Lima Barreto nos olha
Em: 26/07/2017, às 11H17
O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha.
GEORGES DIDI-HUBERMAN
Noite de Natal de 1919. O escritor Lima Barreto (1881 – 1922) é levado, delirante, ao Hospício Nacional de Alienados, o antigo Hospício Pedro II que mudara de nome com a República. Recebe um uniforme, na verdade um pijama, é identificado e fotografado.
Por uns bons 20 anos procurei por essa foto, mesmo não sabendo se ela realmente existia. Nunca percebi bem o porquê, mas, como parte de minhas pesquisas sobre o autor, parecia ser preciso ver o registro oficial dessa entrada no mundo da loucura, descrita por ele mesmo no grande momento de sua obra que é o Diário do hospício. Talvez porque nunca me recuperara completamente da emoção experimentada ao ler, na Biblioteca Nacional, escrito a lápis, no verso das folhas já usadas que conseguira da direção do hospício, o relato dos três meses que o autor passou entre os loucos, desvalidos ou criminosos recolhidos ao edifício que mais se assemelhava a um palácio, na praia da Saudade, antigo nome da praia Vermelha, naquele tempo em que o prédio ficava bem em frente ao mar. As referências feitas ao recolhimento em A vida de Lima Barreto,1 preciosa biografia de Francisco de Assis Barbosa, não se mostravam suficientes. Ainda faltavam peças.
Em 2004, depois de acabar o trabalho de organização e comentário do conjunto de crônicas do autor, enquanto a editora preparava os dois volumes de Toda crônica,2 tentei mais uma vez encontrar o livro de registros do hospício no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no campus da praia Vermelha. Deve fazer algum sentido que o prédio do século XIX, construído para ser o Hospício Pedro II, tenha passado a abrigar em meados do século XX a reitoria da Universidade do Brasil e depois parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituições totais?
Ainda não seria daquela vez que encontraria a prova material do que tinha sido relatado no diário, que me defrontaria com o registro da época, com documentos que se pretendiam, por pertencerem ao mundo da ciência, objetivos. Os livros tinham, ao que parece, saído em viagem. Pouco depois, no entanto, uma servidora da biblioteca do Instituto de Psiquiatria, para onde o material tinha sido levado, entrou em contato comigo dizendo que encontrara o que eu procurava. Peças da memória da Psiquiatria, como máquina de eletrochoques, negativos em vidro e os livros de registro começavam a se organizar, ainda bastante precariamente naquele ano, na biblioteca.
Fui correndo, ansiosa, como que atendendo a algum tipo e chamado. E lá estavam, o registro e a foto, que nunca tinham aparecido diante dos olhos de alguém fora da instituição. Por alguma razão, nem mesmo o biógrafo tivera acesso à imagem em suas vastas pesquisas. Em seguida, chamei um fotógrafo, que não só registrou a imagem do interno como, inoculado também pelo que de mágico parecia haver naqueles livros mantidos como secretos, reproduziu outras páginas – incluindo a anamnese feita pelo médico e outros documentos de internação, além da imagem de outros internos, fotos que seriam também importantes para compreendermos o processo de recolhimento.
Leia na íntegra, o ensaio da professora Beatriz Resende na Revista Serrote