[Flávio Bittencourt]

Maio de 69: a revista Veja publica uma reportagem definitiva sobre a história das telenovelas no Brasil

Hay que sacarse el sombrero!

 

  

 

 

"Hay que sacarse el sombrero!"

(GARIBALDI CRUZ, pintor amazonense,

vendo uma cidade nascer do "nada": Brasília,

no final dos anos 1950)

 

 

 

 

 

 

 [tv+tupi++O+DIREITO+DE+NASCER+1964+A+65+Isaura_bruno_e_amiltonsfernandes_0_direito_de_nascer.jpg]

(http://tvpiratinicanal5rs.blogspot.com/2008/10/pela-tv-piratini-canal-5-novla-o.html)

 

 

 

"É PRECISO TIRAR O CHAPÉU PARA OS AUTORES DA REPORTAGEM DA REVISTA VEJA SOBRE FOTONOVELAS, PUBLICADA EM 7.5.69, PELA SIMPLES RAZÃO DE QUE NÃO SE TRATA DE UMA reportagem (COMUM), MAS DE UMA metarreportagem, OU SEJA, UM TEXTO QUE SE PROPÕE COMO modelo DE TEXTOS: MAIS DO QUE UMA REPORTAGEM NOTA DEZ, defrontamo-nos com uma reportagem, por assim dizer, hors concours, vale dizer MATRIZ DE reportagens-filhotes, subsequentes"

(COLUNA "Recontando estórias do domínio público")

 

 

 

 

              Homenageando os autores da reportagem adiante transcrita - os vivos,

              a quem se deseja saúde e vida longa e em memória dos infelimente

              já falecidos -, todas as pessoas que participaram das telenovelas

              mencionadas na citada reportagem da revista Veja, da Editora Abril,

              de São Paulo-SP (Brasil) e evocando

              com grande saudade, o pintor amazonense Garibaldi Cruz,

              que, na segunda metade dos anos 1950, visitando a construção de

              Brasília juntamente com o meu saudoso pai, Ulysses Bittencourt,

              de quem era amigo de infância (vivida em Manaus), não se

              cansava de repetir, a cada "susto" visual que recebia, de "asa" a "asa",

              de "eixo" a "eixo", de "lago" a "lago" e assim por diante:

              "HAY QUE SACARSE EL SOMBRERO!", esse mesmo artista

              plástico que resolveu intitular uma foto - e branco-e-preto - na qual os dois

              grandes amigo aparecem, tendo, em segundo plano, um prédio público

              candango, em construção, de:

              "O POVO, FISCALIZANDO AS OBRAS"

 

 

 

11.3.2011 - A reportagem que foi publicada em maio de 1969 sobre o assunto TELENOVELAS é de excelência provada e comprovada - Caberia agora uma outra reportagem sobre como essa reportagem foi realizada. Caberia uma outra reportagem sobre como essa reportagem foi relizada e até uma dissertação de mestrado sobre ela, por exemplo. (O texto, cujo título é "Os filhos do direito de nascer", é espantosamente bom: HAY QUE SACARSE EL SOMBRERO, como diria o velho amigo Garibaldi Cruz!)  F. A. L. Bittencourt ([email protected])

 

 

 

 

 

REVISTA VEJA:

"Reportagens



7 de maio de 1969
Os filhos
do direito
de nascer

 

 

 

Talvez o responsável por tudo seja um cubano baixinho e míope, que adora gravatas de muitas cores e paletós longos como há muito tempo não se vêem mais. Em 1946, Félíx Caignet escreve para a Rádio de Havana "El Derecho de Nascer", uma novela que ele acha "simples, como la alma simples del pueblo", e que realmente é simples e direta como um dramalhão de circo: Um filho natural (a mãe envergonhada foi ser freira e o pai, canalha, desapareceu), criado por uma mãe-preta, cresce, forma-se médico, tem uma namorada, mas não consegue desvendar o mistério de sua origem, porque quem sabe de tudo perdeu a voz e só vai recuperá-la, evidentemente, no último capítulo.

