BIOGRAFIA

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AMOSTRAGEM

Poesias Publicadas em 1870
(na mesma ordem da edição de 1870)
(Notas de A. Tito Filho na Edição de 1973)

GRANDEZA DE DEUS

Que cena majestosa se me of’rece (1)
Onde quer que um olhar pasmoso fite!
Que notas, que harmonia deleitável
Respira a natureza que me cerca!
Aqui manso ribeiro o prado corta,
Ali mais apressado o rio rola,
Mais além ronca o mar em fúria aceso!
Aqui a leve brisa me bafeja,
E após ela o tufão me açoita a fronte!
Ali pequeno arbusto reverdece,
Mais além mira o céu d’árvore a cúpula!
A roseira que ostenta donairosa (2)
A flor que faz inveja às outras flores,
Que os homens enamora com seus mimos,
Que os ares embalsama com perfumes,
Das murmurantes auras embalada,
Aqui parece rir co’a (3) natureza!
Ali mil outras flores se desfazem
Os campos matizando, em doce cheiro!
Sobre altivas mangueiras gorjeando,
Ou sobre altas palmeiras buliçosas
Estão mil aves ternas à porfia,
Enquanto roxa luz difunde a aurora!
O sol já mostra o disco no horizonte,
E a metade vingando do seu curso,
Em pino cresta o orbe com seus raios!
Já descai (4)no caminho do ocidente
E em breve além do mar se envolve em trevas!
O mar converte em fogo as águas suas,
As nuvens doiro e prata se agaloam,
Os favônios expiram nos palmares,
E o homem nesse instante ao céu se eleva!
Não tarda os horizontes incendidos
Nova forma tomarem: uma estrela
Seus trêmulos fulgores já reflete
Sobre a rugosa face do oceano,
Em seguida mais outras e outras muitas!
A lua que surgiu de sob as águas,
Ou que o rosto mostrou d’além dos montes,
No espaço se equilibra, e sobre a terra
Aos viventes derrama os seus favores!
Óh ! quanta poesia ! óh ! quanto assombro
Onde quer que um olhar pasmoso fite!
O homem que a virtude traz no peito,
Mais a chama cristã no peito ateia!
Ao ímpio que o remorso traz na mente,
Mais a mente o remorso lhe atribula!
O blasfemo que, os céus escarnecendo,
Soltou vozes, que aos céus injuriaram,
Qual o cão que raivoso ladra à lua,
E que alfim (5) já cansado inútil pára
O sacrílego peito comprimindo,
De blasfemar inútil também cessa.
Que pode um grão de areia movediça
Contra a rocha em que o mar se quebra iroso?
Que pode pobre argila sobre argila
Contra Deus que sustenta infindos mundos?
Que pode o homem frágil pequenino
Contra Deus, que o gerou do pó, do nada?
Senhor! o teu poder é grande, imenso !
Tudo quanto é sublime a ti se deve.
Óh minha doce Mãe! – quem no teu peito
Depositou afetos tão sagrados?
Virgem meiga e gentil, que o mundo adora,
Quem te fez tão amável? Esse riso,
Que nos prende e fascina, encanta, arrouba,
Quem t’o (6) depositou nos róseos lábios?
Aves, que gorjeais na umbrosa selva,
A quem deveis o deleitoso canto?
Pois quem tais maravilhas fez no mundo?
Foi Deus, que às flores também deu aroma,
Macio e fresco ciciar às brisas,
Sibilos ao tufão, sussurro às folhas,
Brandura à fonte, correnteza ao rio;
Foi Deus que fez os mares procelosos,
Que lhes deu ondas, escarcéus e vagas,
Que às campinas deu relvas e matizes,
Ao sol fulgores, às estrelas brilho,
E à lua doce luz que a mente aplaca;
Foi Deus que deu um pugilo informe, inerte,
Fez o homem moral à imagem sua!
Óh ! quem há que se iguale ao Deus supremo,
Se ele é só o supremo sobre tudo?
Quem há que o Criador co’a criatura
Compare, se de Deus seu ser dimana?
Senhor ! – o teu poder é grande, imenso!
O mar no-lo (7) revela em seus gemidos,
A terra nos seus verdes atavios,
A flor no seu perfume, o sol nas cores,
As aves no seu canto deleitável,
O céu no seu azul que se marcheta
De milhões de prodígios luminosos,
Quando a noite se desdobra sobre a terra
Seu manto de mistério a todos grato!
Meu Deus ! Senhor meu Deus! quanto és sublime!
Ao teu gesto potente a fronte curvam
O grande, o rico, o pobre, o sábio, o néscio!
O mar que enfurecido em flor rebenta,
O bravo furacão que os bosques prostra,
A fera que rugindo atroa os ares,
O raio que resvala pelo espaço,
O trovão que estrondeia retumbando,
A nuvem que desata em catadupas
E o corisco veloz que caracola,
Tudo, tudo a teus pés, ó Deus se humilha,
Tudo, tudo a teu nome um hino entoa!
E o homem que a razão fez neste mundo,
Depois do teu poder, o mais potente;
O homem que possui um’alma eterna,
Que outra vida lhe of’rece além da campa,
Dos brutos se rebaixa à classe ignóbil,
E as leis posterga ao criador benigno!
..............................................................
Porém, Senhor, perdão p’ro (8) homem frágil,
Que o fizeste d’argila; atende ao mísero:
Quando seus lábios trêmulos soltarem
O suspiro final, que o mundo exige;
Quando seus olhos turvos se cobrirem
Co’o vítreo manto, regelado, eterno;
Quando apagar-se (9) do seu peito a flama;
Quando o frio eternal gelá-lo todo;
Quando a morte, Senhor, tirar-lhe a vida
Nesse céu de venturas, - misterioso –
Dá-lhe asilo, Senhor, lhe cede a glória.

Comentários

(1) of’rece. Oferece. Supressão de uma sílaba por necessidade de metrificação.
(2) Donairosa. Derivado de donaire. É o latim donarium, donairum, donairo. A forma donaire teve influência espanhola. A gente pronuncia donaire tal como se escreve.
(3) C’oa. Em lugar de com a. Necessidade de contagem de sílabas poéticas. Em com a há duas sílabas poéticas reduzidas a uma.
(4) Descai. Verbo descair: deixar prender ou cair.
(5) Alfim. Hoje pouco usado. O mesmo que enfim, finalmente.
(6) To. Combinação dos pronomes te e o. Este o está no lugar de riso. Quem depositou o riso (o) nos lábios teus? (te) Te aqui tem função de posse.
(7) No-lo. Combinação dos pronomes nos e o. Nesta combinação o nos perde o s e o pronome o toma a velha forma lo. Este lo na poesia está no lugar de poder: no-lo revela.
(8) P’ro. Para o. Necessidade de metrificação.
(9) Quando apagar-se. O verbo está no futuro do subjuntivo. Deveria ser quando se apagar. No tempo em que José Coriolano escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos.


CRATEÚS (1)

Lindo sertão meus amores,
Crateús, onde nasci, (2)
Que saudade, que rigores,
Sofre meu peito por ti!
São amargos dissabores
Que em funda taça bebi!
Que saudade, ó meus amores,
Crateús, onde nasci!

Esta incessante saudade
Me espedaça o coração!
Eu gemo na soledade (3)
Esses tempos que lá vão...
Crateús, minha beldade,
Meu lindo, ameno sertão,
Que dura, fera saudade
Me atormenta o coração

Que vezes, em pé, na praia,
Me lembro dos mimos teus!
Dessas c’roas (4), onde ensaia
A rola (5) os gemidos seus!
Onde a lua se desmaia
Alvacenta – lá dos céus!
Ó quantas vezes na praia
Em cismo nos mimos teus

As ondas que vêm chorosas
Na lisa praia morrer,
Lembram-me as auras queixosas
Nos teus vales a gemer!
Lembram-me as moitas verdosas,
Ondeando-se a volver!
Ondas, não vinde chorosas
Na lisa praia morrer!

Que dias esses d’outr’ora
Que o tempo ingrato levou!
Do meu lar eu via a aurora
Que sorrindo despontou!
O galo co’a voz canora,
Cantava : có-córô-cô!
Ai ! esses dias d’outr’ora
O tempo ingrato levou!

Hoje meu peito não goza
A dita que já gozou!
Hoje minh’alma saudosa
Chora o tempo que passou!
Ó sorte desventurosa
Que meus prazeres turvou!
Infeliz de quem não goza
Venturas que já gozou!

Crateús, que dor tão viva!
Ai tempos que já lá vão!
Ao teu nome a dor se aviva
Que sente meu coração!
Assim sofre a sensitiva (6)
Ao toque de incauta mão!
Crateús, que dor tão viva
Ai eras (7) que já lá vão !

Se os sinos tocam meu pranto
Corre, banha o rosto meu!
Seus dobres lembram-me tanto
Os dobres do sino teu!
Eis do sol, o roxo manto,
No ocaso além – se escondeu!
Trocam trindades... (8) meu pranto
Corre, banha o rosto meu!

Não posso ver uma bela,
Não posso, lindo sertão;
Logo me lembro daquela...
Que vive em meu coração.
Crateús, onde está ela,
Dá-lhe lembranças, que eu não...
Não posso ver uma bela,
Não posso lindo sertão!

Dá-lhe lembranças... e escuta
Se a bela por mim gemeu...
Se gemer... a brisa arguta
Me traga o gemido seu.
Ah ! se minh’alma o desfruta ...
Crateús se o gozo eu...
Quem dera ! – Sertão, escuta ...
Escuta se ela gemeu ! ...

