Machado é uma vitória do estilo
Em: 11/12/2009, às 20H43
Érico Nogueira
Autor de nove romances, quatro livros de poesia, sete de contos, dez peças de teatro, além de críticas, traduções e crônicas, Machado de Assis se tornou um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos ao criar um estilo que disfarçava sua melancolia e sua crítica à sociedade fútil. Parecia usar técnicas exclusivas do realismo, quando na verdade ironizava os costumes e a retórica vazia de seu tempo.
A cada obra, em particular depois de Memórias Póstumas de Brás Cubas, é como se dissesse que ser realista era não tanto ser fiel ao retrato das situações sociais, mas à essência de uma sociedade (ver quadro na página 42). Ao mesmo tempo, a ironia elegante lhe servia, também, como um recurso calculado para expressar a impossibilidade de fazer o relato completo da realidade. Se o sentido das coisas não é estável, tampouco será sólido seu registro.
Críticos literários já notaram que Machado foi levado à elocução irônica e humorística ao buscar a proporção adequada entre o tamanho do texto, a natureza da matéria e o tom do estilo. Teria incorporado alusões que dão, à superfície das situações que descrevia, a força de comentário crítico. O mundo real é menos saboroso para o próprio realismo do que sua projeção ideal. Seu realismo não é fotográfico. O exterior só o interessa na medida em que surte efeitos sobre o íntimo.
Machado de Assis denunciou o misto de moralismo e pseudoliberalismo definidores do projeto de jeitinho brasileiro do século 19. E fazia isso com requintado humor gráfico, não escancarado, com associações de ideias que se desenham na imaginação do leitor.
Em Missa do Galo, por exemplo, retira força do clima de insinuação de erotismo. Machado não descreve a sensualidade, deixa-a ser adivinhada (pela hora da noite, pela ausência do marido). "Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova" (ver quadro na página 41). As chinelinhas da alcova são aqui uma promessa.
Eloquência
O mundo é tecido complexo, de poucas, falsas ou meias verdades. Seu narrador é irônico, está em diálogo com o leitor. Pois seu texto quer cumplicidade, ardil para estabelecer um outro acordo ficcional. No conto "A igreja do Diabo" (ver quadro na página 40), Deus censura a camuflagem retórica do demo, que decide fundar igreja própria (ele o faz com imenso sucesso e uma multidão de adeptos, que com o tempo, começam a fazer o bem às escondidas, que de reações a overdoses vive o mundo).
Machado critica a eloquência fajuta dos moralistas, e, por extensão, a dos escritores de seu tempo (ver quadro na página 41). Na crônica "O punhal de Martinha", no jornal A Semana (1894), ele explicita esse limite (ver quadro na página 40).
Olhar sobre o humano
Machado usava a sutileza a serviço de um olhar compreensivo sobre as fraquezas humanas. Exemplo é o clássico conto "Um Homem Célebre" (de Várias Histórias), que recebeu destaque na excelente exposição dedicada a Machado, realizada ano passado no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo.
O pianista Pestana sonha em ser um compositor clássico. Aprendera música com um padre, que o criara e as más línguas tomavam por seu pai natural, mas é engolido pela fama de criador de polcas. Com tal conflito nuclear, Machado prefere não explorar a filiação de Pestana. Centra-se no cotidiano de um músico que é vencido pelas imposições de mercado e morre famoso, mas sem compor nada do que pretendia.
O conto centra-se na carreira de Pestana e deixa de lado o tema da filiação de Pestana. Mas, como quem não quer nada, lá pelas tantas Machado de Assis mata a curiosidade mundana do leitor, mencionando de passagem: "na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação." E nos dá, discreto, a confirmação dos boatos maliciosos, que, a princípio, prometia nem abordar.
Realismo irreal
No conto Verba Testamentária, de Papéis Avulsos, Machado ironiza a dicção médica ao descrever um caso de inveja tratado como patologia (ver quadro página 40). O autor ilumina os comportamentos insólitos, mas os disfarça em meio a cenários a que estamos familiarizados como sendo realistas, interpreta Ivan Teixeira, num ensaio introdutório a Papéis Avulsos (Martins Fontes, 2005).