Com este enredo de 45 palavras e com uma imaginação delirante de lugares-comuns, o cubano míope escreveu uma radionovela de dois anos de duração e depois uma telenovela de 283 capítulos, com uma média de 23 folhas escritas cada um, num total de 6510 páginas e 129 horas de exibição. O dramalhão assola o Brasil em duas imensas vagas. A primeira chega em janeiro de 1951, quando os capítulos de "O Direito de Nascer" começam a ser transmitidos pela Rádio Nacional do Rio. A segunda em dezembro de 1964, quando as desventuras de Albertinho Limonta, o filho sem pai, invadem o País pela televisão. O sucesso da voz dos personagens de Félix Caignet já havia sido extraordinário, mas, quando eles ganharam imagem, começou um verdadeiro delírio nacional. As crianças passaram a nascer com o nome de Albertinho Limonta. Nas cidades, o grau de utilização da rede sanitária caiu sensivelmente na hora da novela (21h30 às 22h). Os encontros nacionais, desde sessões de Senado até ofícios religiosos, foram habilmente deslocados para não perturbar a audição do drama da paternidade desconhecida.

A partir de "O Direito" o brasileiro começa a consumir as telenovelas em doses cavalares. As histórias, que antes se resolviam modestamente em um máximo de cinqüenta capítulos e transmissões duas ou três vezes por semana, passam a exigir centenas de sessões diárias. Em 1965, "Redenção", da TV Excelsior, SP, chegou a 594 capítulos. Quatro anos depois de "O Direito", a televonela é uma epidemia nacional. Na semana passada, todos os dias, 9 milhões de brasileiros receberam de 43 emissoras pelo menos uma das 24 novelas que caem sobre o País juntamente com as trevas da noite. Das 18h30 às 22h, 80% dos 3 500 000 aparelhos de tevê do Pais puxam para dentro das casas desfile de personagens tão variados e ricos em' roupagens e cenários quanto monótonos e esquemáticos em suas relações. Antes de tudo, são amores, geralmente impossíveis até o último capítulo, obstados por pais, madrastas, destino, preconceitos (Ou, como diz Plínio Marcos, autor de "Navalha na Carne" e ator em "Beto Rockefeller", do Canal 4 de São Paulo: "Basicamente é a história de um casa que quer ir para a cama e de mais cinco ou seis personagens que estão ali para atrapalhar".) Misturados a esse arroz-com-feijão, uma série de temperos essenciais: choques de gerações e interesses; segredos terríveis que se prestam excelentemente para chantagens afetivas e financeiras: vilões que sabem de tudo e heróis que não sabem de liada; beijos secretos, carias anônimas, telefonemas misteriosos, diários íntimos, personagens estranhos que se esclarecerão apenas no último capítulo; sofrimento atroz dos bons e sádica alegria dos maus que persiste até o penúltimo capítulo, quando finalmente tudo se inverte. E, principalmente, os personagens amarram as donas de casa aos anúncios da Gessy-Lever, Colgate-Palmolive e Kolynos-VanEss (patrocinam dezesseis das 24 telenovelas em exibição), que dão às emissoras cerca de 20 milhões velhos por cinco minutos de comerciais em cada capítulo. Famosos entre os publicitários com o nome de "soap-operas" (do inglês, com duplo sentido, óperas dos sabões e óperas de má qualidade), as telenovelas cumprem eficientemente seu papel de vender ao corpo humano limpeza para suas roupas, seus dentes, seus maus odores. Mas, para o espirito humano, o que vendem essas óperas de sabão?