E adeus, terra, onde a alvorada
Primeira p’ra mim raiou!
Onde a primeira morada
Meu pai querido assentou!
Onde o galo, à madrugada,
Cantando, me despertou!
Onde, à primeira alvorada,
Ouvi-lhe o có-rócô-cô!

Comentários
1) Crateús. Hoje município e cidade do Ceará. Pertenceu ao Piauí e constituía os municípios piauienses de Independência e Príncipe Imperial.
2) José Coriolano de Sousa Lima nasceu na fazenda Boavista, do termo da antiga vila de Príncipe imperial, que pertencia ao Piauí (veja nota 1).
3) Soledade. Estado de quem se acha só. Lugar ermo, onde alguém vive curtindo saudades.
4) C’roas. Coroas. Supressão de uma sílaba por necessidade de metrificação. Monte de areia, no leito dos rios. No Norte também se diz croa.
5) Noutro local deste livro há comentário sobre rola (pássaro).
6) Sensitiva. Planta, cujas folhas e folíolos têm a propriedade de se fechar, quando se lhes toca (Aurélio).
7) Eras. O mesmo que tempos, épocas.
8) Trindades. Toque das ave-marias. Tardinha (neste sentido só usado no plural).

A Aurora

Douram-se os prados ao romper d’aurora,
Que surge à hora que prazer só diz,
Os horizontes de listões (1) se arreiam,
Aves gorjeiam nos rosais gentis.

Na clara e doce sussurrante fonte,
Que do alto monte se despenha e cai,
O roxo manto de ondeantes cores
Com seus lavores a atenção atrai.

Nas verdes folhas, onde o orvalho oscila,
Brilha e rutina matinal rubim, (2)
Que a meiga aurora coloriu, raiando,
Co’o matiz brando de um primor sem fim

As brancas nuvens que através do espaço,
Do lume baço, pelo ar se vão,
Cingem brocados de um lavor perfeito
Como se feito por virgínea mão

A flor donosa, que do calix pende,
Cheiro recende que se eleva ao céu;
Tudo se expande, se promete vida
À luz querida do cambiante véu.

Da cumieira, no trinado vário,
Quanto o canário nos atrai, seduz!
Chilra a andorinha na cornija santa,
E o galo canta co’a fulgente luz.

Douram-se os prados ao romper da aurora,
Que surge à hora que prazer só diz,
Os horizontes de listões se arreiam,
Aves gorjeiam nos rosais gentis.

A luz, em tanto, que listões formara
Já mais se aclara pelo espaço além;
A luz d’aurora que assomou dourada
É dissipada pelo albor que vem.

E a criancinha, que acordando chora,
Logo afervora maternal amor;
A linda virgem, que do sono acorda,
Só se recordar de brincar e flor.

O pobre artista, que o trabalho presa,
Apenas reza, se encomenda a Deus,
Todo se afana no trabalho duro,
Que é seu futuro mais dos filhos seus.

E prados e aves, e perfume e montes,
E orvalho e fontes, e listões no ar,
“Hosana” (3) tudo ao Criador entoa,
Que a seus pés voa, que lh’os (4)vai beijar.

A criancinha, que acordou chorosa,
Virgem formosa, que sonhou com flor,
O artista pobre, que o trabalho estima,
Tudo se anima co’o fulgente albor.

E antes que o dia radioso assome,
E que o sol dome todo o ar com luz,
Na mente um hino fervoroso e santo
Eu devo, em tanto, consagrar à Cruz. (5)

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A luz dourada, que listões formara,
Quanto se aclara pelo espaço além!
A luz d’aurora que surgiu dourada,
É dissipada pelo albor que vem.

E a natureza como está sorrindo
Ao astro lindo que apontando vem!
Tudo progride na ciência e arte!
Por toda parte resplandece o bem!




Comentários
1) Listão. Faixa. Risca larga. Existe o variante listrão.
2) Rubim. Pedra preciosa de cor vermelha. Em sentido figurado, como no caso, cor vermelha. Há a variante rubi, mais usada. Palavra de propcedência latina.
3) Hosana. Da língua hebraica . Significa: salve, também louvamos. Breve oração dirigida a Jeová, pedindo socorro, tirada do Salmo 118. Aclamação do povo, marchando em tono do altarna festa dos tabernáculos: “A maior parte das orações pronunciadas nesta solenidade, começavam pelo hosana” (John D. Davis – Dicionário da Bíblia” – 280). A multidão dos discípulos que acompanhavam a jesus na sua entrada em Jerusalem aclamava-o, dizendo: “Hosana, filho de Davi”. Hosana corresponde a canto de alegria. No sentido religioso é expressão de júbilo. Substantivo masculino: o hosana. Usa-se hosana também como interjeição.
4) Lh’os. Combinação do pronome lhe (em função possessiva) com o pronome os (objeto direto): que vai beijar os (pés) lhe (dele).
5) Cruz. Deus. Religião.


As Aves da Minha Terra

As aves da minha terra,
Quer no sertão, quer na serra,
Sabem falar!
Esta seu fado carpindo, (1)
Aquela a lira ferindo
No seu trovar!

Outras aos matos ensina
Doces nomes que amofinam
Seus corações;
Esses nomes tão queridos,
Sempre tristes – repetidos
Nas solidões.

Quando vai findando o dia,
E que, escondido, alumia (2)
Ainda o sol,
A pomba (3) no tronco antigo
Carpe saudades do amigo
Ao arrebol!

De outra parte saltitando
De galho em galho cantando
Gentil sofreu, (4)
Toca na lira afinada
Uma canção modulada
Que o amor lhe deu!

E aquela que além se esconde,
Lá chama (ninguém responde)
“Ó Zabelê!” (5)
Tão triste! Lá foi –se embora,
E a amada que tanto chora
Ninguém n’a vê!

E aquela que ali suspira,
Que sofre, que até delira
Num seco pão,
Em tom sentido e penoso
Lá chama o chorado esposo
“João-corta-pão!” (6)

também a rola gemendo
o esposo que viu morrendo
se lastimou!
Seu fim co’o sol comparando
No ocaso, diz suspirando:
“Fogo-apagou!” (7)

Da cegueira que não o deixa
O caboré já se queixa
Cantando ao sol,
Repetindo assim o nome
Da doença que o consome:
“Terçol-terçol!...” (9)

Também da beira do rio
Quando tudo é já sombrio
De um mulungu,(10)
A infeliz, a desgraçada
Chama com voz abafada:
“Jacurutu!”(11)

Mas... que soldado tão belo
Faz com seu peito amarelo
A guarda ali?
É uma ave mui guerreira,
Que, pulando na aroeira (12)
Diz: “Bem-te-vi!” (13)

Também diz um, todo o dia,
Quando o sol põe-se ou radia,
E surge além;
Chamando pela esposinha,
Dia a saudosa avezinha,
“Vem vem!”(14)

Vede lá também aquela,
Chama-se a tal bacharela (15)
Pega (16)ou cancão; (17)
Ela sorri-se, ela fala,
Assobia, canta, estala...
Que compr’ensão!

Eis ali outra – tão bela!
Rompendo, qual sentinela,
O denso véu
Da mudez da noite escura,
Quando, vendo a criatura,
Grita: “tetéu!” (18)

Dai, porém, ao papagaio (19)
Da oratória o louro (20), daí-o,
Pois nisto estou:
No dizer, no estilo é uma,
É das aves na tribuna
O Mirabeau! (21)

É terra que tem primores
A terra dos meus amores,
Onde nasci!
As aves de lá se falam,
Cantam, suspiros exalam
No Piauí!




Comentários
1) Carpindo. Verbo carpir. Emprego no sentido de prantear, chorar. O verbo carpir não conjugado na primeira pessoa (singular) do indicativo presente. Em conseqüência não tem o subjuntivo presente.
2) Alumia. Noutro local há comentário sobre este verbo.
3) Pomba. Fêmea do pombo. Os autores românticos tiveram muita afeição por esta ave, símbolo da inocência.
4) Sofreu. Também sofrê. É o corrupião. Onomatopéia: tomam-se as onomatopéias traduzidas em palavras humanas para designar o animal que as pronuncia.
5) Zabelê. Copio: “De pés vermelhos e de corpo quase todo vermelho, a primeira impressão para quem vê, de longe, a Zabelê, é de que se trata da Juriti-piranga (ordem Columbiformes, espécie Oreopeleia); e, como o seu canto é de uma nostalgia e ternura inigualáveis, ainda mais se positiva a impressão de que ela é a Juriti-piranga. Entretanto, é muito maior do que a Juriti; o seu tamanho aproxima-se mais de uma inhuma ou de um mutum; sendo assim mais desenvolvida, a natureza lhe permitiu o hábito de andar pelo chão, de caminhar ou correr comumente pelo solo” e adiante: “quanto à origem da palavra Zabelê, não há dúvida de que é tupi, e, quanto ao significado, afirmam que é um enunciado onomatopaico” (Bugyja Britto – Zabelê – 8).
6) João-corta-pau. João tem grande voga no Brasil para a designação de aves. O João-corta-pau pertence à família dos Caprimúlgidas. Plural: Joões-corta-pau.
7) Fogo-apagou. Noutro local há comentário sobre fogo-apagou.
8) Caburé. Nome dado a uma espécie de mocho pequeno. Nascentes dá à palavra origem tupi. Com a significação de “o propenso a morar no mato”. Vive isolado. Só sai de noite.
9) Terçol-terçol. Terçol é pequeno abscesso no bordo das pálpebras. “Lindo olho tem o caburé” – diz-se por ironia.
10) Mulungu. Árvore leguminosa. Nome de uma árvore africana. Nome africano.
11) Jucurutu. Ave de canto triste, plangente. Nome tupi.
12) Aroeira. Árvore de madeira muito dura.
13) Bem-te-vi. Ave muito conhecida. Quando canta parece repetir: bem-te-vi. Daí o nome.
14) Vem-vem. Nome dado a vários gaturamos. Plural vem-vens.
15) Bacharela. Empregada a palavra no sentido de mulher faladora. Aplica-se à pega.
16) – 17) pega ou canção. Ave faladora. Com o nome de pega se batiza a meretriz.
17)
18) Tetéu. Ave pernalta.
19) Papagaio. Ave trepadora, notável pela facilidade com que imita a voz humana. Parece que a origem é o latim papagallus, no provençal papagai, espanhol papagayo. Tido o papagaio como sabido e esperto. Há estórias de papagaios notáveis. No folclore brasileiro o papagaio aparece como herói de muitas aventuras. Anedota de papagaio se tem na conta de anedota imoral.
20) Louro. Nome que se dá ao papagaio. Assim já cantavam os troveiros medievais:
Papagaio louro
Do bico doirado,
Leva esta carta
Ao meu bem amado.
21) Mirabeau. Honoré Gabriel Victor Riqueti, conde de Mirabeau, francês (1749-1791). Famoso orador. Pertenceu à assembléia francesa e da tribuna lançou a frase célebre e desafiadora: “Estamos aqui por vontade do povo e daqui só sairemos pela força das baionetas”.

