Cunha e Silva Filho

 

                            Não foi somente graças ao privilégio do Modernismo de 1922 que a poesia brasileira se descortinou a novos temas e linguagens já então inseridas na modernidade, de modo que - cabe assinalar -, aquela concepção de verso lapidar, clássico, da Antiguidade greco-latina na vaga e lata dimensão hipertrofiada pelo Parnasianismo Ocidental e dentro de nossas fronteiras literárias nunca fora nenhuma novidade pelo menos temática e semanticamente.
                           Quando Manuel Bandeira (1) afirma no poema “Poética” os seus iconoclastas princípios anti-passadistas, na obra Libertinagem (1930) ele apenas esta reafirmando uma posição estética de que a arte do verso clama sempre por liberdade, i.e., que a poesia (lirismo, aqui entendido) não pode se confinar a uma camisa de força de técnica, estratégias e modos de composição de linguagem provenientes do “lirismo bem comportando”, talvez aqui um equivalente da visão de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) ao se referir a produzir poema tendo por motivação uma “dor de cotovelo.”
                          Nas mesmas pegadas desta visão “contra-ideologica” de composição poética, posso incluir o poema “Nova Poética”, da obra Belo Belo((1948) Nele, assim como na mencionada “Poética”, Bandeira reitera a compreensão aguda que tinha na sua época do processo lírico vanguardista. No poema “Nova Poética”, ironicamente e sem falsa modéstia nota-se-lhe uma intenção de “lançar a teoria do poema sórdido.” “Poema sórdido” para ele está vinculado à questão fundamental do Poético, da poesia que não se envergonha de penetrar fundo na vida do homem, sem interdições de qualquer natureza, sobretudo no terreno da linguagem, dos temas apoéticos, do rebaixamento semântico como elemento estruturador de uma poesia que se eleva(2) esteticamente ainda que contaminada do sórdido”, da impureza, da “ nódoa de  lama” lançada no paletó bem engomado ou na calça feita de roupa de brim branca da vida tomada em sua totalidade sócio-linguístico-temática, segundo afirma no poema.
                      Reconhece Bandeira no mesmo poema um lado açucarado da poesia ao defini-la como “orvalho”, lado que, de resto, ele não desconhece porque também tem seu tanto de espaço poético, malgrado em nível estético inferior, assim como os aludidos poemas “dor de cotovelo, lembrados por Drummond.. 
                       Um poesia que seja uma forma de ersatz da “vida possível” como também ocorre com a literatura em geral , e não mero e vazio jogo de palavras do qual nada se possa extrair daquilo que se entende como a existência humana, do homem e seus problemas, do mundo e seus enigmas. Ou seja, a poesia valia a pena somente quando no receptor se desse o encontro da comunicação. Por isso, se fala em humildade na poesia bandeiriana, humildade que se constrói com conhecimento do poético a serviço da emoção e entendimento do leitor. Poesia, pois, anti-elitista nos seus melhores momentos, mas sem concessões a sentimentalismos rasos nem fórmulas vulgares na arquitetura refinada de seus processos de criação artística. Em Bandeira o simples é a comunicação, o complexo são os processos de técnica de criação literária sem que haja nisso nenhuma contradição no campo da Arte.
                     Não teria se inspirado na “Nova Poética” - esta é apenas uma pergunta que me faço - aquela conhecida obra Poema Sujo (1976), de Ferreira Gullar, na qual o lirismo canônico cede lugar ao lirismo tematicamente rebaixado e ao mesmo tempo poeticamente elevado pela nova e complexa forma de trabalhar o poético sem os interditos da poesia da grande tradição literária com pontos altos posicionados nos movimentos clássicos, parnasianos e simbolistas? Não poderia aqui se falar da “desalienação”, empregando o termo marxista para o domínio poético, como substituto eficaz da tradição e da concepção de poesia pura, sacralizada, elitista, repetida em quase todos os movimentos literários ocidentais, com exceção das vanguardas europeias e com influência decisiva na poesia brasileira a partir sobretudo do Modernismo de 22?
                  Dentro destas premissas histórico-literário-ideológicas é que pretendo desenvolver alguns comentários suscitados pelo verso de Luiz Filho de Oliveira, cujo sentido geral de sua poesia, a partir de vertentes inovadoras e até provocadoras, ainda permite um espaço do gênero satírico-humorístico mas - o que nele esteticamente me agrada - um espaço poético atento à modernidade e à tradição literária, ou seja, o seu fazer poético não descaracteriza todas as conquistas diacrônicas do lirismo ocidental, inclusive, me parece, procura elaborar seus poema, seja por razões de puro ludismo (segundo o fizeram magistralmente Da Costa e Silva, Manuel Bandeira e uns poucos poetas brasileiros), seja porque demonstra,até o momento atual de sua produção, inelutável propensão àquela ideia contida n o verso de Bandeira: “Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero”. Esta predisposição, já por Luiz Filho declarada alhures, o leva às fontes da poesia medieval portuguesa, em especial às “cantigas de amigo” e “cantigas de maldizer.” E é com relação a esta segunda modalidade que, a meu ver, se associa o primeiro poema de Das bocadas infernéticas”, o trabalho mais recente do poeta piauiense.
                   Não consigo ver nenhuma incompatibilidade ou contradição de um poeta das novas gerações procurar tanto as fontes genuínas da tradição lusa quanto também inserir-se adequadamente a produzir uma poesia curiosa, criativa e surpreendentemente instigante, poesia que, por seu caráter técnico-compositivo, exige um instrumental crítico arejado e atual.

O poema do livro Das bocadas infernéticas, que serve de título para a coluna de hoje e será objeto de meus comentários deixo transcrito abaixo para o conhecimento prévio do leitor:*

Envite aos vates assinalados a jogar o chiste abaixo assinado

Responda se for fácil:
poderia o Horácio
gozar em Gomorra?!
– Eitaporra!

E o divino Dante
abarcaria uma bacante
num inferninho, na zorra?!
– Eitaporra!

Será que o Gregório,
à porta do empório,
gozou a civil gorra?!
– Eitaporra!

E o nosso Gonzaga
toparia essa parada
de arrochar a corra?!
– Eitaporra!

Que diz o Bernardo,
que o Pajé não “tá armado”,
que não adora a pachorra?!
– Eitaporra!

Então, o Luiz Gama
a bodarrada chama
para prazer as cachorras?!
– Eitaporra!

Mole, o Bananére,
aquele que escreve
até que esporra?!
– Eitaporra!

Seria pastor o Oswald,
em nosso arrebalde,
de ovelha chamorra?!
– Eitaporra!

E o Millôr, noutro agora,
muito novo, embora,
diria “véi, não morra!”?!
– Eitaporra!

E o que pensa disso
o filho Veríssimo,
que é só a modorra?!
– Eitaporra!

E o tal do Chacal,
um vate marginal,
escreve sem porra?!
– Eitaporra!

É este poema, Poeta,
que desse time se-completa
a prender palavras forras?!
– Eitaporra!

NOTAS:

 (1)  BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa Volume único.Rio de Jnneiro: .Editora Nova Aguilar S.A., 1986. Os dois citados poemas de Bandeira se encontram às páginas, p. 207 e 287.
(2)Sempre que me reporto a termos como “elevação” ou “rebaixamento”, estou utilizando-os segundo a concepção que lhes atribuiu o ensaísta e crítico Flávio Kothe. Ver KOTHE, Flávio R. O herói. São Paulo: Editora Ática, 2 ed., Coleção Princípios, 1987.

*Nota do autor:  No próximo mês,  darei continuidade a este texto.