Kant e a primavera árabe
Por Paulo Ghiraldelli Jr Em: 27/02/2011, às 13H42
[Paulo Ghiraldelli Jr.]
A máxima de Kant, de que para sermos moralmente corretos não devemos tratar o homem com meio e, sim, como um fim em si mesmo, é sempre atual. Mas, não raro, às vezes ela é compreendida com tropeções. Afinal, todos os dias somos meios para alguma coisa. Sou filósofo e, como tal, escrevo livros; e meus livros são meios para que alguém obtenha algum tipo de conhecimento. Então, eu sou um meio. Isso é ruim? Não! Não posso considerar isso algo ruim, é claro. Mas, não é sobre isso que Kant está colocando sua máxima. Sua máxima é sobre o valor do bípede-sem-penas. Ou seja, enquanto alguém que se põe no mundo oferecendo coisas eu posso, é claro, ser aproveitado, ser um meio, mas eu não deveria ser reduzido a este homem que se põe no mundo oferecendo coisas. Eu teria um valor exclusivamente dado pela minha condição humana, a de ser um especial bípede-sem-penas. E, nessa circunstância, não sou meio para nada, sou um fim. Quem me tratar como homem e exclusivamente como um meio estará degradando a minha dignidade e, não podendo universalizar tal conduta sem tornar todo o conjunto dos bípedes-sem-penas também indigno, então, estará se pondo de maneira incorreta no seu tratamento de toda a humanidade. É isso que Kant diz. Até aí, não deveríamos ficar ranzinzas com Kant. Há implicações dessa máxima que faz sua ética se tornar uma ética do dever, talvez endurecida, incapaz de ceder a uma outra nossa máxima, a da lei do amor, que nos leva a proteger os mais fracos e, entre eles, primeiro os nossos amigos etc. Mas, talvez possamos olhar para Kant sem essas implicações, focalizando o quanto sua ética tem a ver com a política liberal que vinha se construindo em seu tempo. Aquela política que, antes dele, foi estabelecida por John Locke. A política de preservar a individualidade, os direitos individuais, especialmente a liberdade individual e a dignidade humana. Kant deu expressão filosófica a isso que, em Locke, ficou antes no campo da filosofia política que propriamente numa metafísica. Gosto de Kant quando o leio dessa minha maneira. Pois, então, sua voz soa como uma alerta contra os que cultivam a ideologia da humildade, exatamente aquela ideologia denunciada por Nietzsche como sendo fruto de uma terrível corrosão moral. Estranho? Estou associando Kant a algo que foi aproveitado positivamente por Nietzsche, um de seus mais ferrenhos críticos? Sim! E eu explico. Nietzsche viu no liberalismo um elemento da modernidade e, como tal, mais um dado da decadência. O liberalismo viria, no limite, favorecer os mais fracos, pois seria uma política de alimento da vida em rebanho – da moral do rebanho. Eu prefiro ver o liberalismo como uma doutrina que, associada ao lema de Kant de não valorar o bípede-sem-penas como um meio, lhe dá condições de se por como alguém que não deve abrir mão de uma dignidade nuclear e que, portanto, não tem de se esconder diante dos que vivem por aí com uma maldita frase em punho, a saber, devemos colocar na fogueira os “egos inflados”. Sei perfeitamente que os que denunciam “egos inflados” são os que pregam a ideologia da humildade, pessoas que Nietzsche não titubearia em chamar de vermes rastejantes – os que, não conseguindo eles mesmos se afirmarem, querem ver os outros no mesmo limbo que eles. Em parte, Kant dá condições a cada um de nós de dizer o seguinte: “não vou ter vergonha de me afirmar como indivíduo”. “Vou fazer meu Orkut, meu Facebook, vou dizer o que gosto e o que não gosto; vou colocar o que acho que sou para valer. Ao menos para o círculo dos meus amigos, serei um indivíduo pleno, uma estrela – um pop star entre os meus.” Esse movimento atual de tirar fotos de si mesmo e de se mostrar, de querer se colocar no mundo e ver seus gostos pessoais respeitados, é algo que devemos ao liberalismo. Em grande parte, a Locke, mas, em termos filosóficos mais profundos, a Kant. É exatamente aí que entra a idéia que, agora, cria a Primavera Árabe: os jovens de classe média e os jovens mais pobres querem viver os gostos da liberdade individual e do consumo do Ocidente. Querem se afirmar como indivíduos. E nisso, as redes sociais fazem o seu papel. O modo de vida ocidental os atrai como atraiu os dos países comunistas, gerando as revoluções de 1989 que fizeram, no final, desaparecer a URSS. É claro que isso tudo que ocorre no mundo árabe pode ser aproveitado por grupos radicais religiosos. Mas, num primeiro momento, o anseio por liberdade no estilo ocidental é o que movimenta os jovens árabes a se colocarem contra os regimes em que vivem, repúblicas autoritárias e monarquias absolutistas ou similares. É interessante notar que esse anseio por liberdade individual aparece quando, na sociedade, a questão da valorização do indivíduo já começa a importar. A Primavera Árabe, que segue em seu curso, começou porque um jovem ateou fogo ao seu corpo (a exemplo da Primavera de Praga) em protesto à opressão governamental ao que seria sua liberdade individual enquanto comerciante. Um ato assim, no passado, se ocorresse, poderia não levar a nada. Mas ele ocorreu quando a consciência desse jovem estava em consonância com a de toda a sociedade, ou seja, uma consciência preenchida pela idéia radical de que a liberdade individual vale tudo. Sem ela, não vale a pena nem mesmo a vida. Quando uma sociedade decide pensar assim, ela está funcionando em termos mais ou menos kantianos. O homem não é um meio, ele tem um fim em si mesmo. Se esse fim não é respeitado, então, o próprio homem não existe. Que vá ao fogo! Que vá ao fogo, afirmando a existência individual a partir de sua auto-negação. Kant acreditava que esse anseio por liberdade era algo presente na revolução de seus dias, que ele acompanha pelos jornais – a Revolução Francesa. Os jovens árabes, hoje, relativamente ocidentalizados pela Internet, parecem estar nessa linha vista por Kant (e reiterada por Hegel em termos do caminho do Espírito): o homem anseia por liberdade. Tendo liberdade individual, ele se faz digno como alguém que tem valor em si mesmo. Então, a ética pode se definir a partir não mais do abaixar a cabeça, não mais da ideologia da humildade, não mais da posição do rebanho. Cada um pode ser alguém. Pode ser um mártir para começar a revolta, para que todos possam ser tão importantes quanto o mártir, após a revolta. Tenho esperança que o mundo árabe encontre sua maneira de se integrar na democracia moderna, ainda que a reconstruindo segundo seus parâmetros, sem que seja necessário invocar a intervenção externa, como a que Bush fez no Iraque para “levar a democracia”. É uma esperança de filósofo, como aquela que encheu o peito de Kant quando ele, nas manhãs de Königsberg, lia os passos dados pelos revolucionários na França. Passos estes que, pouco tempo antes, haviam sido dados na América. © 2011 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