(Miguel Carqueija)


A nova heroína japonesa é uma mescla de Mary Poppins e Pollyanna

KOBATO, OU A TRANSMISSÃO DA BONDADE


    A criação recentíssima do grupo CLAMP (2010), originalmente editado em Tóquio por Kadokawa Shoten, e que vem saindo desde 2011 no Brasil, em mangá da JBC (ora no quinto volume), segue a linha criativa do quarteto feminino que, no passado, produziu “Guerreiras mágicas de Rayearth”, “Sakura card captor”, “Chobbits”, “Angelic Layer”, “As crônicas de Tsubasa” e outros clássicos que também geraram seriados de animação.
       “Kobato” talvez seja a mais delicada criação de CLAMP, com uma protagonista de todo inocente e que transmite bondade a cada passo ou em cada fala. Neste século de heróis cafajestes e truculentos, Kobato é uma jóia rara.
    A história de Kobato é uma fantasia mística onde até Deus aparece como um dos personagens, ainda que não visível, mas com evidente participação nos acontecimentos. Aliás, eles ficam mais claros no mangá que no anime, que também é extremamente belo.
    Kobato desceu à Terra com um guarda-chuva aberto, como a Mary Poppins. Só o estilo da descida foi diferente: Mary Poppins veio erguida, Kobato desceu inclinada, deixando-se trazer pelo vento. Veio cumprir uma missão sagrada, a de consolar os corações feridos que encontrasse, e cada vez que o fizesse o pote que trazia consigo iria enchendo de continhas. Havia um prazo para encher o frasco.
    A menina, de feições puras e ingênuas e corpo de adolescente, não possui agressividade ou quaisquer sentimentos negativos. Vem acompanhada, porém, por um mentor temperamental, o “Senhor Ioryogi”, antigo líder do “mundo fantástico” e ora reduzido, por castigo divino, à forma de bichinho de pelúcia. Ele pode falar, mover-se e até lançar fogo pela boca, mas perto de outras pessoas deve se manter imóvel e calado, para não revelar o segredo.
    No passado, ocorreu uma guerra mística de grandes proporções. Ioryogi liderou o mundo de fantasia numa guerra contra o mundo celestial, por razoes explicadas ao longo da história. Derrotados, Ioryogi, Ginsei, Genko  e outros aliados foram punidos com a redução à forma de bichos fantásticos e sua redenção vinculada à missão de Kobato, uma garota humana inocentemente atingida pelos efeitos da guerra, e que perdeu a memória e o conhecimento.
    Kobato, afinal, acaba sendo a alma boa que surge na modesta Creche Yomogi, onde trabalha voluntariamente para a Senhora Sayaka e seu auxiliar, o mal-humorado Fujimoto. A doçura e serenidade de Kobato encantam as crianças e demais pessoas e vão, pouco a pouco, derretendo o gelo de Fujimoto, um órfão criado na creche e hoje se desdobra em bicos, tentando ajudar Sayaka, que, endividada, está sob ameaça de despejo.
       A instituição — creche, escola, universidade — ameaçada de insolvência, de execução por dividas, é um clichê da ficção, presente por exemplo num grande filme de Walt Disney, de 1961, “O professor distraído”. Mas “Kobato” foge totalmente ao clichê e gira essencialmente em torno dessa Pollyanna japonesa, que espalha a felicidade ao redor de si e se compadece por qualquer sofrimento. Até mesmo os gangsters da Yakuza, que ameaçam a creche, apreciam Kobato cuja bondade desarma os espíritos. Inocentemente bela e majestosa, com uma alma de criança, e incapaz de praticar o mal, Kobato é a chave para a remissão dos seres do mundo fantástico envolvidos na rebelião, que Deus puniu e cujo perdão está vinculado ao destino da menina. Genko está mais ou menos conformado em viver como um urso negro que cozinha “baumkushens” (espécie de bolo alemão em forma de roda, com camadas concêntricas), pois está cumprindo a punição ordenada por Deus. Enquanto isso, Kobato espalha o amor ao seu redor, mesmo em meio a circunstâncias adversas, conquistando o carinho das crianças, e a sua alegria constante se transforma em lágrimas de comoção quando percebe que ama Fujimoto.
     Acontecimentos cósmicos se decidem em torno de Kobato, sem que ela perceba.
    Qual é, afinal, a força do amor puro?
    Kobato é um “tour-de-force” da equipe CLAMP e originou uma série de animação igualmente envolvente, edificante e tocante.

    NOTA: o volume 6 do mangá (edição final) já chegou às bancas brasileiras.


Rio de Janeiro, 1º de julho a 8 de agosto de 2012.