"Ler é conversar consigo para melhor conversar com os outros"
Em: 16/12/2011, às 10H23
ENTREVISTADO:
Fabrício CarpinejarPoeta, cronista, jornalista e professor, com mestrado em literatura brasileira pela UFRGS, Fabrício Carpinejar (junção dos sobrenomes da mãe, Carpi, e do pai, Nejar) é autor de dezessete livros e laureado com diversos prêmios.
Carpinejar fala da leitura em um tom poético e criativo e diz que a estante não tem portas justamente para que as pessoas possam pegar os livros sem cerimônia. Para ele, quando o livro for tão importante quanto um domingo, com certeza os níveis de leitura no Brasil serão muito mais elevados. Leia a entrevista deste talentoso autor e entre no clima do mundo da leitura.
Jornal do Professor – Em sua opinião, qual é a importância da leitura na vida das pessoas?
Fabrício Carpinejar – A leitura não nos empresta somente palavras, nos empresta silêncio. Quem não lê dificilmente aprende a ficar quieto, aceitando a solidão como parte do pensamento. Ler é conversar consigo para melhor conversar com os outros. É organizar a experiência. Todo o turbilhão de fatos, lembranças, sequência de nossa vida pode ficar solto sem uma literatura que o organize. Não teríamos hierarquia, ordem, força nas idéias. Seria um caos sensitivo.
JP – A escola deve incentivar a leitura? De que maneira? Como os professores podem colaborar nesse sentido?
FC – Totalmente. A escola precisa entender que a criação e a leitura devem andar juntas. Não basta ler poesia, a criança depende de uma oportunidade para brincar com a poesia, escrever, entender como funciona, que ela não é à procura da beleza, é a procura da verdade. De uma verdade pessoal. Nada substitui a descoberta de um dom. Ler é um dom como o de escrever. Requer cuidado, afeto e disponibilidade para unir o que está sendo estudado com aquilo que está sendo vivido pelo estudante.
JP – Qual é o papel da família na formação dos leitores?
FC – A tarefa de casa não precisava existir na escola, é da família. O livro sempre foi um elo para entender meus pais. Deixavam cartas dentro das obras, trechos sublinhados. O livro é a toalha de mesa do café da manhã, do almoço e da janta. Objeto acessível, que não era endeusado. Muitas vezes, os pais criam bibliotecas para a criança pedir licença para mexer. Biblioteca tem que ter a naturalidade de nosso braço. É puxar de cima e amar. Assim como o hábito de contar histórias seduz a criança. É um teatro que ela dispõe por alguns minutos para ouvir a voz paterna e materna. Depois, eles vão procurar a voz dos pais nos livros e vão encontrar a sua. O livro fica em nossa vida quando emoldurado de encontros afetuosos. Todo jovem tem uma trilha sonora, eu tenho uma biblioteca para ouvir e guardar minhas mais fortes recordações. A escrita pode ser tão atraente quanto à música. Está esperando bons intérpretes.
JP – Você acha que é possível despertar o interesse pela leitura em pessoas mais velhas, tardiamente alfabetizadas, os chamados neoleitores? Que ações recomenda nesse sentido?
FC – Diante da solenidade da leitura, se a criança pede - infelizmente - licença para ler, o adulto tardiamente alfabetizado é obrigado a pedir desculpa. Ele lê com culpa, com medo de errar, de se envergonhar por não ter feito isso antes. O trabalho é retirar a carga de sacrifício e pesar, de vitimização. Cada um tem seu ritmo e sua mensagem. Indicaria o uso da vida cotidiana e o emprego da oralidade criativa e alegre para os neoleitores. Cantar, contar histórias, redigir cartas para família, preencher pedidos de emprego. Ler a vida para ler um livro, para ler depois o livro de sua vida. Outra coisa: somos analfabetos perante os nossos próprios sentimentos. Ninguém é culto o suficiente para lidar com o milagre vulnerável da pele. Diante da paixão, somos analfabetos e vamos soletrar o nome da amada. Diante da dor, somos analfabetos e vamos repetir as tristezas até acomodá-las. Ninguém nunca está atrasado para se revelar.
JP – O brasileiro ainda lê pouco. Para você, qual a razão disso? O que pode ser feito para melhorar a situação?
