Ana Maria Bernardelli
Ana Maria Bernardelli

 

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(Rio Igaraçu, Parnaíba, Costa do Piauí)

 

TEATRO AGÔNICO 

Para José Carlos Vieira 

 

 

Sonhos são feitos a granel. 

A ponte explode: 

pássaros. 

Tantos olhos 

pintados de branco

em tão pouco tempo.

 

O coração em farelos,

aqui e ali,

nas noites forasteiras.

Velas tristes assombradas

de grandes escunas azuis. 

Cal de conchas, 

o meu boi misterioso morto

temperado no sal. 

 

Poema de Diego Mendes Sousa

 

Fotografia de Helder Fontenele

 

 

 

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LEITURA BERNARDELLIANA DO POEMA "TEATRO AGÔNICO",

DE DIEGO MENDES SOUSA

 

 

Por Ana Maria Bernardelli

 

 

O poema de Diego Mendes Sousa se abre como um palco onde a cena já começou antes de o leitor chegar. Não há cortina — há estilhaços.

Logo no primeiro verso, “Sonhos são feitos a granel”, o poeta instala a tensão entre o sublime e o ordinário: os sonhos, que deveriam ser raros, íntimos, indivisíveis, surgem aqui como mercadoria empilhada, quase despersonalizada. A matéria onírica perdeu o valor singular; tornou-se produto do tempo apressado.

E então a imagem violenta:

“A ponte explode: pássaros.”

A ponte — sempre símbolo de passagem, de travessia, de continuidade — implode em voo. O que deveria unir, dispersa; o que deveria levar adiante, se desfaz em asas. Há um deslocamento abrupto: a destruição vira vida, a ruína liberta movimento. Diego transforma o instante da ruptura em nascimento — mas um nascimento desorientado, quase acidental.

O verso seguinte adensa esse estranhamento:

“Tantos olhos pintados de branco em tão pouco tempo.”

É como se o teatro agora tivesse plateias de fantasmas. O “pintados de branco” sugere alvura mortuária, máscaras, cegueira, alucinação. Olhos que olham sem ver, ou veem demais — olhos convocados pela urgência do desastre.

O poema então desce ao íntimo:

“O coração em farelos, aqui e ali, nas noites forasteiras.”

O coração esfarelado indica dispersão afetiva, identidade dividida, fragmentos de si largados pelo caminho. As “noites forasteiras” ampliam a sensação de não pertencimento: são noites que não acolhem, noites que não reconhecem quem entra nelas.

A segunda parte do poema transfere a cena para o mar:

“Velas tristes assombradas de grandes escunas azuis.”

As velas — tanto as do barco quanto as votivas — carregam o peso do espectral. São velas que não iluminam, mas são iluminadas pela sombra. O azul das escunas, em vez de liberdade oceânica, anuncia melancolia: barcos que navegam dentro da memória, não do mar.

Então o poeta constrói uma imagem de forte carga simbólica e ritual:

“Cal de conchas, o meu boi misterioso morto temperado no sal.”

É aqui que o poema se dobra em mito.

O “boi misterioso” evoca culturas tradicionais, ritos de morte e renascimento, figurações do sagrado sertanejo e marinho. Temperado no sal — o sal que conserva, que impede o apodrecimento, que fixa a morte enquanto anuncia permanência.

Há nessa imagem o eco de sacrifício, de oferenda, de memorial. O boi — força da terra — morto junto ao sal — força do mar — cria um simbolismo híbrido: terrestre e marítimo, real e mítico, cotidiano e ritualístico.

Bernardellianamente falando, é o encontro dos elementos que gera densidade simbólica: o poema se torna encruzilhada.

“Teatro Agônico” é uma peça em miniatura onde o poeta encena a crise da travessia humana:

a explosão da ponte, o coração esfarelado, as noites estrangeiras, as almas deslocadas, os barcos melancólicos e a memória sacrificada do boi.

Há agonia, mas também metamorfose.

Há perda, mas também transfiguração.

Diego Mendes Sousa constrói imagens que não pedem decifração literal; elas pedem acolhimento sensorial. O poema respira como um rito de passagem interrompido — ainda assim rito.

Lido sob a ótica bernardelliana, seu texto revela que o drama maior não é a explosão da ponte, mas a reconstrução do sujeito após o impacto. O eu-lírico não se afoga no desastre: ele o usa como matéria de criação, como cal de conchas que cimenta o que restou.

É teatro, sim.

Mas teatro onde cada gesto é uma revelação —

e cada perda, uma possível travessia.

 

Ensaio de Ana Maria Bernardelli.

Ana Maria Bernardelli é ensaísta e crítica da literatura, formada em Língua e Literatura Francesa pela Université de Nancy, na França.