Na segunda passada, estive no evento em homenagem aos 100 anos de Mano Décio da Viola, que aconteceu no auditório da ABI. Cheguei com o debate já em andamento, mas a tempo de ouvir parte das falas de Rachel Valença, Ricardo Cravo Albim, Haroldo Costa e Sérgio Cabral (o original). Foi uma noite de grandes momentos: Cabral cantando, à capela, os versos de Conferência de São Francisco, samba-enredo de 1946; um senhor salgueirense da platéia afirmando, com a força de seus cabelos brancos, que "se o samba não tivesse vis compromissos, o Império Serrano não estaria no Grupo de Acesso"; o bamba Roberto Silva cantando Exaltação a Tiradentes; o show de Jorginho do Império, filho de Mano Décio, com pérolas menos conhecidas do pai compositor.
Em meio a tantos ponto altos, houve, no entanto, um ponto altíssimo. Refiro-me ao comovente depoimento da já mencionada Rachel Valença, pesquisadora, diretora da Casa de Ruy Barbosa e hoje vice-presidente do GRES Império Serrano. Rachel, essa mulher admirável, deu um testemunho ao mesmo tempo íntimo e histórico sobre sua relação com Mano Décio, que se confunde com a relação com o próprio Império. Foi ovacionada.
Logo que o evento se encerrou, pedi a ela que me mandasse o texto. É um pouco longo, mas lhes digo: vale a pena gastar alguns minutos e ler a peça até o fim (sugiro que a leitura se dê ao som de Obsessão, de Mano Décio com Osório Lima, e vocês já entenderão o porquê):
Com a palavra, Rachel Valença:
“Estou neste momento numa mansão na Praia Vermelha, na casa de uma encantada dama que deseja me entrevistar”. Assim começa o depoimento prestado por Mano Décio da Viola no dia 28 de novembro de 1978, para o livro Serra Serrinha Serrano o Império do Samba, de minha autoria, em parceria com Suetônio Valença, meu ex-marido, já falecido. A mansão era um modesto apartamento de sala e três quartos na Avenida Pasteur, onde morávamos na época. A encantada dama aqui está. De realidade na primeira frase do depoimento só resta a Praia Vermelha.
As pesquisas para o livro começaram em 1978, por sugestão do amigo Humberto Soares Carneiro, hoje presidente do Império. Ele falava da nossa quase obrigação de registrar a história da escola, onde chegáramos no final de 1971. A história, segundo ele, ia se perdendo à medida que seus protagonistas iam envelhecendo, esquecendo fatos e datas, ou mesmo morrendo. Já perdêramos Elói Antero Dias, em 68, Jorginho Pessanha, o grande compositor, em 1969, Silas de Oliveira em 1972. Era preciso correr contra o tempo, registrar depoimentos, pesquisar documentos e fotos e publicar, para que o Império Serrano tivesse um livro, como o Salgueiro já tinha.
A tarefa nos empolgou e os anos de 78 e 79 foram para nós de muito trabalho. Mas já se aproximava o fim do ano e ainda não tínhamos o testemunho de um personagem importantíssimo: Mano Décio da Viola, citado em todos os depoimentos como parte da tríade sagrada de compositores imperianos, junto com Silas de Oliveira e Jorginho Pessanha. Marcava-se uma entrevista e não dava certo, porque o espírito de andarilho, sua marca mais forte, o impedia de estar na hora marcada e no lugar combinado para algo que ele não sabia bem o que era: uma entrevista a dois jovens, ilustres desconhecidos.
Naquele novembro de 30 anos atrás, vi que se anunciava, no estúdio da TV Tupi, na Urca, uma gravação do Império e Mano Décio faria parte dela. O Suetônio não podia estar lá, era dia de semana, dia de trabalho: mas eu tirei uma folga a que tinha direito e me bati a pé para a Urca, para tentar conversar com o Mano Décio ou ao menos combinar algo. Pois até combinar era complicado: os meios de comunicação na época eram bastante precários, ter telefone em casa ainda era um luxo, celular e internet nem em sonhos... não podia desperdiçar a chance de encontrá-lo. Fui, abordei-o na saída da gravação e, muito abusada, convidei-o para almoçar na minha casa, me identificando como amiga do Jorginho do Império, o que era verdade, porque minha amizade com o Jorginho data da época da minha chegada à escola, em 71. Mano Décio foi andando comigo pela amurada da Avenida Portugal, de frente para o mar, até chegarmos à praia Vermelha. Quis ver a praia, que não conhecia. Já lá em casa, ganhei tempo para não intimidá-lo: almoçamos primeiro, ele gostou da comida, me lembro que era uma berinjela recheada, que ele louvou muito, bem como ao pudim de leite da sobremesa. Depois, pus discos na vitrola, lps do Império que eu colecionava, inclusive os dele próprio. Aí ele ia falando sobre as músicas e os parceiros, tudo muito casual, e de repente perguntei se ele se importava que eu gravasse suas palavras. O clima da conversa era muito bom, e o depoimento em que fala da infância e da adolescência, em que fala de sua chegada ao Império, dos parceiros e dos demais baluartes da época, foi um dos mais importantes para nós para a elaboração do livro.
