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Uma situação trágica existe precisamente quando a virtude não triunfa, mas quando ainda se sente que o homem é mais nobre do que as forças que o destroem.
George Orwell
Quem me conhece sabe que um de meus maiores prazeres é a leitura. Quando penso em todos os livros que quero ler e reler, chega a me dar um frio na barriga, pois sei que o espaço de uma vida não será suficiente para desfrutar do mágico contentamento que só a leitura de bons livros é capaz de proporcionar. No entanto, tristezas à parte, o importante é continuar lendo e relendo tudo o que for possível, sem pensar no tempo e nos desejos não realizados.
Portanto, preciso recomendar uma obra que chegou até mim sem indicações ou referências. Na verdade, adquiri esse livro em um “saldão”. Ele estava em meio a outros livros, todos aparentemente encalhados e sendo vendidos pela metade do preço ou até menos. O livro chama-se “Dentro da Baleia e outros ensaios” (Editora Companhia das Letras), do escritor inglês George Orwell.
Logo no primeiro texto – “Por que escrevo”, de 1946 – a identificação. De forma simples, Orwell explica suas motivações para escrever. No início ele nunca pensava, “Vou produzir uma obra de arte”. Ao contrário. Seu desejo sempre era o de expor uma mentira, um fato para o qual queria chamar a atenção e, é claro, a vontade de atingir um público. De qualquer maneira, independente das suas motivações, para Orwell, escrever não era uma tarefa fácil. Segundo ele, tratava-se de “uma luta horrível e exaustiva, como um prolongado ataque de uma enfermidade dolorosa”.
Quem se dedica à escrita, por prazer ou profissão, reconhece nessa frase uma verdade. O ato de escrever está cheio de sentimentos conflitantes. Contudo, segue-se em frente – como se fosse uma compulsão ou um demônio “ao qual não se pode resistir nem entender”. Palavra após palavra, frase após frase, o escritor resiste às ondas de ansiedade que caem sobre ele, travando uma luta não só “horrível e exaustiva”, mas também solitária, e da qual a única testemunha é a folha de papel ou, em tempos modernos, a tela do computador.
Mais adiante há outro texto cuja leitura vale a pena. Chama-se, “Bons livros ruins”, de 1945. Dessa vez Orwell se dirige ao leitor e aos críticos literários, defendendo a existência do que ele denominou de “boa literatura ruim”, ou seja, livros que entretém, emocionam, mas que o intelecto se recusa a levar a sério.
Segundo Orwell, quando se trata de algo tão subjetivo como gostar ou não gostar de um livro, não se deve ser preconceituoso ou sectário em excesso, pois “arte não é a mesma coisa que cerebração”. Como Orwell, acredito que todos os autores devem ter seu espaço garantido – assim como o leitor – sem julgamentos extremados ou narizes torcidos. É como ele escreveu: “Tudo o que podemos dizer é que, enquanto a civilização permanecer de tal forma que precisemos de distração de vez em quando, a literatura ‘leve’ tem lugar reservado”. E o que era válido em 1945 continua sendo em 2012, 2013...
A primeira parte do livro - “Palavras, Palavras” - da qual esses dois textos são uma amostra, expõe o interesse de Orwell para com a literatura e suas repercussões na vida, não só do escritor, mas também do leitor. Já na segunda parte – “A Memória da Política” – ele se concentra em temas diversos todos embasados em sua experiência pessoal. Aqui o ensaio que mais chamou a minha atenção intitula-se “Como morrem os pobres”, escrito em 1946.
Esse texto é de uma atualidade que assusta, pois narra a experiência de Orwell em um hospital público de Paris quando esteve internado por conta de uma pneumonia. A indiferença e o desrespeito para com os doentes lembra o que todos os dias lemos e vemos nos jornais e TV, em pleno século XXI. O tom do texto é amargo e sombrio. Orwell chega a dizer que entende os motivos do pavor que muitos pobres sentem dos hospitais, pois o “Hôpital X” o fazia lembrar-se dos “hospitais malcheirosos e cheios de sofrimento do século XIX”.
Não tenho como avaliar o quanto dessas impressões são verdadeiras, mas posso dizer: hoje, muitos pobres (mais do que seria aceitável) ainda experimentam esses mesmos sentimentos de descaso e falta de respeito. Meses para realizar um exame que pode ser a diferença entre a vida e a morte, emergências cheias, com doentes se acumulando nos corredores em camas improvisadas e, na falta delas, cadeiras duras e desconfortáveis. Se Orwell exagerou, repito: eu não sei. No entanto, esse ensaio é um relato de uma realidade que, infelizmente, apesar dos avanços tecnológicos e médicos, ainda persiste entre nós.
E assim poderia continuar escrevendo sobre todos os outros ensaios desse livro, constituído de três partes – a última chama-se “A política da Literatura” – ,que descreve não só as coisas do mundo, mas também as ideias e convicções do autor. Fiquei tão impressionada com o livro que me senti impelida a fazer uma breve pesquisa sobre o homem chamado Eric Arthur Blair, nome verdadeiro de George Orwell. E o que descobri explica muitas de suas posições, não só literárias, mas também políticas.
Filho de ingleses, nasceu na Índia e foi integrante da Policia Imperial Inglesa da Birmânia, atual Mianmar. Em Londres, tornou-se um vagabundo e, em Paris, um boêmio. Lutou na guerra civil espanhola, onde se feriu no pescoço. Morreu aos 46 anos, de tuberculose, sendo enterrado na All Saints' Churchyard, Sutton Courtenay, Oxfordshire, com o simples epitáfio: "Aqui jaz Eric Arthur Blair, nascido em 25 de Junho de 1903, falecido em 21 de Janeiro de 1950".
Muitas de suas experiências de vida estão retratadas em seus romances, ensaios e matérias para jornais e alguns desses “retratos” encontram-se no livro “Dentro da Baleia”. Os três textos que comentei são apenas uma pequena amostra, poderia ter falado também sobre o ensaio que dá nome ao livro ou sobre “Reflexões sobre Gandhi”, um texto polêmico, escrito em 1948, no qual Orwell entre tantas frases fortes escreveu, “Santos devem ser considerados culpados até que se prove sua inocência”. Enfim, fica a sugestão para quem deseja ler um “bom livro ótimo”. E se você não concordar com alguns dos posicionamentos do autor, faço minhas as suas palavras quando, na página 216, analisando as “Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift, declara: “... o gosto pode dominar a desaprovação, ainda que se reconheça com clareza estar gostando de algo hostil”. Boa leitura!