Beto, o novo herói -

===EM EDIÇÃO===

O que mudou? -

===EM EDIÇÃO===

Crise ou plano? -

===EM EDIÇÃO===

O treco

===EM EDIÇÃO===

Mudar ou não -

===EM EDIÇÃO===

Quem educa o povo? -

===EM EDIÇÃO===

O que fazer? -

===EM EDIÇÃO===

O frio assassino dos heróis

De que morrem os personagens das telenovelas? Aparentemente, dos conflitos naturais das histórias. Na realidade, do desprezo do povo e de problemas financeiros. A própria estrutura da telenovela é que faz os heróis vilões terem estou mortes vis. Por dois motivos. Um: A telenovela nunca é escrita completamente antes de ser lançada. O autor faz,. em primeiro lugar, apenas uns dez capítulos, onde define as características dos principais personagens e a posição de todos em relação à trama central. Depois, espera que o IBOPE diga quem agrada ao público. Aí, vai esticando o papel e a importância dos "eleitos" e dando um jeito de liquidar os que caíram no desprezo popular. Dois: Uma telenovela custa para uma emissora por volta de 120 000 cruzeiros novos mensais. Se a história não pega ou/e se os anunciantes não cobrem este custo, o autor deve investir contra os personagens para acabar com alguns deles e com os prejuízos. Nos estúdios de televisão, as tragédias não televisionadas, sofridas pelos autores e atores em vista da ditadura do IBOPE e daverba da produção, repetem-se continuamente. Alguns casos são considerados épicos, como o de "Anastácia, a Mulher sem Destino", escrita em parte por Emiliano Queiroz e em parte por Janet Cluir, esposa de Dias Comes, autor de "O Pagador de Promessas". A telenovela fora feita para aproveitar o prestígio de Leila Diniz, que fazia sucesso nos cinemas com "Todas as Mulheres do Mundo" (de Domingos de Oliveira). No começo, a história pegou e Emiliano Queiroz, o primeiro autor (mais adiante se verá por que foi necessário um segunda), foi pondo mais gente na trama enquanto o IBOPE subia. A certa altura, num ,capítulo de extrema grandiloqüência, onde aparecia até Clóvis Bornay (campeão de desfiles de fantasia de carnaval) como sacerdote de estranhos rituais, o elenco chegou a 56 pessoas e a verba da produção estourou. Glória Magadan, cubana que dirige a Central Globo de Telenovelas, telefonou para Janet Clair, desesperada. Janet conta: "Eu ainda não escrevia para a Globo. Procurara Glória pedindo emprego e ela prometera me avisar quando surgisse uma oportunidade. No famoso dia do sacrifício em 'Anastácia', me telefonou quase à meia-noite, pedindo um encaminhamento 'radical' para a história. Com sono ainda, sugeri o que me veio à cabeça: um terremoto". Foi a maior genocídio cataclísmico da história da telenovela. Os cenários de papelão ruiram sobre os desafortunados personagens e, no dia seguinte, mais de quarenta deles não puderam entrar na fila para receber o cachê. Morreu até, por descuido, o personagem que sabia o segredo (adivinhem qual) do nascimento de Anastácia. Janet leve de inventar um providencial criado que ouvira o fantástico relato da boca do falecido, pouco antes do terremoto, para espanto geral dos telespectadores. Em "Demien, o Justiceiro", Mário Lago era per´fido vilão que vivia atormentando o juízo de Carlos Alberto e loná Magalhães. (Carlos, evidentemente, procurava seu pai. Ele e loná tinham um filho, logicamente, raptado ao nascer). Vendo o .sucesso da história, Mário resolveu pedir aumento de salário. Diante desta ousadia. Glória escreveu os próximos capítulos de forma a encerrar o vilão num túnel em disponibilidade nos túneis da Globo. (Aliás, o mesmo túnel onde, em "Eu Compro Esta Mulher", vivia escondida, do próprio Carlos Alberto e sob sua casa, nada mais nada menos que sua mãe.) Posto fora de circulação durante vários capítulos e, se necessário, para sempre, Mário mudou de ideia e refez seus contrato em bases modestas. Sua concordância salvou o vilão, que um criado (sempre ele) tira do túnel para que volte a exercer suas infames práticas. Em "A Grande Mentira", atualmente no 270º capítulo, com exibição em seis Estados, a história inicial e quase todos os teus personagens já se esgotaram há vários meses, depois, que Cláudio Marzo conseguiu unir-se com Míriam Pérsia. Hélio Souto já estava inclusive contratado para uma nova história, quando a emissora resolveu manter "A Mentira" no ar. A solução foi enfiar Hélio na mesma trama antiga. Subitamente, sem que o espectador jamais pudesse desconfiar de sua existência, Hélio chega da Europa e toma posse no posto de galã, abandonado por Cláudio Marzo que foge com Míriam Pérsia em lua-de-mel para a Europa (na verdade, para outra novela, "A Última Valsa"). Hélio assume a proteção da filha do casal desertor (paralítica, é claro, que na semana passada já começa a andar, depois de um susto que sua avó, tresloucada, lhe aplica). Hélio ê um falso cego e (é claro, também) procura saber a identidade de seus pais. Quando finalmente descobre (herda uma mansão e a novela ameaça chegar a um termo), Dona Viridiana, ex-amante do pai de Hélio, toca fogo em sua casa, enlouquece e sai pelas ruas de São Paulo, matando gente sem a polícia conseguir localizá-la. E assim por diante.

