Literatura: declínio da crítica literária?

[Cunha e Silva Filho]

Leitores mais antigos, como eu, há tempos vêm se habituando a algumas notícias sobre gêneros literários, notícias nada alvissareiras, em particular anunciadoras da morte da poesia, que seria uma heresia tremenda. Agora, leio na Folha de São Paulo (caderno Ilustríssima, literatura, 17/04/2011, p. 6, ilustração de Paulo Monteiro) uma parte, a quarta, de título “O piano” – narrar, representar, interpretar (trad. de Paulo Werneck, de um diário de Ricardo Piglia, ficcionista argentino estabelecido nos EUA na condição de professor da Universidade de Princeton. Nessa parte, Piglia, por sua vez, anuncia o “sumiço” da crítica literária, gênero que teve ( e eu diria ainda tem em várias partes do mundo) eminentes cultores, alguns nomeados por ele como Iuri Tiniánov ( 1894-1943) Franco Fortini (1917-1994), Edmund Wilson ( 1895-1972) Ainda segundo Piglia, a crítica literária tem sido “.. mais afetada pela situação da literatura.”


 Essa tradição de crítica para ele já foi um espaço de referência nos debates públicos voltados para o que denomina “ construção de sentido de uma comunidade”


Por outro lado, Piglia assinala com ênfase que as vozes de interpretação literário-crítica de hoje se encontram nas mãos de historiadores renomados, tais como Carlo Ginzburg, Robert Darnton, François Hartog ou Roger Chartier. Piglia conclui palidamente, nessa página do diário relativa cronologicamente a uma “terça-feira,” que os citados historiadores tomaram como matéria de estudos a “leitura dos textos,” que se torna “um assunto” do passado ou do estudo do passado.”, circunstância que, todavia, não lhes diminui o peso valorativo de seus trabalhos relacionados a assuntos literários e culturais em geral, porém voltados notadamente ao passado.


 As assertivas de Piglia me soam um tanto ambíguas, sobretudo porque nesse mesmo trecho do diário, ao declarar ser a crítica o gênero “mais afetado pela situação atual da literatura” (grifos meus), ele não explicita adequadamente sobre que “situação atual” está falando, assim como não faz a necessária mediação entre produções de historiadores modernos e crítica literária. Deixa, assim, no ar as divisões de esferas de atuação de escritas e temas diferentes, não obstante conectadas ao passado. 


De qualquer maneira, o que se tem visto de estudos atualmente no gênero da crítica e do ensaio literários são autores oriundos de campos especializados fora do eixo central da literatura, i.e., os historiadores passam a exercer uma função crítica de uma área cultural para a qual em tese não tiveram preparação teórica estrita, que se resumiria no aprofundamento de disciplinas específicas e que demandam tempo prolongado e “treinamento” apropriado, para usar um termo de Terry Eagleton, dos alunos de literatura por parte de seus professores, sobretudo nas técnicas de análises de poemas.O crítico literário, por sua vez, não pode exercer sua atividade sem seguros conhecimentos das disciplinas teoria literária, ciência da literatura,, poética, história literária, linguística, filologia, gramática, línguas clássicas e línguas modernas. São elementos vitais ao estudos de letras que, sem elas, a competência do estudioso se torna, ipso facto, incompleta 


O mesmo procedimento estender-se-ia aos textos ficcionais, estes talvez os mais procurados pelos críticos-historiadores dadas as relações mais íntimas entre a narrativa histórica e a narrativa ficcional. Com uma situação análoga se depararia o crítico literário ao defrontar-se com a matéria prima dos historiadores. Ainda haveria oura possibilidade, ado historiador pesquisando o chamado romance histórico, conhecido também como ficção de extração histórica, filão de estudos literarios muto pesquisado ultimamente nos curso de literatura. Deste último exemplo, as visões dos historiadores e dos cxríticos seriam bem férteis ao lidarem com esta matéria.

 
Não se queira inferir que estou tentando afirmar ser impossível – como na prática não o é -, com tantas exceções de bons críticos literários terem sido também autores de obras históricas, como no país, foram Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), o general Nelson Werneck Sodré (1911-1999), Álvaro Lins (1912-1970) e outros. Neste sentido, há ainda outras situações, a de escritores-ficcionistas que escrevem romances históricos, assim como historiadores que escrevem ficção, por exemplo, no passado, Rocha Pombo (1857-1933).


Poder-se-ia incluir algumas outras situações isoladas, como a do romancista-crítico, do romancista-poeta-crítico, situações que, de resto, não são decorrentes dos dias de hoje apenas, pois sempre houve escritores com talentos polimorfos capazes de atuarem em diversos gêneros literarios. Enfim, existem ainda aqueles intelectuais formados em áreas dissociadas do campo da literatura, mas que, com o tempo, fizeram opções para este campo, ou por estudos independentes (caso do citado Álvaro Lins, formado em direito, mas dedicou-se a lecionar literatura (Colégio Pedro II e em Portugal) e exerceu a crítica literária, além de ter sido diplomata), ou porque realizaram cursos até fora do país, como ocorreu com Afrânio Coutinho (1911-2000), primeiro formado em medicina, e depois se tornando professor do ensino médio (Colégio Pedro II) de literatura e, em seguida, fez cursos na Universidade de Colúmbia De volta ao Brasil, tornou-se professor titular de literatura brasileira da Universidade do Brasil, hoje UFRJ., com Fábio Lucas, formado, primeiro, em economia e, pela vida afora, dedicou-se à crítica literária, tendo sido também professor no país e no exterior. Alguns outros exemplos semelhantes se poderiam mencionar.

