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[Dílson Lages Monteiro – da Academia Piauiense de Letras]

Citando Antônio Cândido, Ramos (2015: 22), ao buscar as razões para a vivência da literatura como direito básico, esclarece que a arte construída pela palavra, espaço da fabulação, do simbólico, "compreende desde criações populares, como mitos e lendas, até as eruditas, entre outras manifestações universais". Para a pesquisadora, "não há homem que possa viver sem fabulação, sem invenção, sem a criação de histórias". A literatura é, nesse sentido, "uma necessidade universal a ser satisfeita".   

A pesquisadora conclui:

"A literatura é, pois, fator indispensável de humanização; permite que os sentimentos passem de simples emoção para uma forma mais concreta, ou seja, tornem-se conscientes, uma vez que são experienciados pelo leitor" (RAMOS: 2010, 22).

Em resumo:

"A literatura confirma, assim, o homem na sua humanidade, atuando na memória coletiva da sociedade" (RAMOS: 2010, 22).

De que maneira se opera esse processo? Pela criação de um mundo semelhante ao real, mas permeado pela imaginação. Um mundo construído pela aproximação “entre (a) o modo de dizer (a estrutura do texto); (b) a temática veiculada; e (c) as inquietações do leitor ou ouvinte” (PANOZZO & RAMOS: 2015, 23). Desse processo, resulta, conforme a pesquisadora, "manifestação empenhada numa mensagem ética, política, religiosa ou social".

A literatura não se restringe ao plano da linguagem escrita. Também se materializa pela oralidade. Concebem-se como textos literários aqueles que “contam ações humanas que aconteceram, mas sempre inventando um pouco, ou ações totalmente inventadas, a partir de algum elemento (da realidade)” (RAMOS: 2010, 19). A literatura representa, desse modo, “uma ação humana e contém traços de invenção”. Como não se limita às manifestações escritas, conforme lembra Antônio Cândido, “Causos, contos, lendas, chistes e cantigas são exemplos de manifestações literárias”.

 

No caso específico da literatura infantil, e particularmente do gênero poema infantil, por exemplo, é preciso considerar a necessidade de que há no texto "uma linguagem inusitada, expressa em jogos interativos, que "reorganizam a realidade próxima da infância em esquemas mentais (de entendimento) e corpóreos (de sons e ritmos, na matéria orgânica do poema), fazendo com que o cotidiano possa ser visto e sentido como nunca o fora antes" (AGUIAR: 2006, 8), conforme se ilustra no poema:

 

CaNÇão dE JUntO dO BErçO

 

Não te movas, dorme, dorme

o teu soninho tranquilo.

Não te movas (diz-lhe a Noite)

Que inda está cantando um grilo...

 

abre os teus olhinhos de ouro

(O Dia lhe diz baixinho).

é tempo de levantares

Que já canta um passarinho...

 

Sozinho, que pode um grilo

Quando já tudo é revoada?

E o Dia rouba o menino

No manto da madrugada...

 

(Mário Quintana)

 

No poema de Quintana, o ludismo e a plurissignificância,  peculiares à literatura se concentram, sobretudo, no encantamento da percepção do dia que nasce, a partir das visualidade do tempo que passa e das sensações oriundas disso. A calmaria, o canto do grilo (representação da noite), o canto do pássaro (representação do dia), o próprio Dia (com inicial maiúscula, para enfatizar a sua grandeza sobre tudo, só não superior ao afeto e à ternura que se dissolvem em todo o poema, com a intenção de focalizar o desejo de proteção e de carinho que se apodera de toda criança, gerando, inclusive, para a criança leitora, o grau de identificação necessário para que, pelos interditos e associações sonoro-imagéticas, o texto se apresente como adequado a esse público-leitor).

A representação mental e sonora da ternura, já referida, sintetiza-se nos versos, “E o Dia Rouba o menino/ No manto da madrugada”. Mas é no próprio título, grafado para facilitar a percepção do ritmo, grafado, rompendo as convenções da escrita, com iniciais maiúsculas em meio à letras minúsculas, que a ternura, a partir da dimensão plástica da linguagem, configura-se com maior propriedade: ora pela fusão entre os sentidos, oriundos de palavras como canção e berço (analogia espontânea, funcionando tal qual uma alegoria), ora pelo destaque dado aos sons fortes, que, em maiúsculas, facilitam a mediação e o diálogo com os sentidos gerados pelo texto.

A literatura infantil se caracterizara, como toda manifestação literária, como espaço do ludismo, do jogo, da polissemia. Nos textos destinados às crianças é que esses aspectos composicionais devem ser mais destacados: constituem-se em critérios para se determinar se estão destinadas ao público infantil. Ressalte-se que a negação desses fatores se faz por textos que se concentram em valorar, em sua escritura, a doutrinação e o pedagogismo, obscurecendo ou eliminando os espaços vazios para a atuação do leitor. Devem, portanto, os textos para crianças, gerar questionamentos, incertezas, além de apresentarem o mundo sob a ótica dos infantes. Ademais, o livro infantil destaca a visualidade e a oralidade, a fim de aproximar o texto do leitor, que deve ter uma função ativa. Segundo Ramos (2010:26), “não cabe apenas buscar os sentidos do texto, colhê-los, mas gerá-los, a partir de suas vivencias”.

Para Hurt, 

“A literatura infantil possui em si gêneros específicos: a narrativa para a escola, textos dirigidos a cada um dos sexos, propaganda religiosa e social, fantasia, o conto popular e o conto de fadas, interpretações de mito e de lenda, o livro-ilustrado (em oposição ao livro com ilustração ) e o texto de multimídias” (2010: 44).

Seriam essas manifestações literárias, a partir dos gêneros que congregam e de suas formas de dizer, mais fáceis e de menor valor literário, inferiores à literatura dita adulta?  Há hoje uma convicção de que, apesar dos preconceitos contra a escritura para crianças ainda em vigor, inclusive entre críticos acadêmicos, é preciso fazer justiça em favor desse gênero, redefinindo o que é literatura. Afinal, “a literatura infantil (e seu estudo) atravessa todas as fronteiras genéricas já estabelecidas, históricas, acadêmicas e linguísticas” (HURT: 2010, 49). Para tanto, é necessário desfazer-se dos motivos que geram resistência a essa literatura: o pressuposto de que se trata de escritura necessariamente simples, inferior a outras literaturas; também a premissa de que a maioria dos textos é trivial, destinada a uma cultura menor. Ora, cabe que, conforme Hurt, considere-se o entendimento de como se forma as habilidades da criança leitora, assim como as características próprias da literatura infantil. 

Referências:

AGUIAR, Vera Teixeira(coord.), Simone Assumpção, Sissa Jacoby:ilustrado por Laura Castilhos.PoESia FoRa da EstANtE. Porto Alegre: Editora Projetos: CPL/PUCRS, 2006.

HURT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

RAMOS, Flávia Broccheto. Literatura infantil de ponto a ponto. Curitiba: Editora CRV, 2010.

PANOZZO, Neiva Senaide Petry & RAMOS, Flávio Brocheto. Mergulhos de leitura: a compreensão leitora da literatura infantil. Caxias do Sul-RS: Educs, 2015.