Plínio Marcos tem sugestões a fazer para que os personagens da telenovela assumam as responsabilidades que lhes cabem na educação. "A telenovela é ruim assim porque os intelectuais deixaram que ela ficasse assim. E ela está aí para ficar. Quem quiser mudar que entre na briga. Tem muito intelectual metido a bacana, que pensa virar estátua, que se preocupa com o que a História vai dizer dele. Fica sonhando com a Academia e acha televisão um negócio sujo. Estes vão ficar falando sozinhos. Pra mim. o negócio é entrar na briga. E partir pro pau!" Na prática, a disposição de Plínio tem adeptos. Os autores nacionais, bons e ruins, têm entrado no mercado, expulsando os cubanos, nacionalizando a novela (se não nos temas, pelo menos na autoria) e evitando a importação enlatada do dramalhão. No governo Castelo Branco, um grupo de i5 autores e atores de telenovela foi a Brasília protestar contra a vinda de "Peyton Place", que uma emissora queria despejar no País. "A novela é nossa''. "Peyton Place. go home", diziam as faixas de protesto. "A Caldeira do Diabo" acabou vindo, mas a pressão foi tanta que ela saiu do ar bruscamente, depois de poucos meses. "Mas nós a derrotaríamos de qualquer jeito", diz um ator do Canal 4. "Já tínhamos um esquema com os caras que adaptam a história. Num capítulo, de surpresa, converteríamos os Jones (uma família de negros de Peyton Place) ao Black Power (Poder Negro) e estes Jones irritados por sua vez sairiam pondo fogo na cidade, aos gritos de 'Burn baby, burn (Queima, baby, queima)."
Mesmo que o Brasil fosse campeão mundial de mau gosto, por suas telenovelas, Benedito Rui Barbosa não vê como responsabilizar os autores, atares ou anunciantes dessas histórias. Ele faz uma última defesa da telenovela através de um raciocínio absurdo. "O que os críticos queriam? Que a Colgate investisse 1 bilhão (velhos), como está fazendo em 'Algemas de Ouro', procurando apenas criar um programa de educação do gosto popular? Isso é problema da educação nacional, não nosso. Deve ser empurrado para as costas do Governo, não da novela." Realmente é difícil imaginar os heróis da telenovela carregando nos ombros o peso da educação brasileira e vivendo preocupados com o aprimoramento do gosto nacional. Mas também não se pode deixar que eles se tornem completamente irresponsáveis. Neste ano, somando as horas em que todos os brasileiros ficarão expostos às façanhas desses heróis (9 milhões de pessoas, meia hora por dia cada um, durante 320 dias), se obtém quase o mesmo número de horas de aula a que ; todos os alunos de iodos os ginásios, científicos, clássicos e escolas normais assistirão durante o ano (3,2 milhões de alunos, três horas de aula por dia, durante 180 dias letivos). E o exemplo dos heróis, sua fantástica vida de esquemas e ilusões, sai do vídeo, mistura-se às aflições cotidianas do auditório mais ingênuo, produzindo outros dramas, geralmente cômicos, às vezes grotescos, trágicos. A cena altura da novela "Antônio Maria", o herói lusitano regressa de repente a Portugal, aparentemente batendo em retirada diante de diversos infortúnios de um dos capítulos da história. No bairro da Casa Amarela, no Recife, os vizinhos de um cidadão fanático pelo galã começaram a zombar dele, dizendo que o português era um covarde. O recifense passou alguns dias encabulado e irritado, mas, quando Antônio Maria reapareceu, "ora, pois, pois", o homem (depois de sair de casa aos berros de "eu não disse que o Maria não era vigarista?") foi ao meio da rua e soltou um enorme foguete. Quando fazia "O Cara Suja", um imigrante calabrês que se apaixonou por uma dama paulista, Sérgio Cardoso foi abordado rudemente por uma senhora que queria explicações: "Me admira o senhor se prestar a esse papel, querendo incentivar o desrespeito pelas moças de família". A atriz Ana Rosa, que em "Olhos que Amei" era uma mulher má disputando o amor do cigano Hélio Souto, foi ameaçada de morte em duas cartas anônimas. Lurdes Rocha, a cruel Marisa de "Redenção", era obrigada