Li e gostei dos livros

"Recentemente encontrei num livro de gramática, no capítulo sobre regência, o seguinte período: ‘Li e gostei dos livros’. Logo abaixo vinha um comentário dizendo que o correto, segundo a norma culta, seria ‘Li os livros e gostei deles’ pois neste período aparecem verbos de regência diversa.(...)"

De acordo com o rigor gramatical, não se poderia dizer, para dar outro exemplo, "Entrei e saí de casa em questão de minutos", porque entrar e sair pedem preposições diferentes (entrei em casa e saí de casa) e sendo assim a primeira preposição sai prejudicada, isto é, desaparece.

É preciso observar, de início, que no português brasileiro, diferentemente de outras línguas, costuma-se deixar de fora o complemento verbal quando já houve menção anterior. O complemento existe, só não está explícito:

- Você viu o Paulinho?
- Vi. Vi (-o) há pouco.

- Fizeram os deveres?
- Fizemos, sim. [E não: Fizemo-los / Nós os fizemos]

- Não sei se a vovó gosta de manga.
- Claro que gosta (dela/disso).

- Entregou a pasta ao juiz?
- Sim senhor, entreguei (-a a ele). [ou entreguei-lha]

- Entraste no escritório cedo?
- Entrei (no escritório) às sete.

- A que horas você saiu de casa?
- Saí (de casa) ao meio-dia.

É por isso que se admite como correta, no Brasil, a seqüência de dois verbos de regência diferente com um só complemento, o qual – reforço – fica subentendido no primeiro verbo. Em outras palavras, não há necessidade ou obrigação de repetir o complemento verbal ou nominal, desdobrando-se a frase, como alguns querem nos impor. Por favor, não vamos levar tão longe a nossa regência!

Vejamos alguns exemplos: a primeira frase é a versão normal, mais solta; entre parênteses, a que algumas gramáticas sugerem, muitas vezes artificial:

Fui e voltei de Cerquilho no mesmo dia. (Fui a Cerquilho e de lá voltei no mesmo dia.)
Você é contra ou a favor das mordomias? (...contra as mordomias ou a favor delas?)
O valor pode ser maior ou igual a zero. (O valor pode ser maior que ou igual a zero.)
Conheceu, apaixonou-se e casou-se com Maria. (Conheceu Maria, apaixonou-se por ela e casou-se com ela.)
Exaltaram o orgulho e o amor ao país. (Exaltaram o orgulho do país e o amor a ele.)
Apareceu e sumiu de casa sem que ninguém percebesse seus movimentos. (Apareceu em casa e sumiu de casa sem que ninguém percebesse seus movimentos.)
Tinha os mesmos desejos antes e durante a gravidez. (Tinha os mesmos desejos antes da gravidez e durante a gravidez.)
Vamos assistir e participar do grande momento histórico (Vamos assistir ao grande momento histórico e dele participar.)
Bom, se a regência é a mesma, nem há o que pensar: a síntese fica perfeita:

Exaltaram o amor e a obediência à pátria. [amor à pátria e obediência à pátria]
Ensinaram a decorar e a representar a peça. [decorar a peça e representar a peça]

Confirma o Prof. Evanildo Bechara, em sua Moderna Gramática Portuguesa (2001:569), ao tratar de complementos de termos de regência diferente: "Ao gênio de nossa língua, porém, não repugnam tais fórmulas abreviadas de dizer, principalmente quando vêm dar à expressão uma agradável concisão que o giro gramaticalmente lógico nem sempre conhece (...) Salvo as situações de ênfase, (...), a língua dá preferência às construções abreviadas que a gramática insiste em condenar" .