FC – Lê pouco porque não entende a leitura como uma escolha, mas como uma obrigação. E vamos adiar o que não escolhemos. Nesse processo de desvalia, o jornal é menosprezado. O jornal é sempre uma porta de entrada para o livro. No Rio Grande do Sul temos o exemplo de como o jornal é um hábito familiar. Ou seja: cuidar do cotidiano para depois navegar em direção às ilhas mais distantes. Eu acho importantíssimo não se descartar o jornal desse processo, como se fosse um objeto já anacrônico. Acho que o jornal tem um peso que é essa disposição de um tempo para ver o que está acontecendo no seu próprio mundo. É essa disponibilidade que tem de se criar. E a leitura produz um efeito de complicação, de hermetismo, ou seja, uma dificuldade, no caso da poesia. Parece que a gente tem de entender poesia. Não. A gente precisa aprender a lidar com a intuição. A gente precisa aceitar o erro, a falha, o tropeço, aceitar que a gente não vai entender praticamente tudo. A gente vai entender aos poucos, aos goles. É importante que a gente não tenha essa burocratização da leitura, ou seja, fazer com que a pessoa se sinta condenada a leitura. Eu acho que os dividendos e os ganhos a gente verá depois.
O livro tem de ser muito mais familiar do que a gente costuma ligar, manejar. Tem de ser algo mais acessível. A gente ainda trabalha o livro como estudo, não como prazer. Temos que estudar mais. Então ler mais é estudar mais, é se preparar mais.
O livro é justamente o contrário também. É como jogar futebol, vôlei. É de uma certa forma se descontrair mais, conversar mais, se alegrar mais. Eu não vejo um produto tão lúdico e tão aberto a essas referências referentes à imaginação. É óbvio que o livro é visto como trabalho. Eu acho que o livro é um jogo. A partir disso, um jogo de idéias, assim como os socráticos e os filósofos gregos se divertiam na argumentação, assim como os repentistas se divertem procurando o riso pelas palavras, assim como os trovadores do RS se divertem procurando a bravata, o chiste. É o modo como a gente lida ainda com a cultura. A gente lida como resíduo de um sistema de trabalho. Ela não está inserida ou enquadrada num contexto de contentamento e de final de semana. Quando o livro for tão importante quanto um domingo, com certeza os níveis de leitura no Brasil serão muito mais elevados.
JP – Algumas pessoas e municípios têm promovido ações visando estimular a leitura. Aqui em Brasília, por exemplo, foram criadas minibibliotecas nas paradas de ônibus. Qualquer pessoa pode pegar um livro para devolver outro dia, sem burocracia nenhuma. O que você acha desse tipo de ação? Traz contribuições?
FC – No Rio Grande do Sul a gente percebe que as experiências estão dando certo há décadas e décadas, que é a valorização do escritor. As escolas adotam escritores gaúchos, eles vão dar palestras, toda a cidade tem uma feira do livro. Há esse contato miúdo de conversa num trem, no ônibus, na rua, sem prefácio ou pós-fácio ou orelhas. Há uma identificação da leitura com o seu meio. Isso é feito de todo um trabalho de humanização do autor, que é um mediador carismático da sua obra. O livro é um cofre que às vezes nem o autor sabe o segredo para abrir. E isso é bonito, porque o livro não é um cofre e nem um altar. Eu acho que ele precisa ser uma estante virtual, no sentido do que ela passa para as pessoas. Uma estante não tem portas para que a gente possa arrancar mais facilmente o livro dali. A gente ainda trata a estante como se fosse um armário fechado.
Os índices de leitura do Rio Grande do Sul são os mais elevados do país. Eu acho que isso ocorre em função da leitura de jornal, dessa integração entre escola e autor, pela multiplicação de feiras do livro. Ou seja, há a necessidade de ter no calendário de qualquer cidade uma feira aberta ao público com descontos, promoções e conversas com escritores. Essa mobilização da cidadania é importantíssima porque a pessoa é que tem que escolher ler, porque se não for uma escolha não há reincidência. É uma necessidade espontânea. Não é fazer isso pelos outros, porque é importante para o trabalho, para família. A gente costuma delegar ao livro uma importância, para não assumir a nossa própria autoria.