LEITURA BERNARDELLIANA DO POEMA "TEATRO AGÔNICO", DE DIEGO MENDES SOUSA - Ensaio de Ana Maria Bernardelli
Por Diego Mendes Sousa Em: 15/11/2025, às 14H51

(Rio Igaraçu, Parnaíba, Costa do Piauí)
TEATRO AGÔNICO
Para José Carlos Vieira
Sonhos são feitos a granel.
A ponte explode:
pássaros.
Tantos olhos
pintados de branco
em tão pouco tempo.
O coração em farelos,
aqui e ali,
nas noites forasteiras.
Velas tristes assombradas
de grandes escunas azuis.
Cal de conchas,
o meu boi misterioso morto
temperado no sal.
Poema de Diego Mendes Sousa
Fotografia de Helder Fontenele
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LEITURA BERNARDELLIANA DO POEMA "TEATRO AGÔNICO",
DE DIEGO MENDES SOUSA
Por Ana Maria Bernardelli
O poema de Diego Mendes Sousa se abre como um palco onde a cena já começou antes de o leitor chegar. Não há cortina — há estilhaços.
Logo no primeiro verso, “Sonhos são feitos a granel”, o poeta instala a tensão entre o sublime e o ordinário: os sonhos, que deveriam ser raros, íntimos, indivisíveis, surgem aqui como mercadoria empilhada, quase despersonalizada. A matéria onírica perdeu o valor singular; tornou-se produto do tempo apressado.
E então a imagem violenta:
“A ponte explode: pássaros.”
A ponte — sempre símbolo de passagem, de travessia, de continuidade — implode em voo. O que deveria unir, dispersa; o que deveria levar adiante, se desfaz em asas. Há um deslocamento abrupto: a destruição vira vida, a ruína liberta movimento. Diego transforma o instante da ruptura em nascimento — mas um nascimento desorientado, quase acidental.
O verso seguinte adensa esse estranhamento:
“Tantos olhos pintados de branco em tão pouco tempo.”
É como se o teatro agora tivesse plateias de fantasmas. O “pintados de branco” sugere alvura mortuária, máscaras, cegueira, alucinação. Olhos que olham sem ver, ou veem demais — olhos convocados pela urgência do desastre.
O poema então desce ao íntimo:
“O coração em farelos, aqui e ali, nas noites forasteiras.”
O coração esfarelado indica dispersão afetiva, identidade dividida, fragmentos de si largados pelo caminho. As “noites forasteiras” ampliam a sensação de não pertencimento: são noites que não acolhem, noites que não reconhecem quem entra nelas.
A segunda parte do poema transfere a cena para o mar:
“Velas tristes assombradas de grandes escunas azuis.”
As velas — tanto as do barco quanto as votivas — carregam o peso do espectral. São velas que não iluminam, mas são iluminadas pela sombra. O azul das escunas, em vez de liberdade oceânica, anuncia melancolia: barcos que navegam dentro da memória, não do mar.
Então o poeta constrói uma imagem de forte carga simbólica e ritual:
“Cal de conchas, o meu boi misterioso morto temperado no sal.”
É aqui que o poema se dobra em mito.
O “boi misterioso” evoca culturas tradicionais, ritos de morte e renascimento, figurações do sagrado sertanejo e marinho. Temperado no sal — o sal que conserva, que impede o apodrecimento, que fixa a morte enquanto anuncia permanência.
Há nessa imagem o eco de sacrifício, de oferenda, de memorial. O boi — força da terra — morto junto ao sal — força do mar — cria um simbolismo híbrido: terrestre e marítimo, real e mítico, cotidiano e ritualístico.
Bernardellianamente falando, é o encontro dos elementos que gera densidade simbólica: o poema se torna encruzilhada.
“Teatro Agônico” é uma peça em miniatura onde o poeta encena a crise da travessia humana:
a explosão da ponte, o coração esfarelado, as noites estrangeiras, as almas deslocadas, os barcos melancólicos e a memória sacrificada do boi.
Há agonia, mas também metamorfose.
Há perda, mas também transfiguração.
Diego Mendes Sousa constrói imagens que não pedem decifração literal; elas pedem acolhimento sensorial. O poema respira como um rito de passagem interrompido — ainda assim rito.
Lido sob a ótica bernardelliana, seu texto revela que o drama maior não é a explosão da ponte, mas a reconstrução do sujeito após o impacto. O eu-lírico não se afoga no desastre: ele o usa como matéria de criação, como cal de conchas que cimenta o que restou.
É teatro, sim.
Mas teatro onde cada gesto é uma revelação —
e cada perda, uma possível travessia.
Ensaio de Ana Maria Bernardelli.
Ana Maria Bernardelli é ensaísta e crítica da literatura, formada em Língua e Literatura Francesa pela Université de Nancy, na França.