Só um Anjo Será

A flor que melindrosa se baloiça
No melindroso, delicado pé,
Não é como o meu bem tão melindrosa,
Não é, não é, não é!

A aurora que o levante purpureia, (1)
Que os horizontes colorindo vem,
Não tem aquelas lindas, róseas faces,
Não tem, não tem, não tem!

A brisa que sussurra nas palmeiras
É doce quando a tarde em calma está;
Mas voz tão maviosa como a dela
Não há, não há, não há!

A flauta (2) que desoras (3) suspirando
Quebra da noite a plácida soidão, (4)
Não é como o seu canto – direi sempre
Que não, que não, que não!

Se alguma virgem bela ataviou-se
Para mais realçar o todo seu,
Esse todo o meu bem – sem atavios –
Venceu, venceu, venceu!

Su’alma e coração são compassivos,
Ela tem o candor de um serafim, (5)
É, sim, a minha amada um tipo d’anjo;
É, sim, é sim, é sim!

Só um anjo de Deus, dos céus baixado,
Que à celeste mansão remontará,
Será como o meu bem perfeito e puro,
Será, será, será!




Comentários
1) Purpureia. Verbo purpurear. Dar cor de púrpura (vermelho escuro)
2) Flauta. Também frauta. Formas variantes.
3) Desoras. Melhor que o poeta houvesse empregado a locução a desoras, fora de horas, alta noite. Também se usa a desora, como neste passo de Manuel Bernardes: “... estrondos noturnos que a desora se ouviam”.
4) Soidão. Forma antiquada de solidão. Felinto Elísio empregou-a: “Na soidão dos escuros corredores”.
5) Serafim. Nome de entes celestiais que estavam à roda do trono de Deus, na visão de Isaias. Cada um deles tinha seis asas: com duas cobriam a face, com outras duas cobriam os pés e com duas voavam. Figuradamente, pessoa formosa.

Às Seis Horas da Manhã

A mente está mais tranqüila,
A natura é mais louçã,
Tudo tem mais resplendores
Às seis horas da manhã.

Traja a aurora vestes d’ouro,
Matizando o colo (1), a chã,
Dando à corrente brilhantes
Às seis horas da manhã.

Negligente sobre o leito
Meiga virgem, linda e sã,
Inda jaz, cismando amores
Às seis horas da manhã.

Outras vezes levantada
Saúda o terno galã,
Que um adeus fruir viera
Às seis horas da manhã.

Da janela ao acenar-lhe
Co’o mais formoso ademã, (2)
Mostrou quanto era ditosa
Às seis horas da manhã.

E ele disse: “Oh! mais se firma
O donoso talismã
Do nosso amor! – m’o (3) asseguram
Às seis horas da manhã!”

Libando da esposa um osc’lo (4)
Nos lábios cor de romã, (5)
Procura o esposo o trabalho
Às seis horas da manhã.

Acorda a gentil criança
Chorando a gritar mamã!
Logo a mãe ao seio aquece-a
Às seis horas da manhã.

O desgraçado recorda
Sonhada aventura – vã
Mas essa mesma o consola
Às seis horas da manhã.

Já brinca à beira do lago
Mui esbelta a jaçanã, (6)
Nessas horas dos folgares,
Às seis horas da manhã.

As aves trinam nas selvas,
E grita a maracanã, (7)
As brisas serenas sopram
Às seis horas da manhã.

Horas! vós sois precursoras
Do prazer, como do afã!
É tudo vida e trabalho
Às seis horas da manhã.

Lá surge o sol levantino!
Prostai-vos, raça pagã,
De Deus a sombra que surde
Às seis horas da manhã.

Comentários
1) Colo. Emprego no sentido de zona de transição entre raiz e caule.
2) Ademã. Sinal externo, com que se manifesta o gosto, ou desprazer, e assim qualquer afeto da alma; gesto (Morais).
3) Mo. Combinação do pronome átono me com o demonstrativo o (isto): me asseguram isto.
4) Ósc’lo. Ósculo. O poeta suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação.
5) Romã. Fruta, de cor rósea.
6) Jaçanã. Ave ribeirinha, de bela plumagem. É o tupi-guarani nhaçanã.
7) Maracanã. Ave. Do tupi maracá = m (b) aracá (o maracá, o chocalho), nã (semelhante, parecido): semelhante ao maracá, equiparado ao chocalho (veja Romão da Silva – “Denominações Indígenas na Toponímia Carioca” – 235).

Nênia

(oferecida à minha querida irmã, Joana C. de A e S., por ocasião da morte de nosso querido e sempre lembrado pai)

A corda que mais sonora
Soava em meu coração,
Já não vibra alegremente
As mesmas notas de então.
Agora, envolvida em crepe, (1)
Só exprime a minha dor;
Quanto é triste o seu acento,
Pungente e consternador!

Ó meu pai, que me educaste
Na santa lei de Jesus;
Que me deste bons exemplos,
Os olhos fitos na Cruz;
Por que deixaste este mundo
Tão solitário e cruel,
Onde sinto só tristezas,
E sorvo somente fel?

Morreste... e eu sei que tu’alma
Descansa eterna e feliz;
M’o (2) dizem tuas virtudes,
Tua vida santa m’o diz;
Porém tua ausência eterna,
Tão saudosa, tão fatal,
Me dilacera as entranhas
Com uma dor sem igual.

Ó vós, corações de filhos,
Que inda hoje suspirais
Por um pai piedoso e santo,
Cuja memória ainda amais:
Avaliai minhas mágoas
E a dor do meu coração,
Pois meu pai já não existe
Minha mais doce afeição.
Saudade que me acompanhas
Pela morte de meu pai,
Não sejas tão aflitiva;
Fibras do peito chorai!
E vós lágrimas saudosas,
Por estas faces corre;
Que eu não sei como inda vivo
Sem meu caro pai, – não sei!

Tu, corda que mais sonora
Soava em meu coração,
Vibra sons consoladores,
Como as brisas da soidão;
Vibra, sim, que este meu pranto
É puro pranto de amor
Por meu pai, que amarei sempre,
Que hoje habita co’o Senhor.


Comentários
1) Crepe. Emprego no sentido de luto
2) Mo. Combinação do pronome átono me com o demonstrativo o (isto): tuas virtudes me dizem isto.

O Piauí

Vós pensais que minha terra
Menos que as outras encerra
De beleza e de primor?
Enganai-vos: é tão bela,
Tão prendada que como ela
Poucas há, se alguma o for.
É terra, cujas campinas
Se matizam de boninas.

Tem tantas frutas gostosas,
Tantas aves sonorosas,
Tem um sol tão criador!
Tem uma manhã luzida,
Tem uma tarde sentida,
Que recorda tanto amor!
É terra, cujas campinas
Se matizam de boninas;

Tem caças mui saborosas,
Que vivem tão descuidosas,
Sem temer o caçador!
Suas madeiras têm favos
Que abrigam seus filhos bravos
Da fome e mais do calor.
É terra, cujas meninas
Mostram nas faces boninas.

Seus rios são caudalosos,
Navegáveis e piscosos,(1)
Emanam dizendo – amor!
Tem lindas flores fragrantes, (2)
Ouro, prata e diamantes,
E outras minas de valor.
Fogem por entre boninas
As nascentes cristalinas.

Tem um céu tão anilado,
De noite tão estrelado,
Tão gentil e encantador,
Que eu não sei se assim o digo
Porque conservo comigo
O que chamam próprio amor.
Mas quem nega que as meninas
Mostram nas faces boninas?

Seus filhos são mui briosos,
São, em geral, talentosos,
Têm à pátria fido (3) amor;
Suas filhas são fagueiras,
São lindas, são feiticeiras, (4)
De branca ou morena cor.
É terra cujas meninas
Mostram nas faces boninas.

Tem uma lua saudosa,
Uma brisa harmoniosa,
Que exala suave odor;
Tem mancebos (5) dedicados,
Valorosos, extremados
Na paz, na guerra, no amor.
Tem vales e tem colinas
Matizadas de boninas.

Vereis nas altas palmeiras,
Ou nas copadas mangueiras
Chilrar o alado (6) cantor;
Vereis, libando a doçura
Do cravo, da rosa pura
O fulgido beija-flor.
Vê-lo-eis pelas campinas
Beijar olentes boninas.

