Mal de Alzheimer
Em: 26/11/2014, às 11H52
Hoje a ideia de narrativa está em voga. Além disso, a Semiótica há muito tempo assevera que por trás de cada coisa existe algo representado ou significado. Nada é em si.
O ser humano individual, - em carne, osso e alma - , significa uma narrativa. A sua identidade, como percebida por ele mesmo e pelos outros, corresponde a uma série de dados que fazem dele ou dela uma estória ambulante: nasceu em tal lugar, no dia tal, sendo seu pai x e mãe y, cresceu em outra cidade; aos cinco anos sofreu um acidente. E por aí vai.
Cada um de nós corresponde a uma estória, a sua própria, sendo essa a sua identidade. Isso está na natureza humana e é bom. Por efeito desse mesmo raciocínio, nada pior que perdermos a nossa narrativa e a capacidade de interpretar.
Meu pai perdeu a dele.
Neste instante, lembro-me do meu querido com Alzheimer. Recordo do seu desconhecimento de mim como seu filho; vejo-o não mais saber a finalidade de um copo com água à sua frente; lembrou-me de ele reaprender a cada dia a função do andar.
O mal do doutor Alzheimer roubou-lhe a significação dos objetos e das pessoas. Desapossou-o da experiência de ter vivido. Tomou-lhe os casos, as opiniões e as conexões. Foi fundo ao levar-lhe os registros dos fatos passados. Os seus olhos perderam a expressividade, emudeceram.
O mal lhe levou, covardemente, e nos roubou a mim, à minha mãe e às minhas duas irmãs, a sua autonarrativa, a memória de si, a identidade. Isso rapidamente ocorreu durante um longo ano antes de seus olhos mudos se fecharem.
No entanto, leitor, não se apiede. Saiba que, como nos contos maravilhosos, a estória do meu pai Orival, junto com a da minha mãe Lia, que faleceu lúcida, transmigraram para nós seus filhos, genro, nora, netos e bisnetos. Ele deixou de ser a representação em carne e osso de sua narrativa pessoal. Ele se foi; sabemos disso. No entanto, a sua estória, como a da sua amada, estão em nossas memórias, tornaram-se a representação dele e dela, a sua namorada. Eles, enquanto vivermos para lembrá-los. fizeram-se imortais como as narrativas mitológicas e os contos maravilhosos.