a sair de casa disfarçada, depois de algumas duras experiências com fãs raivosas. Sérgio Cardoso recebeu até uma herança de uma senhora carioca e queixa-se de "aspectos desagradáveis" dessa admiração: "Há senhoras que me procuram em meu apartamento, tentando entrar a tudo custo". Uma mulher de Araxá, Triângulo Mineiro, pedindo o endereço particular do ator, terminava assim: "se não conseguir isso, me suicido". (Não se sabe se a mulher morreu.) Em Porto Alegre, o jornal "Zero Hora" recebeu de um leitor. que assinava "Coração Traumatizado", a seguinte carta: "Sou casado há seis anos e só há pouco arranjei emprego fixo, que me permite estar sempre em casa, com o que me acostumei a ver novelas. Estou vidrado pelo Antônio Maria. O que faço?"
Alguns intelectuais sonham desencaminhar os heróis das telenovelas. Querem tirá-los das trilhas conhecidas, dos domínios regidos pelas cinco leis de Cassiano. E levá-los livremente por caminhos inexplorados, talvez mais fascinantes para o público. Outros intelectuais querem que os heróis continuem com sua vidinha modesta, dentro das leis e da ordem. Se Félix Caignel descobriu a fórmula de emocionar a alma simples do povo, por que ficar irritado com isso? Benedito Rui Barbosa, 38 anos, ex-autor de teatro ("Fogo Frio"), ex-jornalista ("Manchete" e "Última Hora"), autor oculto do livro "Eu Sou Pelé", atualmente escrevendo "A Ultima Testemunha" e "Algemas de Ouro" para a Colgate-Palmolive, repete a pergunta de outra forma: "Qual o mal de oferecer meia-hora de sonho às cinderelas frustradas que não casaram com o príncipe certo?" Nelson Rodrigues, colunista de "O Globo" e do "Jornal da Tarde" que fez muito teatro e algumas telenovelas ("A Morta sem Espelho") sob o pseudônimo de Verônica Blake, defende os dramalhões. "Estou satisfeito e fico exultante com o mau gosto, A telenovela é feita à nossa imagem e semelhança e, portanto, tem que ter o nosso mau gosto. Prefiro 1 milhão de vezes, e digo com toda pureza de alma, uma televisão analfabeta. A telenovela padrão tem de ser esta mesma que os intelectuais acham hedionda." Oduvaldo Viana Filho, autor e ator (escreveu "Chapetuba Futebol Clube", estrelou o filme "O Desafio"), velho militante dos agressivos teatros universitários da época de João Goulart e agora diretor de criatividade na TV Tupi do Rio, também protege o mau gosto: "Nem sou contra os príncipes, as cortes, os elementos de contos de fada que agora estão meio condenados. Afinal, eles fazem realmente parte de nosso mau gosto popular. Vejam as escolas de samba, por exemplo, seus imperadores, princesas. Isso é tão popular quanto o gosto de ver a injustiça vencida no último ato". Com menos teoria e a prática de vários anos de televisão, Waldemar Moraes, diretor artístico da TV Exceistor, São Paulo, ajuda a defesa da telenovela. "Ela é mais positiva que programas mundo-cão, como Chacrinha. Dercy Gonçalves e até mesmo Hebe Camargo, que, de vez em quando, mostra coisas horríveis ao público. E sua linha é muito mais limpa que a de certos programas humorísticos." Walter Clark, diretor da TV Globo, mostra ainda que o brasileiro não tem mau gosto sozinho. "Todo mundo implica com a novela e seu conteúdo. Mas é um fenômeno mundial. Na BBC tem novela tão calhorda como as nossas. E, nos lares americanos, as famílias passam as tardes assistindo a três ou quatro dramalhões." Até onde se estende esse amor pelas histórias "tão calhordas quanto as nossas"? Clark exagera um pouco. Em Buenos Aires, os cinco canais de tevê transmitem diariamente dez horas de telenovelas, de tramas simples e nomes reveladores. "Ella, la Gata", "El amor Tiene Cara de Mujer", ou sugestões mais patéticas como "Estrellita, Esta Pobre Campesina", "Nuestra Galleguita". Mas, nos Estados Unidos, há uma única novela noturna de alguma importância, "Peyton Place" (em português deu "A Caldeira do Diabo"), com apenas uma apresentação por semana e poucos assistentes (em termos de IBOPE, menos de 10%). À tarde há uma história mais popular, "As The World Turns" (Enquanto o Mundo Gira). Desde 2 de abril de 1956, "As The World" conta a história dos Hughes, família rica onde, segundo o "New York Times" acontece "tudo que, felizmente, não acontece com sua família". A fórmula é a de "O Direito de Nascer" com sutis toques de superdesenvolvimento. (Filhos ilegítimos, doenças graves, desquites. E filho que vai para o Vietnam.) Audiência: 15,1%, muito baixa, mesmo para os padrões de novela ruim no Brasil.