Vós pensais que minha terra
Menos que as outras encerra
De beleza e de primor?
Enganai-vos: é tão bela,
Tão prendada que como ela
Poucas há, se alguma o for.
É terra, cujas campinas
Se matizam de boninas.

Minha terra é o El Dorado, (7)
Deleitoso, afortunado,
Que Walter Raleigh (8) sonhou;
É o país de Cocanha, (9)
Onde a ventura é tamanha
Que a vida nunca abafou!
Oh! ide ver a minha terra
Que tanta beleza encerra!

Comentários
1) Piscosos. Abundante em peixes. Pelo latim pisce, como representação excepcional do grupo sc.
2) Fragrantes. Aromáticas. Perfumadas. Não confundir com flagrante.
3) Fido. Pelo latim fidu, o mesmo que fiel.
4) Feiticeiras. Emprego no sentido de mulher que encanta por sua beleza. Atraente.
5) Mancebo. É o latim mancipiu, moço, prisioneiro de guerra, escravizado por ser mais útil ao trabalho. Emprego no sentido de jovem.
6) Alado. Latim alatu. Que tem asas, pássaro.
7) Eldorado. Explicação de nascentes: “lugar imaginário, cheio de riquezas incalculáveis (De Eldorado, o dourado, nome do soberano de um país imaginário da América do Sul, o qual ao amanhecer revolvia-se em pó de ouro).” De R. Magalhães Junior a observação: “Por estas palavras era designada uma terra do ouro, que se supunha localizada na América do Sul. Nela existiriam os maiores depósitos desse metal precioso em todo o mundo e não haveria pobres, vivendo todos na maior abundância. A lenda se originou, sem dúvida, da apreensão, por Pizarro, dos tesouros dos Incas, no Peru. Aplica-se a expressão, nos dias de hoje, a todas as regiões em que abundam ouro, petróleo ou outras riquezas. Voltaire, em Candide, ou L’optimisme, fez o seu herói visitar o Eldorado, nas imediações do Paraguai, e aí não tinha curso o dinheiro, por inútil, pois até as crianças, nas ruas, brincavam com pepitas de ouro...” (“Dicionário de Provérbios e Curiosidades” – 116).
8) Walter Railegh. Também se escreve Ralegh. Cortesão, navegador, colonizador, escritor. Inglês, viveu entre os séculos XVI e XVII.
9) País de Cucunha. País da abundância, onde tudo é deleitoso. Criação do fabulário da idade Média – segundo R. Magalhães Junior -, que cita Maurice Rat para informar haver a expressão aparecido pela primeira vez no século XII. R. Magalhães Junior transcreve Capistrano de Abreu: “Por Gabriel soares sabemos que a gente de tratamento só comia farinha de mandioca fresca, feita no dia. O mesmo autor dá uma lista, forçosamente incompleta, das conservas e doces, transplantados uns de além-mar, aprendidos outros na terra. Dir-se-ia um país de Cocagne”. Cocagne é forma francesa.

Como a Flor do Bulebule (1)

Os cabelos de Maria
À mais leve exalação
Se embalançam,
Brincam, dançam.
Buliçosos eles são,
Como a flor do bulebule,
Aos beijos da viração.

Anelados por seus ombros
De uma candura sem fim,
Ora adejam,
Ora beijam
O seu seio de marfim. (2)
Como a flor do bulebule,
A brisa agita-os assim.

Quem a visse descansando
Sua face sobre a mão
Docemente
Negligente,
Dissera-a etérea visão,
Ou a flor do bulebule,
Se não sopra a viração.

Mas e a brisa se levanta
Como as aves de manhã,
Os cabelos,
Louros, belos,
Da terna virgem – louçã,
Como a flor do bulebule,
Beija-os a brisa da chã. (3)

Os cabelos de Maria,
Aos beijos da viração
Se embalançam,
Brincam, dançam
Resplendem meigo clarão.
Como a flor do bulebule,
Seus lindos cabelos são.

Comentários
1) Bulebule. Ervinha, cuja flor se agita facilmente com qualquer vento. Figuradamente, o que é buliçoso, inquieto.
2) Marfim. Emprego figurado: branco.
3) Chã. Solo. Superfície da terra.

O Correr da Vida

Surge a aurora purpurina,
Na roseira abre um botão,
Brilha n’água cristalina
Dessa aurora almo (1) clarão.
Mas passou... não volta a aurora,
A fonte não mais colora,
Nem o botão nessa hora
Há de mais abrir-se, não.

Exala a flor doce aroma,
Os gozos prazer nos dão,
O riso aos lábios assoma
De acordo co’o coração.
Mas esse aroma sumiu-se,
Esse prazer extingui-se,
Esse riso consumiu-se,
Jamais nunca voltarão.

Se meiga aurora resplende,
É outra – a de ontem morreu!
O botão que se desprende,
Não é o que emurcheceu!
O cheiro, o prazer gozado,
Tudo – lá jaz no passado,
Tudo, lá jaz olvidado
Na era em que se perdeu!

A brisa que hoje cicia,
Que dela amanhã? – morreu!
A hora passada, o dia
Não volta, desapareceu! (2)
Mais perto estamos da morte,
Trilhe este ou aquele norte,
Ninguém evita seu corte,
Dá-se à terra o que ela deu.

Comentários
1) Almo. Noutro local deste livro há comentário sobre almo
2) Desparecer. Noutro local deste livro há comentário sobre desparecer

Sobre o Mar

Aos crebos (1) sons das empoladas ondas,
Que o barco fende, perpassando ovante,
Modelo as dores de meu peito aflito,
Afiro as mágoas de meu peito amante.

Solitário entre o mar e o firmamento,
Procuro serenar meus tristes males,
Porém o pensamento esbaforido
Erras nestes azuis, equóreos (2) vales.

Por que sulcando as ondas marulhosas,
Arrisco minha vida já precária?
Por que não findar meus tristes dias
No seio de uma gruta solitária?

Mas não! Morrer sem vê-la, longe dela
Fora morrer mil mortes num só dia.
Morrer!... quero viver para fitá-la...
Morra depois embora de alegria.

Quanta vida reluz nos seus encantos!
Nos seus olhos gentis quantos fulgores!
Mas eu... pobre de mim! – luto co’a (3) morte,
Gemo ao recontro de pungentes dores!

Talvez que os frescos ares que respira,
Me façam renascer, voltar-me a vida;
Talvez que do seu hálito no ambiente
Possa minha saúde ser mantida.

Talvez! Avante, ó barco e bem depressa!
Leva-me ao suspirado porto amigo;
Oh! leva-me, que eu tenho neste peito
Muitas saudades que afogar comigo.

Comentários
1) Crebo. Repetido, amiudado.
2) Equóreos. Relativo ao mar. Origem latina.
3) Co’a. Noutro local deste livro há comentário sobre co’a

Hino ao Criador

Senhor, tu és o Deus, o pai celeste,
Que minha mãe adora ajoelhada;
Por mim, por meus irmãos, por meus parentes,
Por todos, neste mundo, ela não cessa
De dirigir-te aos céus freqüentes súplicas.
Suas lágrimas que manam saudosas
Por meu Pai, que ela amava mais que tudo,
Depois do teu amor que ao dele excede,
São outras tantas preces que se elevam
A ti, Senhor, por seu repouso eterno!
Tu foste de meu Pai o deus propício;
Por ti acrisolou-se na virtude
Vivendo como vive o justo e o sábio,
Morrendo como morre o sábio e o justo.

Senhor, o teu poder tudo proclama:
O inseto humilde que se escapa aos olhos,
A enorme fera que no corpo avulta,
A dura pedra, o vegetal virente,
A terra, o espaço, o céu, a luz, as trevas,
E o homem que fizeste à imagem tua.

Àquele lindo arroio que serpeia
Por entre flores, ervas e pedrinhas,
Mandaste-lhe correr sereno e puro,
E o arroio correu!
Àquele mar sanhudo que de encontro
Vem quebrar-se nas duras penedias,
Mandaste-lhe gemer nos seus embates,
E o mar, Senhor, gemeu!

Àquela várzea, que verdeja ao longe,
Àqueles férteis prados recamados
De mimoso capim, por onde pastam
De minha Mãe as brancas ovelhinhas,
Mandaste a chuva fecundar no inverno,
E a chuva os fecundou!
Mandaste à terra que seu seio abrisse,
E nele recebesse o grão que a vida
Dos povos alimenta; e ao grão mandaste
Crescer e produzir: e o grão crescendo,
Aos olhos do colono, que o mirava,
Produziu e vingou! (1)

Oh! quanto o meu Senhor foi previdente
Quando do mundo tirou do caos horrível!
Como estas laranjeiras fez sombrias
E lhes deu flores e dourados frutos!
Como à pinha (2) lhe deu sabor tão grato!
Como deu à romã tão doces bagos!

Senhor! Tu és a fonte donde emanam
Vida e prazer, amor e poesia!
O doce sabia nos seus gorjeios,
O lindo pintassilgo (3) nos seus descantes, (4)
O canário amarelo em seus trinados,
As aves da soidão, que amam as trevas,
Tudo, tudo, Senhor, Deus de proclama
Imenso, Criador, Onipotente!

Não te saúda a rosa quando se abre
Aos beijos da manhã na voz da brisa?
Não são tipos de amor que te revelam
O cravo (5), o bogari , (6) os brancos lírios? (7)

Múltipla a natureza em elementos,
Tudo tem sua voz para louvar-te:
As flores o perfume; o canto as aves;
O mar seus escarcéus; o sol fulgores;
O céu, onde rutilam tantos mundos,
Milhões de estrelas que cintilam belas;
E o homem, ledos hinos de harmonia,
Do coração brotados fervorosos,
Que lh’os (8) dita a razão por teus favores.
Hosana, (9) a Deus nos céus! Na terra Hosana!

