José Ribamar Garcia: indignação e lirismo
Em: 28/05/2009, às 11H42
Cunha e Silva Filho
Ressonância (Rio de Janeiro: Litteris Editora, 2009, 139 p.) é mais um livro recentemente lançado pelo advogado e ficcionista piauiense José Ribamar Garcia. É o nono livro publicado pelo autor, que se reparte, no gênero ficcional, entre a crônica, a novela e o romance.O escritor faz arte daqueles intelectuais que ainda encontram tempo para poder criar ficção, escrever seus artigos de natureza jornalística e ainda desenvolver agitada atividade de advogado.
Ressonância reúne artigos publicados em jornais do Rio de Janeiro, sobretudo, Tribuna do Advogado, revista Evidência, de Teresina, assim como outras matérias inéditas.
A obra divide-se em três partes. A primeira, a de maior quantidade de artigos, engloba matéria de natureza em geral política, social e jurídica, e constitui a parte polêmica do volume. A segunda se refere a textos que saem da órbita estrita do escritor-articulista ou doutrinário e invade deliciosamente o universo lírico, seja este puramente da imaginação, seja ele trabalhado literariamente nos limites da fusão da memória afetiva e, portanto, lírica, com a crônica simplesmente derivada da força da criação ficcional.
A terceira parte funciona como uma espécie de feedback da primeira, na qual alguns artigos estampados permitem que Garcia avalie a sua repercussão junto aos leitores em geral e, em particular, leitores especializados nos domínio do Direito. Ao escritor nada mais reconfortante do que receber dos leitores uma palavra que venha confirmar suas idéias e sua visão pessoal face a questões de extrema relevância social e política, tais como o desarmamento, o sindicalismo, a questão trabalhista, o desemprego, a exploração capitalista, o desastre do governo Bush, a greve no setor público a crise energética, os desmandos do poder, a bolsa-família, entre outros.O pensamento do leitor, ou antes, sua reação às ideias do autor, desta forma, não se torna uma excrecência no livro. Tem sua funcionalidade. Ao contrário, o leitor completa-o, aponta-lhe novas saídas, novos subsídios que só podem engrandecer o ângulo de visão do autor, inclusive retificando certos dados de tal sorte que essa parte passa a manter uma unidade temática com a primeira parte.
A última seção da obra encerra com um poema-homenagem ao autor, de Raimundo Clementino Neto, e com uma bela e comovente peça oratória do professor e jurista Ivan Simões Garcia, filho de Garcia, proferida, em 11 de setembro de 2006, na Câmara dos Vereadores do Município do Rio de Janeiro, durante a entrega do título de Cidadão Carioca a José Ribamar Garcia.
No que diz respeito à primeira parte do livro, devo ressaltar o alcance dos temas discutidos e sua correspondente importância junto ao leitor brasileiro. Entretanto, não se pode nem se deve desconhecer que as posições do autor, diante das questões polêmicas, jamais se mostram tíbias ou neutras, quer com ele perfilhemos as idéias, quer delas discordemos. Garcia as enfrenta, mostra as feridas morais, sociais ou políticas. Sua linguagem, enxuta, ágil, dinâmica, se torna fator positivo na apresentação de suas análises. O autor demonstra destemor e combatividade, características que hoje rareiam entre os que usam a pena na sua função pública, social e transformadora. Vejo isso como grandeza intelectual da parte do escritor. Não há bom intelectual dissociado das questões sociais.
Garcia é um observador atento às mazelas do Brasil e, como articulista, não apenas expõe erros e falácias nas tentativas de solução dos problemas brasileiros. Ele propõe soluções, caminhos, com a seriedade de quem só aspira a ter um país melhor e mais justo.
O que me prende a atenção, voltando a esse dado de referência, é a sua forma de linguagem, que, por vezes, mescla ao conceito objetivo uma forma de expressão linguística que trai a sua familiaridade amorosa coma linguagem ficcional. Ou seja, Garcia desvela a sua intimidade com o discurso literário através de algumas expressões que melhor caberiam no gênero ficcional. Tal traço podemos rastrear em escritores de sua predileção, como Lima Barreto(1881-1922) e João Antônio(1937-1996).
A meu ver, nos seus textos de natureza jurídica, reflexo da sua longa experiên cia com leituras dessa área, a linguagem não chega a prejudicar a clareza da sua exressão, mais inclinada que é à forma jornalísitica.. Por outro lado, ao transpor a linguagem jornalística para a linguagem estritamente literária, Garcia como que se liberta por completo do jargão jurídico ou da objetividade jornalística. É o que o leitor pode conferir lendo-lhe a segunda parte, que passo a tratar agora.