- Lima insiste no óbvio: "Beto" não é uma novela inventada por intelectuais denodados que súbita e quixotescamente resolveram enfrentar os monstros da "máquina de fazer doidos", só para elevar o nível cultural do povo. Os intelectuais se vão achegando à telenovela primeiro pela atração dos salários (Bráulio, 8 000 novos por mês; depois virão Jorge Andrade, Fernando Sabino). E nesta aproximação eles não andam sozinhos, mas são guiados pelas mãos experientes dos que conhecem há muito tempo as engrenagens da fábrica de sonhos. Como as de Cassíano Gabus Mendes, diretor artístico do Canal 4. Todos os dias, às 5 horas da tarde, Cassiano recebe os índices de audiência de suas novelas (IBOPE), analisa as histórias que não estão agradando às donas de casa e cria os artifícios para trazê-las de volta aos programas. Saber ouvir e ser sensível à "voz do povo", este seu ofício. O Canal 4 estava em penúltimo lugar entre as televisões de São Paulo e Cassiano, que havia brigado com a empresa (Diários Associados), foi chamado para recompor a emissora com o gosto popular. Com "Beto" e "Antônio Maria", Cassiano fez o Canal 4 subir para os primeiros lugares. "Era preciso criar alguma coisa diferente. Algo que tivesse um 'treco', quero dizer, uma coisa insólita, que marca um personagem, que lhe dá um apelo diferente. Um toque estranho, do simplório - o bigode do António Maria, por exemplo - ao grotesco - a monstruosidade do Dr. Valcour. Chamei o Bráulio e lhe pedi a história de um 'bicão'. Não que o público estivesse cansado da telenovela tradicional. Mas nós precisávamos de algo mais, do 'treco', para entrar violentamente num mercado onde a concorrência aumentou demais. Daí o Beto, um herói meio sem caráter. Este era seu 'treco', que podia pegar. E pegou." Para Cassiano, o sucesso da telenovela depende de o diretor saber trabalhar cinco fórmulas básicas: 1) O Treco. 2) O Mistério, situação chave da história que o público desconhece e os personagens não, ou vice-versa. 3) A Apelação, maneira de subir um IBOPE que está caindo por meio de traumas a gosto do público, como desastres, enlouquecimentos, paralisias, amnésias. 4) O Esticamento, recurso de manter um IBOPE alto esticando a função do personagem ou do capitulo que motivou o alto interesse popular. 5) A Decisão Drástica, forma de destruir um personagem que se incompatibiliza com os espectadores ou com a emissora, mandando-o para longa viagem sem regresso ou mesmo matando-o. "Se 'Beto' começa a ficar muito pesado, chamo o Bráulio aqui e peço a ele para manerar um pouco até a coisa passar." Nos últimos capítulos, "Beto" começou a esticar-se. Nesta semana, os dois adultérios encaminhados (o de Beto com Maria Della Costa e o de Walter Forster com a irmã de Beto) se diluirão para atender à Censura, mostrando que o novo herói não é bem uma ovelha negra desgarrada, pois não perde completamente de vista a trilha do resto do rebanho de ovelhinhas bem comportadas.
Mas o ambicioso Beto conseguirá carregar nas costas todas as esperanças de um futuro melhor? Conseguirá o herói sem caráter transformar-se em valente revolucionário para varrer dos vídeos os galãs padrão mexicano? Lima Duarte, 39 anos, quarenta novelas como ator ("só pai de Hélio Souto já fui cinco vezes"), diz que "Beto" tem um papel muito modesto: "É um ruído incômodo, que vai fazer muita gente pensar na telenovela". Curioso é que "Beto" é de certa forma filho de "O Direito de Nascer". Lima Duarte dirigiu Albertinho Li monta ("os primeiros 26 capítulos, depois não agüentei mais"), Beto era Osvaldo em "O Direito" e Walter Forster, agora amante da irmã e pai da namorada de Beto, foi personagem de Caignel, no rádio. "Não posso falar em revolução", explica Lima, "somos um pedaço minúsculo da imensa máquina de telenovelas e, de certa forma, estamos nela desde seu início."