Ó Deus de minha Mãe, Deus piedoso,
Que na terra e no céu meu Pai amava,
Aceita deste mísero vivente
As flores, os incensos que te envia
Nos seus versos de amor; - flores, incensos,
Sem galas, sem perfumes, sem sinceros,
Filhos d’uma alma que te adora crente.
Oh! aceita-os, Senhor! se não desprezas
A voz da brisa, o sussurrar da fonte,
O bulício das ramas que te elevam
Um cântico de amor fervente e terno,
Jamais desprezarás a voz daquele
Que por ti modelaste na feitura,
Superior à toda natureza
E somente sujeito ao teu destino.
Sim! aceita-os, Senhor, e teus favores
Derrama-os sobre mim, por piedade,
E sobre minha Mãe e minha amada,
E sobre os meus irmãos e a Pátria minha.
Derrama-os. Minha voz será constante,
Senhor, em proclamar-te o Deus propício
De meus Pais, - o meu Deus que adoro humilde.

Comentários:
1) Vingou. Empregado no sentido de amadurecer, medrar, crescer: as sementeiras vingaram.
2) Pinha. O mesmo que ata, fruta.
3) Pintassilgo. Pássaro
4) Descantes. Concerto de vozes.
5) Cravo. Flor do craveiro
6) Bogari. Flor. Também se diz bogarim
7) Lírios. Flor.
8) Lhos. Combinação dos pronomes átonos lhe e os: dita a razão a ele (lhe) homem estas cousas (os).
9) Hosana. Noutro local há comentário sobre hosana.

O Mar e o Vento

E o vento e o mar viram nascer o gênero humano, crescer a selva florescer a primavera; e passaram e sorriram-se.
(A Herculano – Eurico)

Irmãos, sócios nas fúrias, quem não sente
O gelo do terror ao contempla-vos!
Em cada vaga, que se arroja irosa,
Em cada sibilar, que rijo açoita,
Eu ouço a voz do Imenso, a vos do Eterno!

Oh! como assemelhai-vos majestosos
Àquele que vos deu poder tamanho!
Como zombais nas vossas tempestades
Do mísero mortal, fraco e mofino!
- É que de Deus representais o verbo?

Quando vossos esforços combinados,
Os vossos temporais, vossos horrores
Se cruzam n’amplidão do espaço imenso,
Converte-se o ateu (1), o cristão ora,
E o guerreiro gentil olvida a espada!

E vós como passais – altivo – ousado!
Como sorris da própria humanidade!
Que se curva, humilhada, às vossas iras!
- É que Deus vos criou primeiro que o homem,
E em vossas fúrias estampou seu verbo!

Rugi! Gemei! ó mar, ó tempestade!
Erguei aos ares vagalhões indômitos!
Enchei o espaço de tufões (2) medonhos!
Que vos pode domar a raiva insana,
Que cava abismos, que soçobra armadas? (3)

Quem vos pode domar? Deus, Deus somente.
Passai – sorri – zombai da humanidade.
Quem da afronta ousará tomar vingança?
O homem? – este não, que o escarnecestes:
- Somente o Criador, de quem sois verbo. (4)

Comentários
1) Ateu. Formação grega: a (elemento privativo) e theo – teo (Deus). Sem Deus. Que não crê em Deus.
2) Tufão. Vento violento. Parece que se trata do árabe tufan.
3) Armadas. Forças navais. Navios de guerra.
4) Verbo. Referência ao Filho de Deus, a segunda pessoa da Santíssima Trindade. Diz o Evangelho: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus. O Verbo fez-se homem e habitou entre nós e nós vimos a sua glória, glória como Filho unigênito do Pai” (São João – I, 1, 14). O Verbo feito homem é Jesus Cristo.

O Catingueiro

Nasci e crie-me nas bastas catingas,(1)
Nas selvas umbrosas (2) de meu Piauí;
Não gosto das praças, seus usos detesto,
Que males e dores não sofrem-se (3) aí!
Ditoso me julgo, tocando a viola,
Cantando os amores que temos aqui.

Eu vivo contente de ser catingueiro, (4)
Da caça, da pesca, das frutas rendeiro. (5)

Voltando da roça, nas horas douradas,
Sentidas que a rola (6) diz fogo apagou, (7)
Vi uma donzela (8) risonha, formosa,
Que amor em peito pra sempre plantou.
Pedi-a, ma (9) deram, casei-me com ela,
E Deus nosso leito d’amor fecundou.

Co’a esposa querida, co’os caros filhinhos,
Que vida que eu passo! que ternos carinhos!

Se o dia é de festa, se é santo (10) ou domingo,
Eu dispo (11) a camisa do quente algodão,
E visto o meu fato (12), que tanto custou-me, (13)
Se acaso não quero vestir meu gibão; (14)
E vou-me pra vila, que o padre me ordena
Que à missa não falte, não falte ao sermão.

Entretanto na igreja, de joelhos curvados,
Minh’alma não cisma do mundo em cuidados.

Não cisma em cuidados, que toda se prende
Às chagas, sofridas por nós, de Jesus;
Meus lábios suplicam... e as preces contritas,
Humildes se abraçam co’a trava da Cruz, (15)
Se abraçam – que nela de Cristo os discip’los (16)
Enxergam seu norte, (17) seu anjo, sua luz.

Ditoso me julgo na crença primeira
Que a mãe carinhosa ditou-me (18) à lareira. (19)
Cumprido o preceito que a igreja nos manda
No seu mandamento primeiro, (20) saí,
E a casa do padre vigário procuro,
Que ele é meu compadre – melhor nunca vi!
Co’o riso nos lábios, me diz: “Como passa?
Sem ter almoçado não vá-se (21) daqui.”

Às vezes espero; mas outras, saudoso,
Regresso à choupana, (22) que eu amo extremoso.

Oh quadro de encantos! de graças ornado!
Sim: vede-o, invejai-m’o . Que vida esta aqui!
- A esposa na porta, co’o riso da esp’rança, (23)
Aponta-me rindo: “Filhinhos, lá... vi!”
E as lindas crianças olvidam seus brincos: (24)
“Mamãe! - Gritam elas – papai vem ali”.

Cheguei! – minha esposa foi logo abraçando,
E bênçãos (25) e beijos aos filhos fui dando.

Mimosos afagos me faz a consorte,
Em roda os filhinhos me chamam papai,
Me contam mil cousas, me pedem bolinhos;
Quem vai tão ditoso no mundo – quem vai?
Ó vós das cidades notai os enlevos
De nossas catingas, senhores, notai!

Não temos cuidados, que a Virgem Maria
A pobre choupana dos pobres vigia.

Mil frutas encontro nas vastas catingas
Nas várzeas e campos do meu Piauí:
Cajus, (26) guabirabas, (27) maduras pitombas, (28)
Dendês (29) e palmeiras, cajás, (30) buriti, (31)
Também há mangabas (32) e umbus (33) tão gostosos!
Pequis (34) e juçaras, (35) e o bom bacuri. (36)

Que vida e doçura nos densos palmares,
Em nossos ubérrimos, (37) frescos pomares!

Em nossos açudes, (38) lagoas e rios,
Meu Deus! que fortuna! quão provido és!
Que boas branquinhas, (39) que peixes gostosos,
Piaus (40) e corvinas, (41) mandis, (42) mandibés! (43)
Aqui só tem fome quem vive na rede,
As mãos amarradas, atados os pés.

Não troco esta vida, pois outra mais bela
Não vejo no mundo, nem farta como ela.

No inverno que vida! que dias alegres!
A chuva na terra, na terra o feijão,
O arroz, a maniva (44) e o milho amarelo,
Que nascem e medram no fértil sertão.
Das vacas que mugem – de bafo cheiroso –
Mungimos (45) o leite que faz requeijão. (46)

De noite a coalhada (47) na branca tigela (48)
Se estende na mesa tão branca como ela.

Nas praças se mente, nas praças se zomba
De nós catingueiros – dos filhos daqui:
Que importa? – desprezo seus usos tiranos,
Que a gente sufocam! – não quero-os (49) pra mi? (50)
Ditoso me julgo nas margens virentes
Floridas, umbrosas do meu Piauí.

Não faltam-nos caças nas matas sombrias:
Queixadas, (51) veados, (52) tatus (53)e cotias. (54)

Belezas dos campos, belezas donosas, (55)
Que os olhos deslumbram nos dias de abril!
A várzea verdeja de flores toucada, (56)
No vale baloiçam-se flores a mil!
E a coma das altas, verdosas colinas
Ondeia, flutua de um modo gentil!

Não pode ter gozo nenhum verdadeiro
Quem vive no mundo sem ser catingueiro.

Orquestras das pacas – que valem, que servem!
Da minha viola prefiro o rojão; (58)
Prefiro os tangeres (59) que desse umbuzeiro,
Pesado de frutos, ferindo-me estão;
Prefiro essa orquestra que as aves modulam,
Que calam delícias no meu coração.

Delícias! Delícias! – prazer que extasia
Nas asas sonoras da doce poesia!

Que importa-me (60) a vida dos homens da praça?
Que importa? Que digam se tenho razão:
Em nossas catingas mil frutos pendentes
O gosto me excitam em toda a sazão; (61)
Em suas madeiras mil favos (62) se criam,
Mil favos gostosos – tão doces que são!

Nambus, (63) codornizes (64) abundam nos matos
Carões (65) nas lagoas, marrecas e patos.

