros, era natural de Pernambuco, sem qualquer parentesco com o capitão-mor João Gomes do Rego Barra, que viveu na mesma localidade um século antes.