Uma diferença, no entanto, é clara, a qual separa os dois extremos, historiadores-críticos e críticos-historiadores, tanto estes quanto aqueles, para serem bons, devem se munir de abordagens críticas que terão maior validade a partir de sua formação específica, num caso o instrumental interpretativo da disciplina história e de áreas afins; no outro, o do conhecimento literário, de preferência com aparato formal, ou seja, de domínio da teoria literária e de áreas afins. A questão que se põe se assenta no predomínio do estritamente literário ou do estritamente histórico. Ambos, entretanto, operacionalizados sem clivagens radicais.


 Não intento afirmar, com isso – é preciso reiterar -, que a formação universitária e pós-universitária na área de letras vá prescindir do inestimável suporte interdisciplinar. Longe disso. Áreas de extrema importância ao estudioso de letras como história, filosofia, sociologia, antropologia, entre outras, só haverão de ampliar a formação integral do especialista.


Bem podem ser até excelentes as produções de obras sobre ficção escritas por competentes historiadores. No entanto, a “leitura” destes não pode ser comparadas às investigações de críticos e de grandes ensaístas com ampla e sólida formação no domínio especificamente literário.


 A visão crítica do historiador, ao se debruçar sobre escritores de ficção, gênero mais aproximado, segundo já ressaltei, da disciplina história, porém dificilmente alcançado pelo gênero poético na práxis da análise de poemas, pode seguramente atingir dimensão de leitura bem originais e fecundas, mas não chegarão a preencher plenamente os objetivos visados pelos estudiosos da literatura, exceto se o historiador também tiver formação acadêmica avançada em cursos de letras.


Destarte, não vejo o anúncio do “sumiço” da crítica literária do ângulo generalizado do ficcionista argentino. Ele exagerou na generalidade.ou, por outra, simplificou demais a complexidade da questão.
Por certo, na atualidade, sinal dos tempos, qualquer domínio, seja humanístico, seja científico-tecnológico, atravessa impasses, crises, tensões e problemas de identidade.


 No país e no mundo há grandes críticos, no passado e no presente, assim como ensaístas. Os estudos dos gêneros literários, a genologia, não estão atualmente sendo tão discutidos quanto às suas especificidades e fronteiras? Nem por isso julgo que desaparecerão dos domínios da literatura. Se algumas espécies se extinguiram com o tempo, outras nasceram, se transformaram, ou surgiram, como o romance, a novela, a peça teatral, o poema, embora tendo sofrido mudanças estruturais no tempo, ainda são perfeitamente discerníveis aos olhos do presente no que tange aos seus traços, fisionomias e singularidades. 
 

Obviamente, o texto ficcional e o poema da nossa contemporaneidade – e aqui me reporto ao século atual da sua primeira década -, não podem nem devem ser decalcados , sob pena de se tornarem anacrônicos, na tradição mais remota ou mesmo remotíssima. Os casos isolados de experimentações metaficionais ou metapoéticas, no eixo diacrônico são compreensíveis do ângulo mimético-experimental, válidos como tentativas de recriações de ordem lúdica, de saudáveis experiências com a linguagem., ou como formas de sondagens do fenômeno da criação literária. 
 

 À crítica literária, para não perder o bonde da história ( sem propósitos de trocadilhos), cabe a atenta revisão e atualização dos seus métodos e abordagens ou de preferências de correntes interpretativas do fenômeno literário, sem no entanto, perder sua função primordial, a de procurar ler melhor a obra literária servida de um instrumental teórico atualizado, aberto e sem perder tampouco o zeitgeist – o tempo presente naquele sentido que lhe deu Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) em conhecido poema.  Presente este com a sua variada e múltipla contribuição advinda das novas formas de construção de sentidos e imagens e, portanto, de entender o mundo que nos cerca, bombardeado pelos novos meios eletrônicos de comunicação, cujas mudanças mal acompanhamos perplexos: a internet, as redes sociais, com suas virtudes e defeitos ou mesmo males, nos seus variados modelos, a planetarização da informação, os diverso meios de sintonia com um Planeta globalizado e ao mesmo tempo conturbado com violações e misérias de toda sorte.


A crítica literária não está fora desse contexto de complexidades, muitas vezes irritantes para quem vai adentrando os anos de existência.A crítica literária não “sumiu.” Está presente. Basta ter olhos mais humildes para encontrá-la em muitos quadrantes, muitas latitudes, longitudes, temporalidades e escalas de valores. Não importa, existe.
 

Cunha e Silva Filho é doutor em Literatura pela UFRJ