Nas praças que zombam de mim: que me importa?
Co’a esposa, co’os filhos em torno ao fogão,
Eu vivo ditoso, não tenho remorsos,
Em quanto a viola desfiro o rojão!
E as coplas (66) alegres com ele se casam
Do peito nascidas, do meu coração.

Esposa, filhinhos, cantemos, cantemos,
De Deus a bondade louvemos, louvemos.

Nasci e criei-me nas bastas (67) catingas,
Frondentes, sombrosas – do meu Piauí;
Não gosto das praças, seus usos detesto,
Que males e dores não sofrem-se aí!
Ditoso me julgo, tocando a viola,
Cantando os primores que temos aqui.

Bem disse o vigário que nós catingueiros
Vivemos mais fartos que em londr’os (68) banqueiros.

Comentários
1) Catingas. O nome do poema é “O Catingueiro” – e catingueiro é o que habita a catinga. Esta palavra catinga também se escreve caatinga. Aliás, neste sentido em que Coriolano emprega a palavra, aparece sempre caatinga, embora os dicionários também registrem a variante catinga: “Por caatinga, entende-se um aglomerado de plantas lenhosas, de baixa altura, cuja composição, longe de ser uniforme, varia extraordinariamente de acordo com a qualidade do solo, do sistema fluvial e com a topografia geral do terreno. O xerofitismo é o seu elemento básico. As folhas caducam e desaparecem completamente nas secas. Será curioso assinalar que a grande quantidade de folhas das florações das caatingas poderia ser elemento de grande significação para sua sobrevivência. Essa transformação, porém, não se realiza por motivo da umidade do solo. Todavia, abundam nas caatingas tubérculos radiculares providos de bactérias nitrificantes, cujo tipo mais notável é representado pelas leguminosas. Essas bactérias hibernam nas secas para reaparecerem em grande atividade logo que desabam as primeiras chuvas. Dá-se, então, o milagre do verde, que surpreende o vaijante habituado à paisagem desoladora do estio” (Carlos porto – “Roteiro do Piauí” – (114-115). Mais abaixo (pág. 115) salienta o consagrado estudioso: “a caatinga é a vegetação típica do Nordeste, a mais profusa e a que lhe imprime feição peculiar”. Nascentes tira caatinga ou catinga do tupi Ka’a (mato) e tinga (branco). Macedo Soares transcreve a definição que St. Hilaire deu de catinga: “mato que perde as folhas anualmente, e ostenta menos vigor que o mato virgem – e cujas folhas são ora brancacentas, ora avermelhadas, de um bolor ou ferrugem que as cobre” (Dicionário). Acha o dicionarista que nesta acepção catinga vem do tupi-guarani cating, bolor, ferrugem. Acha ainda que caá-ting, mato branco, “como dão todos os escritores, inclusive Batista Caetano, nem tem propriedade”. Há também catinga, com transpiração fétida, bodum dos negros, que Batista Caetano tira do tupi-guarani cati, bolor, contração de caquâ ting, crescido branco (bolor). O cardeal Saraiva registrou catinga (fedor) como vocábulo de Angola. Esclarece Macedo Soares: “Mas, o que se pode concluir é que, em Portugal, o sucedâneo de bodum era, como na colônia do Brasil, o tupi-guarani catinga, e que esta palavra passou, como tantas outras, para a África na boca dos negros repatriados. O certo é que ela não se acha em vocabulário africano, nem nas relações dos viajantes”.
2) Umbrosas. Cheias de sombra. Procede do latim umbra, sombra.
3) Não sofrem-se. Na época em que José Coriolano escreveu ainda não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje se diria: não se sofrem.
4) Catingueiro. Veja observação de n° 1.
5) Rendeiro. Indivíduo que cobra rendas. Arrendatário.
6) Rola. No linguajar indígena nheengatu a rola tem o nome de juriti. Juruti ou juriti é o tupi yiruti e uruti. Alfredo da Mata disse da rola:”Bonita rola (Leoptoptila rufolixa rich. e Bern, ordem Columbidae), que não tem manchas metálicas nas asas, o que distingue a rola do juruti (Veja Nunes Pereira – Moron Gueta – um Decameron Indígena” – 641)
7) Fogo-apagou. O canto da rola parece dizer fogo-apagou, razão pela qual ela é conhecida por esta expressão.
8) Donzela. É o latim dominicella, diminutivo de dona (latim domina) e originalmente significou moça nobre. A palavra passou a denominar a mulher solteira, virgem.
9) Ma. Combinação dos pronomes átonos me e a, representativos de objetos indireto e direto, respectivamente.
10) Santo. Dia santo, santificado.
11) Dispo. Primeira pessoa do presente do indicativo do verbo despir, irregular.
12) Fato. Roupa. Morais tira a palavra do espanhol hato.
13) Que tanto custou-me. No tempo em que José Coriolano escreveu não se havia disciplinado a colocação dos pronomes átonos. Hoje se diz: que tanto me escutou.
14) Gibão. Traje do vaqueiro, de couro curtido, de bode ou de vaqueta.
15) Cruz. Referência ao martírio de Cristo rumo ao monte Calvário.
16) Discip’los. Discípulos. O poeta suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação.
17) Norte. Empregado no sentido de rumo, direção.
18) Que a mãe carinhosa ditou-me. No tempo em que José Coriolano escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje se dirá: que a mãe carinhosa me ditou.
19) Lareira. Laje do lar no qual se acende o fogo.
20) Mandamento primeiro. São dez os mandamentos da Lei de Deus. Eis o primeiro: “Adorar a Deus e amá-lo sobre todas as coisas”.
21) Não vá-se. No tempo em que José Coriolano escreveu não se havia disciplinado a colocação dos pronomes átonos. Hoje se dirá: não se vá.
22) Choupanha. Casa rústica de madeira ou de palha.
23) Esp’rança. Esperança. Por necessidade de metrificação, o poeta suprimiu uma sílaba da palavra.
24) Brincos. Folguedos, brincadeiras.
25) Bênçãos. De modo geral, as camadas populares não dizem bênção, mas conservam a tônica latina benção (oxítona).
26) Cajus. Fruto do cajueiro. Tem o nome científico de anacardium occidentale. Fruta de que há duas partes alimentares: o pendúnculo carnoso e doce, que se come cru e de que se fazem doces, sorvetes, cajuadas, cajuína; e a amêndoa da castanha (sendo esta o verdadeiro fruto do cajueiro) e que depois de desembaraçada )ao fogo) do pericarpo algo oleoso e cáustico, usa-se à maneira de amêndoa da Europa, em doces e confeitos, e também sob a forma de farinha (veja A. J. de Sampaio – “A alimentação Sertaneja e do Interior da Amazônia” – 225) Muito popular a castanha assada. Para Romão da silva caju é nome indígena: (a) ca (chifre) ajú igual a ayú (o pomo amarelo). Cf. “Denominaçõesd Indígenas na Toponímia Carioca” – 83. Macedo Soares (Dicionário) entende que vem de caá, folha, planta, mais ju igual a jub, amarelo.
27) Guabiraba. Fruto da guabirabeira. Nascentes tira do tupi gwa’bi, comestível, e rab, relativo de ab, pelo, por alusão a ser tormentoso, razão pela qual se chama cabeluda.
28) Pitomba. Fruto da pitombeira.
29) Dendês. Fruto da palmácea africana e da espécie amazônica. Cultivada para a produção de óleo ou azeite de dendê. Nome africano de palmeira do Congo e da Guiné, introduzida no Brasil. Forma derivada, dendezeiro.
30) Cajás. Fruta muito apreciada para refrescos, sorvetes, cambicas. Vem do tupi cã igual a (a) cã. (osso, caroço) e já igual a yá (fruta) – a fruta de caroço, o fruto que é todo caroço.
31) Buriti. Nome científico: mauritia vinifera. Palmeira muito alta. Dá frutos comestíveis. “em tempo de calamidade – escreveu Almeida Pinto – o povo erra pela matas à procura destes frutos, para mitigar a fome; mas o uso cotidiano e prolongado deles determina um amarelidão na cútis”. Macedo Soares acrescenta:”O tronco fornece por incisão excelente suco vinhoso; as folhas têm variadas aplicações; op caule fornece madeira de construção: faz lembra a tamareira dos desertos da África Central”. Palavra indígena: imbiriti – de i (água) mais mbiriti, que emite, que bota, que escorre. Na Amazônia se diz miriti. Dos cocos do buriti se prepara vinho e a famosa buritizada (doce de polpa do fruto). O óleo é alimentar.
32) Mangaba. Fruto delicado. Estomacal. Dele se faz doce. O leite é aconselhado contra a tuberculose pulmonar. Do tupi-guarani mangab, fruto que fornece borracha. De fato, o leito coagulado fornece borracha de superior qualidade (Veja – Macedo Soares – Dicionário).
33) Umbu. Também imbu, forma preferível, talvez do tupi ia-imbu, fruto que dá água. Comestível. Da polpa do fruto bem maduro se prepara a imbuzada, com leite e açúcar. Também se faz o doce de imbu. Os tubérculos do imbuzeiro são comestíveis e deles, segundo Gilberto Freyre, se prepara cocada de batata de imbu.
34) Pequis. Josué de Castro dá o pequi como fruto indígena (“Geografia da Fome” – 211). Este fruto isento de casca é cozido com água e sal e comido puro ou com farinha d’água. Também se come cru, ou cozido com feijão, ou arroz. Escreve-se ainda piqui, mas pequi é melhor. Muito usado o óleo de pequi, obtido da polpa do fruto e da semente.
35) Juçara. Romão da Silva (op.cit.) oferece o seguinte como etimologia: - ju igual yu (espinho; fragoso; pungente) çara (ser, o que é) – ju igual a yu (espinho, espinhento) içara igual a yçara (cerca, esteio, tapume) – a cerca ou tapume de espinho; o esteio fragoso ou espinhento. E acrescenta: “Diz-se no comum do espinho utilizado pelos índios à guisa de agulha”. E adiante: “Jiçara e iuçara (q.v) designa uma casta de palmeira (Euterpe edulis), a que chamam também açaí; a fruta dessa palmeira da qual se faz uma beberagem saborosa e muito apreciada no Norte do Brasil” (pág. 214). Para Macedo Soares, açaí provém de ia (fruta) e çai, que chora, bota água. Raimundo Morais disse do açaí, o mesmo que juçara: “Amassado, produz um vinho purpurino, aromático, que é tomado com açúcar e farinha d’água ou farinha de tapioca. Em Belém, capital paraense, as amassadeiras de açaí assinalam as respectivas quitandas com uma bandeirinha encarnada” (O meu dicionário das Cousas da Amazônia” – 66)
36) Bacuri. Fruto e semente comestíveis. De Raimundo Morais: “O fruto, amarelo, parece uma laranja grande. A polpa é branca, acidulada e doce. A compota é fina, delicada, incomparável. O sorvete – simplesmente delicioso. Dos frutos naturais da planície é o mais gostoso. Os filhos, como são chamados os gomos sem caroço do fruto, comidos crus, com farinha d’água torrada, constituem uma sobremesa excelente” (op. Cit – 72). Esses gomos sem caroço, pelo menos no Piauí, recebem o nome de língua.
37) Ubérrimo. Superlativo absoluto sintético de úbere (abundante).
38) Açude. Palavra de origem árabe.
39) Branquinhas. Peixinho de água doce.
40) Piaus. Peixe. Nome indígena: “pele manchada”.
41) Corvinas. Peixe saboroso. Deriva-se de corvo por causa da cor.
42) Mandis. Nome indígena: “pele manchada”.
43) Mandibés. Nome de peixe. Denominação indígena.
44) Maniva. Explicação de nascentes: “Planta da mandioca, também chamada maniveira. Caule da mandioca (Norte). (Do tupi mani’iwa, arvore de mani; Mani era o nome de uma jovem que morreu de amores e de cujo corpo, segundo uma lenda, brotou a raiz da planta)”.
45) Mungimos. Verbo mungir. Ordenhar.
46) Requeijão. Lacticínio, geralmente de fabricação caseira, feito de leite de vaca ou de cabra.
47) Coalhada. De coagulare, latim. Morais registra coagular, coalhar e qualhar. E acrecenta que a forma divergente coalhar melhor se escreve qualhar. Aurélio só registra coagular e coalhar. Em “Geografia da Fome”, Josué de Castro refere-se ao alimento: “E não é só com milho que se consome leite em abundância nop serttão do Nordeste, mas de muitas outras formas. Misturtando com café de manhãzinha, ou com a colhada fresca ou escorrida...” (pág. 204). Coalhada é o leite coagulado, geralmente de vaca. Coalhada, em tijelas de barro, nos sertões do Nordeste (A.J.Sampaio –“A alimentação Sertaneja e do interior da Amazônia” – 241). Anoto estas considerações de Martins de Aguiar: “É o mesmo caso de coalho, coalhar, coalhada, coalheira. De co-alhar passou a cu-a-lhar e, em fim, a cua-lhar (qualhar). Qualhar é clássico e está no sapiente Morais. É a única feição gráfica que deve tomar o verbo (e todos os cognatos), pelo menos no Brasil, onde só um tolíssimo pedante proferirá cu-alhar. Se em Portugal o fazem, nobreza e povo, é que influiu nos eruditos a lembrança do étimo latino, coagulare, e o vulgo se pôs docilmente a imitá-los”. (“Notas de Português de Felinto e Odorico” – 425)
48) Tigela. Origem latina. Vaso de louça ou de barro. Forma de xícara, sem asas.
49) Não quero-os. No tempo em que José Coriolano escreveu, não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje se diria: não os quero.
50) Mi. Forma arcaica do pronome mim. No latim, mihi. A nasal m de mihi nasalou a vogal i, de que resultou mi, mim. As nasais possuem a tendência de nasalização das vogais com que estão em contato. No português arcaico já aparece mim.
51) Queixadas. Porco bravio. Espécie de porco-do-mato. Substantivo feminino.
52) Veado. Do latim venato, animal de caça.
53) Tatus. De ta (pelo, confundindo com ca), casca, escama, e tu que pode ser tou igual a toó abs. de oó, encorpado, denso. Há duas espécies de tatu: a tatu-peba (de peb, chato) e o tatu-bola.
54) Cutias. Animal roedor. Romão da Silva tira cutia de a-cu-ti ou a-gu-ti, o indivíduo que come com as patas dianteiras, feito gente.
55) Donosas. Feminino de donoso, elegante, gracioso, belo.
56) Toucada. Emprego em sentido figurado, orlado, encimado.
57) Coma. Folhagem das árvores, copa.
58) Rojão. Câmara Cascudo acentua que conheceu a forma velha de rojão, aí por 1910: era pequeno trecho musical, tocado a viola ou rabeca (por ambas também), antes do verso cantado pelo cantador.como na cantoria do desafio não havia acompanhamento musical, os trechos eram executados antes do verso e depois, para o descanso do primeiro cantador e pausa para o adversário prepara a resposta. Depois de 1918 – continua ele – rojão tem nova significação, valendo duração, medida, forma, estilo da cantoria, sua extensão e modelo (veja – dicionário de Folclore Brasileiro).
59) Tangeres. Substantivo masculino plural desusado. Significa tocatas, soadas, ou sonatas de instrumentos músicos. No caso, emprego figurado. Na pronuncia o ge é aberto.
60) Que importa-me. No tempo em que José Coriolano escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje: que me importa.
61) Sazão. Estação do ano. Figuradamente, tempo apropriado à colheita de frutas.
62) Favos. É o depósito de mel das abelhas.
63) Nambus. Ave. Tem os pés e bicos vermelhos e por canto um assobio longo e estridente. Também aparecem inamu, inhambu, enambu, nhambu. Etimologia proposta por Rodolfo Gareia; y demonstrativo (igual a o que, aquele que), am, em (pé) e bur (emergia): o que emerge em pé, a prumo; ou de y – am (a que se levanta, mais ba, estrondado); ou de y – nhumbú (o que corre surdindo, ou emergindo, ou que levanta o vôo rumorejando).
64) Codornizes. Plural de codorniz. Origem latina. O mesmo que codorna, ave campestre, caça muito procurada.
65) Carão. Ave.
66) Coplas. Estrofe de certo número de versos que faz parte de uma canção ou cançoneta.
67) Bastas. Feminino de basto, espesso, denso, abundante.
68) Londres. Capital do Reino Unido (United Kingdon of Great Britain and Northern Ireland). Constituído de Inglaterra, Gales, Escócia e Irlanda do norte. A chamada Grã Bretanha, a maior ilha da Europa, é constituída da Inglaterra, Gales e Escócia. O Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do norte, na área metropolitana, tem uns dez milhões de habitantes.