A dimensão daquilo que é discurso cria uma realidade própria, que dita os nossos passos e induz o modo como encaramos o próprio mundo. Discurso, convenção social, arte, política, qualquer signo, enfim, cria o próprio objeto e esse objeto se reitera no tempo, se amplifica no espaço, vira tradição, impõe comportamentos, como se fossem a própria realidade material do mundo.
A conversão do mundo em discurso, parece dizer Machado, é talvez a única maneira de realmente representá-lo.
(LCPJ)
Técnicas machadianas |
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Algumas sutilezas de estilo características do autor |
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A ironia fina |
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Em Um Homem Célebre, Pestana aprendera música com padre que diziam ser seu pai. Mas tal filiação não é o núcleo narrativo; daí Machado descartar o assunto. | ||
Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação." |
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O conto mostra um músico popular que desejava ser erudito. O tema da paternidade é esquecido, mas Machado, ao fim do conto, traz o pianista entusiasmado com uma composição e, de relance, confirma os boatos maldosos, que garantira evitar. | ||
A ficção usada para criticar "Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires." |
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Uma das lições de Machado foi cifrar, nas narrativas, seu real pretexto. Em A Igreja do Diabo, o demônio funda igreja própria, com adeptos que, com o tempo, fazem o bem às escondidas. O alvo, no entanto, são os moralistas. Aqui, a crítica ao estilo eloquente dos romancistas. | ||
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As chinelinhas da alcova são uma promessa sensual em Missa do Galo. No conto, Machado retira força do clima de insinuação de erotismo. Não descreve a sensualidade, deixa-a ser adivinhada pela hora da noite, pela ausência do marido. Sem ser explícito, diz tudo o que será feito em seguido por meio de frases como essa. | ||
O uso qualificado da metáfora "Não quero mal às ficções, amo-as, acredito nelas, acho-as preferíveis à realidade; nem por isso deixo de filosofar sobre o destino das cousas tangíveis em comparação com as imagináveis. Grande sabedoria é inventar um pássaro sem asas, descrevê-lo, fazê-lo ver a todos, e acabar acreditando que não há pássaros com asas". |
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Para falar do mundo como tecido complexo, de falsas ou meias verdades, Machado cria a metáfora da realidade que é pássaro sem asas, na crônica O punhal de Martinha, no jornal A Semana (1894). Todo discurso cria realidade própria, que dita os nossos passos. Qualquer signo cria o próprio objeto e esse objeto se reitera no tempo, se amplifica no espaço, vira tradição, impõe comportamentos, como se fossem a própria realidade material do mundo. |
Segredos de Memórias Póstumas de Brás Cubas |
A sátira menipeia |
"Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo." |
Em histórias como Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado idealiza uma situação explicitamente fantasiosa, que poderia passar por piada, mas com registro realista, tom ponderado, o distanciamento e os elementos de realismo que tornam uma situação retratada grotescamente plausível. O autor segue a tradição, que remontaria ao filósofo cínico Menipo de Gandara (século 3 a.C.), de criar um estilo em que se misturam o sóbrio e a abobrinha, o austero e a bagunça, o fantástico e o real. |
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Neste trecho de Memórias Póstumas de Brás Cubas, ele faz uma transição entre tempos da narrativa manipulando uma digressão (sobre o método). Machado forja o próprio leitor derrubando a parede imáginária que, no teatro, esconde a plateia. Aplicada à literatura, é a suspensão da descrença por parte do leitor, a sensação de que não se pensa em si mesmo como audiência de uma história, mas mergulhado nela. Para isso, o autor evidencia a própria artificialidade da escrita. |
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Machado faz descrições realistas, sem idealização romântica. Aqui, em trecho de Memórias Póstumas, contrapõe numa frase o romantismo do tempo de envolvimento ao custo em contos de réis. Personagens românticos se movem por uma motivação nobre, mas os do mundo de Brás Cubas são não raro pueris, movendo-se por interesses risíveis. |
Além do apenas moderno
O jovem Machado: olhar compreensivo sobre as hesitações humanas |
Dito de outro modo, todo discurso tem um léxico e uma sintaxe, os quais tanto o singularizam como discurso específico quanto o adaptam a situações e objetivos comuns a ele. O estilo de um escritor, portanto, nada mais é senão o uso especial, às vezes reconhecível desde o primeiro instante, que caracteriza a escolha e a organização das palavras daqueles discursos nos quais a presença do autor, mais ostensiva ou mais velada, é traço contínuo e marcante.
