Escritor brasileiro Reginaldo Miranda ao lado da escultura de Inca Garcilaso de la Vega, em Cusco, no Peru.
Escritor brasileiro Reginaldo Miranda ao lado da escultura de Inca Garcilaso de la Vega, em Cusco, no Peru.

Reginaldo Miranda[1]

Em visita ao Museu Histórico Regional de Cusco, nos Andes peruanos, tomei conhecimento da figura curiosa e pioneira do escritor e militar peruano Inca Garcilaso de la Vega, o primeiro mestiço letrado das Américas. Aliás, aquele Museu foi sediado na casa colonial onde ele viveu a primeira fase de sua vida, sendo denominado “Casa del Inka Garcilaso de la Vega”. Na última de suas treze salas, deparei-me com uma escultura em tamanho natural, do homenageado, podendo fotografar ao seu lado.

Nasceu esse pioneiro das letras sul-americanas na cidade de Cusco, antiga capital do Império Inca, Cordilheira dos Andes, em 12 de abril de 1539, apenas sete anos depois da derrota de Atahualpa em Cajamarca. Filho natural de um conquistador espanhol, o capitão Sebastian Garcilaso de la Vega Vargas, pertencente a uma aristocrática família de Toledo, e da princesa indígena Chimpu Ocllo, depois batizada com o nome cristão de Isabel Suárez. Na pia batismal recebeu o nome de Gómez Suárez de Figueroa, esse último um sobrenome da linhagem paterna, em atenção a uma tradição espanhola. Durante sua infância, por diversas vezes, frequentou a corte de Sayri Túpac, seu parente que governava o estado independente inca de Vilcabamba. Foi a oportunidade para conviver e aprofundar o conhecimento das tradições de sua linhagem materna, gente da mais alta nobreza inca. Com a mãe e essa parentela aprendeu a falar a língua quéchua, idioma dominante entre os seus, assim como também aprendeu a falar a língua espanhola, do genitor.

Na qualidade de filho da nobreza, tanto inca quanto espanhola, desde muito moço recebeu esmerada educação, frequentando as aulas de mestres espanhóis na cidade de Cusco, onde aprendeu Gramática, Latim, História e Doutrina Cristã, entre outras disciplinas.

Em 1560, com 21 anos de idade, ruma para Sevilha, na Espanha, a fim de aprimorar os seus estudos, o que, de fato, o fez com muito proveito, estudando os autores clássicos e renascentistas. Levava o coração traspassado de dor pela morte, um ano antes, de seu genitor, que, desde 1549, para atender os anseios da sociedade espanhola, achava-se casado com uma conterrânea nobre, Luísa Martel de los Rios. Entretanto, em testamento deixou um legado para o filho mestiço estudar na Espanha, onde foi recebido pelo tio, D. Alonso. Por seu turno, depois de abandonada pelo companheiro, sua mãe casou-se com um espanhol de origem popular, Juan del Pedroche.  

Embora fosse bem recebido pela família paterna, da linhagem do Marquês de Priego, sentiu o jovem andino na pele a discriminação, tanto pela condição de mestiço, quanto de filho natural. Para suprir esse ex defectu natalium, bem como as necessidades financeiras, pleiteia perante a corte de Madrid, o reconhecimento de seus direitos como filho de um conquistador. Porém, durante as investigações processuais viu seu pleito frustrado porque fora questionada a conduta de seu pai durante a guerra de conquista, aliando-se ao indisciplinado Francisco Pizarro. Com esse revés, o jovem andino pediu licença para retornar ao Peru, cujo pleito também lhe fora negado.

Frustrado com essas negativas, em 1564, senta praça em um regimento militar e participa de guerras em Navarra e na Itália. Posteriormente, em 1570, luta na guerra contra os mouros nas montanhas de Alpujarras, no Reino de Granada, quando alcançou a patente de capitão.

Porém, vai notabilizar-se por seus estudos e pela carreira literária. Assume sua identidade mestiça, usando o nome nativo sem descurar dos apelidos paternos. Passa a assinar-se Inca Garcilaso de la Vega. O acréscimo desse primeiro nome também serviu para diferenciá-lo de seu tio-avô paterno, o consagrado poeta renascentista espanhol de igual nome. Estava, assim, autoproclamado herdeiro e sucessor daquela avançada civilização andina. Por esse tempo, morava na cidade de Montilla, província de Córdoba, na Andaluzia. Em 1589, muda seu domicílio em caráter definitivo, para a cidade de Córdoba, capital da província de igual nome, onde herdou alguns haveres daquele indicado tio paterno que o protegera no reino. Dedicou-se aos estudos humanísticos e lançou-se em um grande projeto literário por ele idealizado, para exaltar a cultura andina e diminuir o preconceito contra a mestiçagem. Ele que era um dos primeiros mestiços nascidos na conquista espanhola dos Andes. E não uma mestiçagem qualquer, mas fruto de duas famílias nobres, a inca e a espanhola, que orgulhosamente procurar reavaliar. Sua mãe era neta do imperador Túpac Inca Yupanqui.

Estreou em livro no ano de 1590, quando lançou em Madrid a tradução de Diálogos de amor, de León Hebreu, pseudônimo do português de ascendência judaica sefardita, Judá Abravanel. Essa tradução é prova de ser um poliglota, conhecendo diversos idiomas.