A segunda parte consta de 14 crônicas; Segundo anteriormente acentuamos, nessa seção, o autor de Entardecer( 2007) solta sua imaginação, retempera seu cansaço após discutir questões mais intrincadas dos campos social, político e jurídico, e, já fortalecido, abre as comportas do universo lírico que lhe é tão caro e consolador. Não há como purgar, no sentido da tragédia grega expresso pela catarse, nossas indignações , nossa raiava , embrenhando-nos no mundo do amor, da memória afetiva e do sonho acordado, onde tudo se transfigura e é possível dizer um adeus, posto que passageiro, para o cotidiano desgastante e árido.
É com esse espírito artístico que Garcia nos oferece essa faceta, talvez, a mais entranhada da sua atividade intelectual, a de nos proporcionar a alegria diante da leitura de encantadoras crônicas, como “Ai de quem tem talento!,” de resto, uma frase que o autor toma de uma das obras de João Antônio, Ô Copacabana”(1978).
O contista piauiense sinteticamente desenha um dos mais perfeitos perfis do homem João Antônio e de sua personalidade literária. Garcia privou da amizade de João Antônio, cuja obra conhece por inteiro. Foi também seu advogado. Por isso, o seu relato é intenso, verdadeiro e, acima de tudo, comovente. Além disso, reputo essa crônica de Garcia como o ponto alto da segunda parte do livro. Outras crônicas no livro são dignas de mencionar: os perfis que faz de ilustres advogados e juristas brasileiros, como o piauiense Humberto Teles, Eliasar Rosa, Eliézer Rosa, irmão deste último. Em pinceladas seguras, Garcia nos dá o testemunho do valor do homem e de sua obra.
São ainda dignas de destaque as crônicas “A estrela Clara”, “Valeu, pai”, “A roda da fortuna”, “Nagibão”, que tocam comovida e sentimentalmente em temas adstritos ao universo familiar do autor. São páginas de alto valor afetivo, das quais tiramos lições de vida e de experiência humana. Outras vão além do que podemos denominar “crônicas da memória,” uma vez que elas, segundo frisamos antes, se valem do meramente imaginário, quer dizer, da experiência apenas do autor enquanto criador de situações da vida , flagrantes de um cotidiano irônico, trágico ou mesmo cômico que pode ou não ter ocorrido em sua dimensão empírica o do espaço das referencialidades. Nestas citaria “Você viu o que ouvi?” “Umas balas,” “Talvez, Talvez...”, “Tudo é interesse” “Tamos empatados”, e “Cajueiro da praia”. Todavia, a crônica “O Piauí do Sudeste” melhor ficaria se inserida na primeira parte do livro.
Só para finalizar, ainda uma palavra sobre a última crônica da segunda parte, “Cajueiro da Praia”. Ela pertence, sob todos os títulos, àquele tipo de crônica de que já falamos, a do imaginário - mescla de realidade e ficção, com uma visível tendência, o que é um elemento novo, à poetização do discurso literário e, além disso, acrescida de um outro dado novo, o emprego do intextexto, cuja fonte aqui é a poesia de Manuel Bandeira(1886-1968)com o seu famoso poema “Vou-me embora pra Pasárgada”, da obra Libertinagem (1930)
Bandeira nela está presente também, de certa maneira, formal e semanticamente, evidenciado pelos lexemas “Pasárgada”; o próprio nome do poeta pernambucano; o advérbio “lá” como contraponto a duas realidades, a do narrador e a do eu-lírico; o substantivo “rei”.
Além do campo semântico em diálogo com Bandeira, há a simetria na organização dos enunciados, a saber: assim como no poema de Bandeira que começa com o verso “Vou-me embora pra Pasárgada”, o texto de Garcia se conclui com um enunciado “Vou-me embora para o Cajueiro da Praia, i.e., do mesmo modo que o poema bandeiriano.
A par disso, há que notar o tom contrastivo-irônico tanto presente no texto-fonte quanto no de Garcia. Em suma, ambos os textos perseguem um ideário a seu modo: a liberdade. Há, contudo, uma diferença básica entre os dois textos: enquanto no poema de Bandeira há um sentido existencial de evasão, em Garcia o contraste e a ironia deságuam na crítica social, de costumes, de ausência de ética. Em Bandeira, o poema famoso clama pelo anárquico até; em Garcia, luta-se pela mudança de modos de vida, ou seja, clama-se por uma ordem das coisas, por um mundo menos impaciente e que ainda mede o tempo pela esperança e pelo amor.