Lima Barreto nos olha

 O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha.

GEORGES DIDI-HUBERMAN

Lima Barreto em sua última passagem pelo hospital (1919)

Noite de Natal de 1919. O escritor Lima Barreto (1881 – ­1922) é levado, delirante, ao Hospício Nacional de Alienados, o antigo Hospício Pedro II que mudara de nome com a República. Recebe um uniforme, na verdade um pijama, é iden­tificado e fotografado.

Por uns bons 20 anos procurei por essa foto, mesmo não sabendo se ela realmente existia. Nunca percebi bem o porquê, mas, como parte de minhas pesquisas sobre o autor, parecia ser preciso ver o registro oficial dessa entrada no mundo da loucura, descrita por ele mesmo no grande momento de sua obra que é o Diário do hos­pício. Talvez porque nunca me recuperara completamente da emoção experimentada ao ler, na Biblioteca Nacional, escrito a lápis, no verso das folhas já usadas que conseguira da dire­ção do hospício, o relato dos três meses que o autor passou entre os loucos, desvalidos ou criminosos recolhidos ao edi­fício que mais se assemelhava a um palácio, na praia da Sau­dade, antigo nome da praia Vermelha, naquele tempo em que o prédio ficava bem em frente ao mar. As referências feitas ao recolhimento em A vida de Lima Barreto,1 preciosa biografia de Francisco de Assis Barbosa, não se mostravam suficientes. Ainda faltavam peças.

Em 2004, depois de acabar o trabalho de organização e comentário do conjunto de crônicas do autor, enquanto a edi­tora preparava os dois volumes de Toda crônica,2 tentei mais uma vez encontrar o livro de registros do hospício no Insti­tuto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no campus da praia Vermelha. Deve fazer algum sentido que o prédio do século XIX, construído para ser o Hospício Pedro II, tenha passado a abrigar em meados do século XX a reitoria da Universidade do Brasil e depois parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituições totais?

Ainda não seria daquela vez que encontraria a prova material do que tinha sido relatado no diário, que me defrontaria com o registro da época, com documentos que se pretendiam, por pertencerem ao mundo da ciência, objeti­vos. Os livros tinham, ao que parece, saído em viagem. Pouco depois, no entanto, uma servidora da biblioteca do Insti­tuto de Psiquiatria, para onde o material tinha sido levado, entrou em contato comigo dizendo que encontrara o que eu procurava. Peças da memória da Psiquiatria, como máquina de eletrochoques, negativos em vidro e os livros de registro começavam a se organizar, ainda bastante precariamente naquele ano, na biblioteca.

Lima Barreto em sua primeira internação, em 1914

Lima Barreto em sua primeira internação, em 1914

Fui correndo, ansiosa, como que atendendo a algum tipo e chamado. E lá estavam, o registro e a foto, que nunca tinham aparecido diante dos olhos de alguém fora da insti­tuição. Por alguma razão, nem mesmo o biógrafo tivera acesso à imagem em suas vastas pesquisas. Em seguida, chamei um fotógrafo, que não só registrou a imagem do interno como, inoculado também pelo que de mágico parecia haver naque­les livros mantidos como secretos, reproduziu outras páginas – incluindo a anamnese feita pelo médico e outros documentos de internação, além da imagem de outros internos, fotos que seriam também importantes para compreendermos o pro­cesso de recolhimento.

 

Leia na íntegra, o ensaio da professora Beatriz Resende na Revista Serrote