Em 1605, publicou em Lisboa, a obra La Florida del Inca, onde narra a expedição do conquistador espanhol Hernando de Soto à península da Flórida, na América do Norte. Defende a soberania espanhola naquele território. Nesta obra ele narra a versão de um velho soldado que participou daquele acontecimento, Gonzalo Silvestre, seu amigo desde os tempos em que morara em Cusco, participando da conquista ao lado de seu genitor. Retornando ao reino, por motivo de doença, esse velho militar contou sua versão dos fatos ao notável escritor hispano-americano, que a reduziu a termo e a interpretou em estilo escorreito. A qualidade literária e a originalidade da obra são reconhecidas pela crítica em geral.

Em 1609, Inca Garcilaso de la Vega publica em Lisboa sua obra-prima, para honrar a memória da mãe, ressentido com o tratamento que ela recebera. Com os Comentários Reais dos Incas, reivindica sua linhagem ameríndia, realçando a grandiosidade daquele povo, segundo suas experiências, estudos e memória. Como nobre indígena, era uma forma de legitimação, uma reivindicação de seu status social perante os espanhóis. Nessa vasta obra, prima o autor pela estética literária, interpretando a sociedade inca como um modelo de sociedade e governo. Acompanha aquela civilização desde sua formação até a conquista espanhola, descrevendo costumes, religião, cotidiano, guerras e sistema de governo, entre outros aspectos interessantes. Para ele, graças ao poder da nobreza, os incas construíram uma grande civilização, o que lhes dava o poder de manter o mesmo status social depois da conquista. Aliás, para ele não houve conquista porque aquele povo teria aceitado livremente a presença dos espanhóis para evangelização dos povos. É, de fato, um livro de louvor à grandeza inca, alimentado pela nostalgia e baseado na memória do autor, nas missivas que lhes enviavam os parentes e nos escritos de alguns cronistas, que os interpretou ao seu gosto, ancorado na grande bagagem cultural que adquiriu por fruto de intensas leituras. Para isso muito contribuiu seu conhecimento da língua materna, alcançando vantagem sobre outros intérpretes que não compreendiam alguns vocábulos. Esse livro é uma exaltação da cultura inca, uma forma que encontrou para se autoafirmar na Europa, mostrando que descendia de um povo civilizado.

A segunda parte desses Comentários foi publicada postumamente em Córdoba, no ano de 1617, com o título de História General del Peru. Para alguns, essa segunda parte parece contraditória, porque enquanto exalta na primeira, a grandeza da civilização inca, nesta defende a conquista espanhola para divulgação do Evangelho. Ora, essa aparente contradição é fruto de sua assumida origem mestiça, um intelectual que era filho de dois mundos e os analisava com o objetivo de afirmar-se na sociedade europeia. Para ele, enquanto os incas encontravam-se no ápice de uma grande civilização, faltava-lhes apenas o Evangelho que foi levado pelos castelhanos, daí que ele deveria ser recebido como um igual pelos europeus, porque descendia de ambos os lados, de povos avançados.

Faleceu no Hospital Clean Conception, da cidade de Córdoba, em 23 de abril de 1616, coincidentemente no mesmo dia em que morreram Miguel de Cervantes e William Skakespeare, sendo, assim, um dia fatídico para a literatura ocidental. Possuía 77 anos de idade. Foi sepultado em uma capela por ele mandada construir na Catedral de Córdoba. Deixou um filho.

Inca Garcilaso de la Vega, foi um pioneiro, o iniciador da literatura latino-americana, um dos mais completos cronistas da época colonial, um renascentista de apurado estilo, com amplo domínio da língua espanhola, um poliglota, um humanista, autor de uma ambiciosa e original obra historiográfica, centrada no passado americano, especialmente na civilização inca. O pioneirismo, a originalidade e a beleza de sua prosa despertaram o interesse e leitura de filósofos, cientistas, ideólogos, revolucionários e intelectuais em geral que despertaram o interesse de conhecer a história daquela grande civilização andina. Segundo foi anotado em uma placa fixada ao lado de seu monumento, “na Europa leram sua obra: John Locke, Voltaire, D’Alembert, o Barão de Holbach, Campanella, Francis Bacón, Louis Mercier, Montesquieu, Morelly que funda o Socialismo Utópico, Marmontel que escreve ‘Las Incas o la destrucción del Imperio del Perú’, Diderot conjuntamente com o presbítero Raynalk escrevem o Tomo III da ‘Filosofia y Moral de las Indias’, Madame de Grafigny que excreve a obra ‘Les Lettres d’une Peruvienne’ e Alexander von Humboldt. Na América a leram, Francisco de Miranda, Thomas Jefferson, San Martin, Simón Bolívar, Túpaq Amaru II e outros intelectuais que influíram na independência da América”. Vê-se, pois, a influência que sua obra tanto na independência das colônias na América, quanto no pensamento ocidental, merecendo, assim, figurar em lugar de destaque na literatura espanhola e latino-americana.

 


[1] REGINALDO MIRANDA, advogado e escritor, é membro da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. Contato pelo e-mail: [email protected]