Lá estão narrados três episódios importantes: os problemas diplomáticos que em 1960 culminaram na mudança do enredo e do samba Medalhas e brasões, de sua autoria com o parceiro Silas de Oliveira; o enredo escolhido, Retirada da Laguna, susceptibilizara os brios nacionais do Embaixador paraguaio, a quem pareceu desrespeitosa a abordagem que o carnaval do Império faria da guerra entre os dois países.
Outro episódio esclarecido em seu depoimento foi sua saída do Império por pouco mais de um ano e seu complicado retorno, enfrentando a resistência principalmente da inflexível D. Eulália, que não admitia a mais ínfima infidelidade à escola que ajudara a fundar; e por fim os problemas enfrentados em 1968, em plenos anos de chumbo, quando o samba Heróis da Liberdade causou aos seus autores, obrigados pelo Dops a substituir a palavra revolução, da letra original, por evolução, como cantamos até hoje.
No ano seguinte fomos à sua casa para gravar sambas inéditos, que ele cantou com muito boa vontade e com a participação do filho Jorginho. Mais adiante vieram as fotos para o livro, feitas pelo fotógrafo Fernando Seixas, em que ele aparece com o violão em punho, bem informal, na varanda de sua casa na Rua Itaúba, hoje Rua Mano Décio da Viola.
Com fotos e documentos não pôde contribuir para nosso trabalho: nada tinha e culpava as mulheres e a vida desregrada que tivera por não ter guardado nada. Mas desde esta época nos tornamos bons amigos. Em 1981 cavamos a oportunidade de um show da Velha Guarda do Império, até então inexistente. A Velha Guarda da Portela começava a ter visibilidade e não nos conformávamos com o fato de o Império, com seus sambas antológicos, não ter como mostrá-los. Suetônio conseguiu a Sala Funarte e imaginamos que, agendado o show, os “artistas” seriam obrigados a se unir e se organizar. Jorginho do Império tomou a dianteira e administrou com paciência e habilidade as dissenções dos meninos: o grupo era formado por Mano Décio, Fuleiro, Molequinho, Manuel Ferreira, Nilton Campolino e Carlinhos Vovô e congregava ainda as damas que dançavam o jongo, uma das fortes tradições da Serrinha, e faziam o indispensável coro de vozes femininas. A diretora do show era a saudosa Tereza Aragão, que se apaixonou perdidamente pelo repertório e pelos irresistíveis artistas. Fui a todos os ensaios e guardo até hoje as críticas altamente elogiosas ao espetáculo, que teve lotação esgotada em toda a temporada.
Guardo também a foto do grupo no camarim e é com muita saudade que me lembro dos bons momentos passados em conversa com aqueles amigos que tinham em comum comigo a paixão pelo Império Serrano. A convivência com Mano Décio era sempre muito doce, pois ele era uma pessoa extremamente gentil, modesta, cordial, incapaz de dizer um não ou dar uma resposta que imaginasse desgostar o interlocutor. Tão doce quanto as balinhas que enchiam sempre seus bolsos e que oferecia a quem se aproximasse dele.
Foi nesse show que ouvi pela primeira vez a música que considero sua obra-prima: Obsessão, em parceria com Osório Lima. Essa música, que fala da inspiração, da gênese do samba na mente do compositor, sempre me faz chorar. Primeiro, porque tem uma melodia maravilhosa e uma letra inspirada e comovente. Segundo porque me faz lembrar um tempo feliz, em que eu tinha trinta e poucos anos e em que o próprio Império Serrano e as escolas de samba em geral eram muito mais ideal do que pragmatismo e lucro.
Ali, no Império Serrano, minha vida foi passando: hoje tenho a idade que tinha o Mano Décio quando eu o conheci. Não é uma comparação: não fundei o Império, também não compus nenhum samba. Mas me orgulho de ter contribuído um pouquinho para que a memória da escola esteja hoje reunida, para que haja fotos, que comprei ao longo dos anos de arquivos de jornal e do próprio Arquivo Nacional, dessas pessoas iluminadas que fizeram da minha escola o que ela é hoje: um quilombo de resistência cultural da negritude. Como me orgulho de no momento estar dedicando todos os meus esforços, junto com Humberto, Jorginho e tantos outros, para dar prosseguimento a essa história, que não podia seguir por caminhos que não dessem a nossos maiores – Silas de Oliveira, Mano Décio, Jorginho Pessanha, Elói Antero Dias, João de Oliveira, Mestre Fuleiro, Aniceto Menezes e Dona Eulália – motivo de continuar tendo orgulho de haver “pintado de verde e branco a bandeira do samba” naquele longínquo 23 de março de 1947.
Rio de Janeiro, ABI, 20 de julho de 2009"
P.S. A foto acima é de Diego Mendes".
(http://www.marcelomoutinho.com.br/blog/2009/07/post_23.php)