Por ser fraco e humano, Beto seduziu novos espectadores, muitos jovens e maridos que só pressionavam os botões da tevê para os vídeo-tapes do futebol ou os noticiosos. Alguns intelectuais se entusiasmaram. Décio Pignatari, poeta concreto, professor de Comunicação em São Paulo e no Rio, acha que "Beto Rockefeller" é um dos momentos mais brilhantes da história da tevê brasileira. José Celso Maninez Corrêa, diretor de "Roda-Viva", peça escrita por Chico Buarque de Hollanda, diz que "Beto" deu dignidade ao trabalho dos atores. Em busca dessa dignidade, os artistas de teatro assistem a todos os capítulos da novela, sonhando com um futuro melhor, onde possam combinar os salários mais altos da tevê a textos mais dignos, próximos aos do teatro. A combinação seduz: no teatro (Rio e São Paulo), um primeiro ator não ganha mais de 3 500 cruzeiros novos mensais; nas novelas, esses números se multiplicam. Sérgio Cardoso recebia 15 000 mensais como António Maria. Além disso, apresentando o luso-milionário-chofer em shows, faturou mais de 400 milhões velhos. Agora, Sérgio foi para a TV Globo, do Rio (fará "A Cabana do Pai Tomás"), e seu contrato está em torno de 30 milhões mensais, mais que os 22 milhões livres que Pelé recebe do Canal 9 (Excelsior, SP) para fazer um deslocado escritor policial em "Os Estranhos". E o ator ganha um público que o teatro nunca lhe dará: num só dia tem seis vezes mais espectadores que toda a audiência de todos os teatros brasileiros no ano de 1968 (pouco mais de l milhão e meio de pessoas).
A interrogação sobre o valor da telenovela aparece porque muitos começam a dizer que ela está mudando, ou já mudou. De repente, o Canal 4 de São Paulo começou a contar os golpes de um herói sem caráter. Beto Rockefeller (interpretado por Luís Gustavo), um homem estranho ao universo dos Albertinhos Limontas e Antônios Marias (Sérgio Cardoso, na novela que terminou no último fim-de-semana), todos eles heróis sem mácula de um mundo rigidamente dividido entre os bons, sempre perfeitos, e os maus. sempre péssimos. Beto, um jovem da classe média baixa, é um "bicão", tipo disposto a todos os golpes menores para subir até o ambiente da burguesia paulista. Não é um bandido, propriamente. "Não mata, não rouba, não toma bolinhas nem picadas de entorpecentes", como disse Walter Forster (velho galã radiofônico, um dos diretores do Canal 4) ao censor federal General Aloysio Muhlethaler, que quis proibir "Beto" para menores de dezoito anos. Realmente, Beto não mata ninguém. Mas, no texto fluente e popular de Bráulio Pedroso (autor de "O Fardão", a peça de teatro mais premiada em 1966), o novo herói usa com habilidade e muita frequência todos os outros recursos. Namora várias mulheres com cínica leviandade, deixa-se seduzir pela quarentona experiente e frustrada (Maria Delia Costa) que o convida para ir à Europa atrás do doce tempo da juventude perdida. Ao lado de alguns momentos de lirismo e bondade, Beto persegue infatigavelmente a vida fácil dos burgueses enfastiados. Mente, trai, ilude a todos, ilude-se, foge ao trabalho, combate todas as vilanias miúdas do cotidiano. "Enfim, é um homem; um homem possível", como diz Lima Duarte. diretor da novela. Realmente, Beto existe. Não é um exótico milionário lusitano perseguido pela madrasta, que chega ao Brasil disfarçado de motorista e recitando Camões. Que namora a filha da seu patrão brasileiro, salva-o do descrédito emprestando-lhe 600 milhões (que tira aparentemente da cueca), tudo isso num clima de conspirações mesquinhas e padronizadas, onde várias mulheres se esforçam em vão para quebrar a pudicícia do belo Antônio Maria (maior sucesso em telenovela desde "O Direito").

(http://veja.abril.com.br/arquivo_veja/capa_07051969.shtml)