A Virgem do Crateús

Oh! não!... pincel, não pode o mais sublime
Pintar o brilho teu!
A poesia te cante; ela se exprime
Co’a linguagem do céu.
(D. Antônia Gertudres Purich – Portuguesa)

Há na minha província uma ribeira,
Um sertão, onde eu vi a vez primeira
Sorrir-me da existência a doce luz:
Tem o nome da tribo (1)que o habitava,
Quando ao rude tapuia (2) entregue estava,
Esse nome, sabei-o, - “Crateús.” (3)

Não tem matas sombrias, espaçosas,
Não tem serras soberbas, grandiosas,
Que apontem gigantescas para o céu:
Tem somente campinas decoradas
De campestres ervinhas perfumadas,
Que estendem sobre o chão seu verde véu.

Tem várzeas vicejantes, salpicadas,
De um sem número de flores nacaradas,
E brancas como a rosa e o jasmim;
E d’outras mui gentis, cheirosas flores,
Tão belas no matiz, nas várias cores,
Esmaltando o tapete de capim.

Pois foi nessa ribeira, em que a verdura
Parece uma alongada cobertura,
Tecida pela mão do próprio Deus,
Onde também gozou a luz primeira,
Aquela que é rainha da ribeira
Na formosura d’anjo e dotes seus.

Pintá-la... tentativa sem proveito!
Só a mente a concebe, só o peito,
E os olhos, que deslumbram o seu fulgor!
Palavras... essas não, que a não descrevem,
Que lhes faltam perfumes; não se atrevem
Nem sequer a esboçar-lhe a tez., a cor!
Quem pudera pintar-lhe os fios (4) louros?
Os meigos, vivos olhos - dois tesouros,
Que pudera-os (5) pintar? – Certo, ninguém!
Azula-se debalde o firmamento,
Debalde o graminoso pavimento
Verdeja sobre a terra - aqui – além! –

Mas, tentemos, talvez...; busquemos cores:
Que modelos gentis, encantadores
Nos of’recem (6) o céu, a terra, o mar;
Há’í cores por certo primorosas;
Mas não são como as cores graciosas
Dos olhos que eu procuro, em vão pintar!

Eles têm um volver tão deleitoso!
Uma luz que a luzir infiltra um gozo,
Que as fibras vão queimar no coração!
Que abrasa sem matar, que dá mais vida,
Parece uma centelha despedida
Lá do céu... mas não sei se será, não!...

