O sol estava frio, naquela manhã de inverno em Lisboa, fevereiro de 1980. Entro numa tasquinha (como os portugueses costumam chamar os seus botequins) e encontro com a escritora e crítica literária Maria Lucia Lepecki, brasileira, mineira, radicada em Portugal, desde a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974. Ela também é professora titular de Literatura Portuguesa da Universidade Clássica de Lisboa.
 
- Ainda bem que vocês apareceram ! Que tal hoje à noite irmos à Casa do Alentejo, vai ter o lançamento do livro do Saramago.
 
Sentamos eu e minha mulher, nossa filha Vera ainda repousava no ventre de Heloisa, em pose fetal curtia os ares lusitanos.
 
Enquanto tomávamos o café da manhã, Maria Lúcia foi explicando:
 
- O José Saramago lança hoje o Levantados do chão. Um romance magnífico. Eu li quando estava ainda no original datilografado. É que eu sou muito amiga dele. No começo fiquei apreensiva, pois o livro começa brilhante, de forma inusual, inusitada para as tradicionais letras portuguesas. É uma virada histórica.
 
Ou como os portugueses costumam falar, uma “viragem”. Podem não ter sido estas as palavras de Lepecki, mas o sentido vale.
 
À noite, um simpático bondinho ou “elétrico” se preferirem, nos levou até a Casa do Alentejo, em uma ruazinha próxima ao Rossio, no coração da capital.
 
O ambiente cheio e festivo nos iniciava no lançamento. Na verdade, era um jantar, festa, com discurso e tudo o mais. Tinha até um Coral de Camponeses vindo diretamente do Alentejo, a região do latifúndio antes do 25 de abril e que nessa época, pós-revolução dos cravos, estava recheada de “comunas”, lotes, trechos de terra da Reforma Agrária que eles chamavam de UCPs – Unidades Coletivas de Produção.
 
No movimentado salão procuro a mesa onde Maria Lúcia nos espera, sentamos e, para surpresa, verifico que era uma mesa comprida e mais alguns lugares vazios. Logo depois chegam os “donos” dos lugares: o primeiro-ministro do 25 de Abril, Vasco Gonçalves e esposa, mais o General Costa Gomes e senhora, líderes do MFA – Movimento das Forças Armadas que derrubou a ditadura salazarista e depois caetanista de 48 anos e ocuparam o primeiro governo revolucionário de Portugal, em pleno século XX. Logo a seguir sentam conosco o poeta Armindo Rodrigues e a estrela da noite, o escritor José Saramago.
 
Nessa época, a Casa do Alentejo era uma espécie de centro cultural do Partido Comunista Português e significativos nomes da intelectualidade lusitana faziam parte.
 
No momento em que foi autografar o meu exemplar, Saramago abraçou-me e exclamou: “Ó pá, lá vocês tem uma grande, que muito me inspirou, o Guimarães Rosa”. Retribuindo o abraço, sorri e agradeci.
 
Na época de Salazar, o Alentejo era uma região muito perseguida, foi lá que o PCP organizou a resistência e os campônios sempre bem articulados, deram muito trabalho à PIDE, a extinta polícia política do ditador. O romance Levantados do chão fala desse tempo, dessa época, desses sonhos, ideais e utopias.
 
Enquanto a fila de autógrafos aumentava, o Coral dos Camponeses encantou e cantou, desde a Internacional até músicas folclóricas do Alentejo e populares da terra de Camões. Depois, representantes da juventude comunista falaram.
 
Em dado momento o silêncio se fez e a “doutora”, como era camaradamente chamada, a Maria Lúcia resumiu o que me havia contado pela manhã:
 
“No começo eu fiquei preocupada, pois era uma inovação literária muito grande, enquanto estava lendo os originais datilografados eu não sabia se Saramago ia ter pique para levar até o fim do romance aquele ímpeto, aquela garra, aquela novidade. E de fato foi”.
 
Tanto foi, que está aí até hoje, o primeiro Prêmio Nobel da Literatura em Língua Portuguesa.