Segundo Aristóteles (Retórica, livro I), o bom discurso é aquele que adapta seu léxico e sua sintaxe à natureza do seu tema, à situação em que é proferido, ao público a que se destina e ao objetivo que busca.
Sem precisarmos ser aristotelicamente minuciosos, diríamos apenas que o bom escritor, possivelmente, se reconhece pela relação indissolúvel que seu texto estabelece entre as palavras escolhidas e organizadas em frases, de um lado, e o assunto abordado nele, de outro. Figuras de linguagem, demonstrações de habilidade técnica e perícia narrativa, grandeza dos períodos e até o ritmo das frases só se justificam, portanto, se forem ocasionados, na verdade exigidos pelo assunto em questão. Parafraseando o mesmo Aristóteles (agora na Poética): o bom escritor não diz o que quer, mas o que o seu texto requer.
Aristotélico
É nesse sentido aristotélico, pois, que podemos afirmar ser Machado de Assis, não apenas bom, senão grande escritor.
"Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei lhe meti algumas rabugens de pessimismo." - este o famoso trecho da advertência ao leitor, logo à entrada das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Segundo Sergio Paulo Rouanet (Riso e Melancolia, Cia. das Letras, 2007), aliás, o trecho conteria o programa literário que a partir desta celebrizou a obra de Machado.
Ao que acrescentaríamos: a "forma livre" a que este último se refere seria precisamente o seu estilo digressivo, não linear, dado a variar o registro léxico e a construção sintática - precisamente o mais apto a contar uma história, como esta e várias outras anteriores e posteriores no tempo, feita de anedotas mais ou menos díspares, guinadas temporais e detalhes aparentemente fortuitos.
Ademais, o Brás Cubas narrador, como também o Conselheiro Ayres narrador, ao se distanciar, taticamente, do que é narrado, aumenta ainda mais o espaço para que o escritor Machado de Assis, daquela maneira saborosa que lhe é peculiar, se entregue às suas famosas digressões e frases de efeito.
Seu estilo, no entanto, consegue exemplarmente manter o equilíbrio entre as circunvoluções digressivas e a linha reta do enredo - tão exemplarmente que distinguir entre digressão e narração, nas grandes obras da maturidade do autor, é expediente meramente didático que não descreve o principal: na sua escrita as duas andam juntas.
Equilíbrio fino
De que maneira, enfim, os valores estilísticos contidos na sua obra poderiam responder às demandas artísticas do nosso próprio tempo?
Se nos for possível só sugerir uma resposta, diríamos que o estilo dinâmico, plástico, mas elegantemente equilibrado, de Machado parece responder às exigências de flexibilidade, rapidez e vivacidade do mundo atual; e ele, enquanto tais valores forem prezados, continuará gozando da universalidade relativa que cabe a entes periféricos como nós.
Se é que é razoável, como quer que seja, supor que os valores destacados na prosa machadiana tenham um como que fundamento antropológico, uma como que correspondência na maneira de fazer, sentir e compreender o mundo que porventura nos caracterize a nós brasileiros (o que é altamente duvidoso), então a literatura de Machado de Assis, e por meio dela e com ela também a nossa cultura, parece que pode ter alguma coisa a acrescentar, a despeito de insistentes provas contrárias de alguns compatriotas, à tentativa permanentemente universal de compreender a aventura humana.
Salve Machado de Assis. Clássico. Moderno. Além.
Machado no vestibular |
FUVEST 2008 "Meses depois fui para o seminário de S. José. Se eu pudesse contar as lágrimas que chorei na véspera e na manhã, somaria mais que todas as vertidas desde Adão e Eva. Há nisto alguma exageração; mas é bom ser enfático, uma ou outra vez, para compensar este escrúpulo de exatidão que me aflige." Machado de Assis, Dom Casmurro. Considerando-se o contexto desse romance de Machado de Assis, pode-se afirmar corretamente que, no trecho acima, ao comentar o próprio estilo, o narrador procura O "escrúpulo de exatidão" que, no trecho, o narrador contrapõe à exageração ocorre também na frase: |
Érico Nogueira é filósofo e professor dos Módulos de Educação Clássica no Instituto Internacional de Ciências Sociais
Publicado originalmente na Revista Lingua Portuguesa nº 49