Já imaginaram, leitores, hora mais difícil do que fazer mudanças de um lugar para outro, sobretudo de um bairro para outro? Já pensaram nas agruras de um modesto professor ter que desencaixotar quase dois mil livros e, depois, organizá-los sozinho, sôfrego para que a arrumação seja logo feita? Não gosto de ver livros embalados. Livros foram escritos para serem expostos aos leitores e conseqüentemente para serem lidos. 
            Não, vocês, nunca farão idéia da canseira que isso traz ao corpo de um sessentão naquela fase em que tudo começa a doer, principalmente a maltratada espinha dorsal. 
            Pois é isso que há pouco fiz de forma ainda inconclusa. O difícil não é ver os carregadores levando nos ombros fortes as pesadas caixas atulhadas de volumes de todos os tamanhos, de todas as idades, dos mais bem avançados em idade (um livro de cartas do padre Antonio Vieira, um outro de Antonio Henriques Leal, uma gramática latina), – este último prestes a entrar em coma - a outros não muito idosos, porém inteiros. 
            O difícil é desencaixotar os muitos livros que venho reunindo em forma de biblioteca há mais de quarenta anos. 
            Alguns são velhíssimos amigos e companheiros de cuja convivência não quero me separar malgrado as freqüentes queixas da minha mulher que nunca vai entender o sentimento profundo que nutro por eles ao longo de todos esses anos comigo. Só quem ama os livros pode me entender nessa circunstância. 
            Uma outra dificuldade com que me deparo numa situação de mudança é o momento decisivo da organização nas prateleiras, que não pode ser feita a esmo. Há que pensar nas áreas de conhecimento, agrupando os volumes adequadamente: literatura brasileira, portuguesas, francesa, inglesa, americana, espanhola, alemã, latina, grega, filologia, lingüística, história, sociologia, filosofia e outras áreas afins ou não. Há ainda que haver espaço para os dicionários, as gramáticas, as revistas, os recortes de jornais, os documentos de anotações. Que azáfama! 
           Finalmente, depois que assim são organizados e já se encontram nas estantes, vem-me certo sentimento de encanto, uma certa magia de vê-los juntinhos, coladinhos, por áreas conexas, prontos para o deleite de nosso olhar, para a admiração de suas diferentes cores, cheiros, lombadas, formatos, tamanhos, alturas, tempo de vida impressa. Assim, dá gosto olhar para eles que, diante de nós, estão aparentemente silenciosos, mas que, na realidade, estão é doidos para que os tomemos nas mãos, a fim de, na condição de receptores de seus textos, fazê-los assumir sua imensidade de vozes, suas mensagens, seus sentidos, seus enigmas, suas verdades ou falácias. 
           Falei-lhes, leitores, que a minha arrumação está inconclusa. Isso é compreensível, porque, na seleção que fazemos para a colocação nas prateleiras, sobram sempre alguns volumes que nos parecem ainda incaracterísticos, já que se trata de livros e obras de difícil classificação ou de menos valor, os quais relegamos para segundo plano, permanecendo à margem de nosso rigor seletivo ou até com possibilidade de serem descartados de nosso acervo, seja porque já não me interessam mais, seja porque não há espaço suficiente a fim de que sejam acomodados. Ocorre que o espaço útil – que é o disponível de um apartamento pequeno -, significa lei na seleção natural. O mesmo acontece com os recortes de jornais e revistas. Como dói ter que descartá-los! 
           São os volumes prestes à ação do abandono. Deles tenho, entretanto, pena porque, mesmo como são, não amaria vê-los ao relento, maltratados feito cães sem dono, sem que ninguém os acolha, sendo até desprezados por vendedores de sebos – logo estes - que ironia! – o último refúgio de alguns livros abandonados. Oh, tristes livros da solidão das ruas, do lixo, dos monturos, do esquecimento, do nada...