Sua boca de rosa, seu sorriso
Entreaberto – parece um paraíso!
Seus dentes, nem o gelo (7) é branco assim!
Se ela dá-me (8) uma fala modulada
Pelas falas dos anjos – afinada, -
Se ela ri-se (9) donosa para mim...

Ai! que eu homem não fico! – mudo e frio,
Me converte em estátua o calefrio (10)
Que nos gélidos membros me coou!
Empanam-se-me os olhos, enlanguescem
E das faces as cores desfalecem
Como o lírio pendido que murchou!

Que belas são as cores da alvorada!
A aurora tem a face tão rosada!
É meiga em seu sorrir – é meiga, sim!
Tem flores, tem perfumes – é tão bela!
Mas não tem o que tem no riso dela
Quando ri-se, (11) donosa para mim!

Mulher ela não é: silfo (12) ligeiro,
Percorrendo, talvez, o mundo inteiro,
Anda ao peito a acordar novo sentir!...
É, talvez, uma idéia sedutora...
É, talvez, um sorriso da SENHORA, (13)
Que pairou sobre a terra a refulgir!

Quem me dera gozar um só instante –
Agora – aquele olhar tão cintilante,
Que só têm as estrelas lá no céu!
Quem me dera! Tão longe!... o que faz ela?
Dorme? Sonha? – Talvez! Nem eu, donzela,
Poder do sonho teu rasgar o véu!...

Infeliz que sou eu! Nunca julguei-o, – (14)
Este inferno, em que ardo, em que me ateio!
Mas de que me queixar? – quem m’o forjou?
Ajuntei em montões os combustíveis,
Acendi, aticei-os! E, insofríveis,
Ardo neles! Meu Deus! Que infeliz sou!

Insofríveis! Oh! não: por ti querida,
Eu dera de bom grado a própria vida;
Qu’importa?... A dura ausência terá fim.
Serei, serei um dia venturoso,
O futuro me acena dadidoso;
Que bens que ele entesoura para mim!

Oh! e quanto eu te adoro, ó minha imagem!
Gemerei; mas não temas vassalagem,
De meu peito pra outra: oh! isto não.
Sou firme como a rocha combatida,
Donde a vaga recua espavorida,
Como a fé que desprende a contrição.

Linda virgem, feitiço (15) de minh’alma,
Nem sabes quanto sofro! Em doce calma
Tu, porém, bebe o ar desse sertão!
Linda virgem, meu anjo, meu tormento,
Sobe às asas sutis do veloz vento
Vem dar-me um lenitivo ao coração.

Não é moça, meu Deus! – é uma idéia
Angélica, querida, que volteia
Em torno à mente minha: mulher não!
É talvez, um sorriso da SENHORA,
Transformado em imagem sedutora
Que pede neste mundo adoração.

Comentários
1) Tribo. Referência aos Crateús, índios que habitaram a região do hoje município de Crateús, Ceará. No tempo em que o poeta escreveu, Crateús pertencia ao Piauí – com o nome de dois municípios – Independência e Príncipe Imperial. O Piauí trocou os dois pelo de Amarração, hoje Luís Correia, porto marítimo. O Ceará fundiu os municípios de Independência e Príncipe Imperial num só, com o nome de Crateús. Odilon Nunes, mais de uma vez, no 1º Volume de “Pesquisas para a História do Piauí”, faz referência aos índios Crateús. Eis um passo: “Em 1703, os Anapurus pedem aldeamento, mas um pouco mais tarde estão a perturbar a tranqüilidade dos colonos, e assim também os Crateús que levam o desassossego ao Ceará e Piauí e contra os quais toma o Governador de Pernambuco medidas repressivas”. (pág. 109).
2) Tapuia. Índios bárbaros. Tapuias habitavam o norte, e tinham muitas tribos com várias denominações.
3) Crateús. Veja nota 1.
4) Fios. Empregado como cabelos.
5) Quem pudera-os pintar. Na época em que José Coriolano escreveu ainda não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje se diria: quem os pudera pintar ou quem pudera pintá-los.
6) Of’recem. O poeta suprimiu a vogal e para diminuir uma sílaba (necessidade de metrificação).
7) Gelo. Empregado no lugar de neve.
8) Se ela dá-me. Na época em que o poeta escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje: se ela me dá.
9) Se ela ri-se. Veja nota 8.
10) Calefrio. Também calafrio. Formas variantes.
11) Quando ri-se. Veja nota 8.
12) Silfo. “Ser macho sobrenatural, que, segundo crenças celtas e germânicas, ocupava no mundo invisível posto intermediário entre gnomo e a fada”. (Nascentes).
13) Senhora. Nossa Senhora.
14) Nunca julguei-o. Veja nota 8
15) Feitiço. Para uns provém de feito mais sufixo iço, nome dado ao ídolo feito pelo próprio adorador. Para outros promana do latim facticiu, com evolução fonética normal. Empregado como encantamento, encanto.

Careço de Teu Amor

Eu careço (1) de ti, ó minha amada,
Como da rotação carece a terra,
Como d’alma carece o corpo imbele, (2)
Como o mundo de tudo quanto encerra.

Eu careço da luz desses teus olhos,
Como as plantas da luz do sol carecem,
E da gota d’orvalho a flor no prado,
E da mansão celeste os que falecem.

Eu careço do teu riso fagueiro,
Como o crepusc’lo (3)do fulgir d’aurora,
Como carece o arrebol do ocaso,
E a terna virgem do chorar que chora.

Eu careço do teu falar tão meigo,
Como dos bosques das brisas sussurrantes,
Como os regatos do arenoso leito,
Por onde se deslizam murmurantes.

Sim, do teu hálito, careço, ó bela,
Como o vivente do ar que se respira,
Como os astros do céu, onde fulguram,
Como a rosa do aroma que transpira.

Do teu amor careço, ó minha amada,
Como das ondas da praia em que se quebram,
Como as aves do canto mavioso
Com que tão docemente se requebram.

Do teu amor careço, ó minha amada,
Como o nauta carece da bonança,
Como um peito que geme consternado
Carece de seus males a mudança.

Tu és o meu santelmo, (4) a minha vida,
Sem ti o q’eu seria? um desgraçado,
Folha seca do ramo desprendida,
Um fantasma na vida já penado.

Ou se não fora muito: apenas sombra,
De um ente que amou tanto, e, malfadado,
Vive dores curtindo e acerbas penas,
Os dias consumindo desgraçado.

Eu te amo, como se ama a meiga aurora,
A noite de luar, a flor do prado,
Os favônios (5) brincões, e as harmonias
Dos cantores gentis do bosque ondado.

Qual alma e carinhosa mãe solicita
O filhinho que aperta sobre o peito,
Assim eu te consagro amor tão íntimo
Que não posso dizer-t’o (6) com efeito!

Sim, Maria, meu anjo, quanto te amo
Eu não posso dizer-t’o! Como ousara
Sem palavras que exprimam quanto sinto!
Como eu te amo, ninguém talvez amara!

Tu és o meu santelmo, a minha vida,
Sem ti o q’eu seria? – um desgraçado,
Folha seca do ramo desprendida,
Um fantasma na vida já penado!

Comentários
1) Eu careço. Rigorosamente o verbo carecer significa não ter: ele carece de razão, isto é, não tem razão. Aparece também em grandes escritores como necessitar, da forma em que empregou o poeta.
2) Imbele. Fraco, sem forças.
3) Crepusc’lo. Supressão de uma sílaba por necessidade de metrificação. Crepúsculo.
4) Santelmo. Chama azulada que, principalmente, em ocasiões de tempestade, aparece nos mastros dos navios, por efeito da eletricidade (Aurélio).
5) Favônios. Vento fagueiro, suave.
6) Dizer-to. To aqui é combinação do pronome átono te com o demonstrativo o: dizer-te isto.

Voto de Gratidão

(À filantropia do ilustre cidadão inglês o Sr. George Patchett, tão bem prodigalizada na calamitosa quadra epidêmica em que nos achamos.)

“Semper bonus, nomenque tuum, laudesque manebunt.”
(Virgílio)

Poeta, não me curvo ante os altares
Da lisonja que sempre detestei;
Nunca da lira fiz subir aos ares
Vendidos cantos, - nunca os modulei.
Só presto culto à cândida amizade,
À virtude, ao herói só prestarei;
Só me curvo ante o altar da Divindade;
No pó da infâmia nunca rojarei.

Estro de minha pátria, santo enleio,
Que meu peito dilata, ó gratidão!
Derrama nestes metros (1) que encadeio
Tua doce e suave inspiração.
Que eu diga em poucos versos as virtudes
Daquele piedoso coração,
Onde não cabem preconceitos rudes,
E só ferve o ardor da compaixão.

Filho querido de Albion, (2) teu nome
Entre nós assumiu alto renome,
Co’o o heróico Pernambuco há de morrer;
Mas, enquanto o pendão de sua glória
Tremular nos anais de nossa história,
Teu nome abençoado há de viver.

A sorte, que te olhou tão davidosa,
Não a vês a sorrir-te mais donosa,
Mostrando-te um porvir de tanta luz?
É o fogo celeste que fulgura!...
Que espera decorar-te a fronte pura
Do lume etéreo, que no céu transluz!

Filha de Deus, excelsa caridade!
Com teus louros de tanta piedade
Engrinaldaste a fronte do bretão: (3)
São louros eternais, que não fenecem.
Imarcescíveis – nunca se esvaecem,
Perfumados do orvalho de Sião. (4)

Este povo tão nobre e hospitaleiro,
Que, sempre denodado, do estrangeiro
Soube o jugo tirano sacudir,
Não se humilha à mentida potestade,
Mas aos feitos da santa caridade
Profunda gratidão sabe nutrir.

Sabe! Terra de bravos, belicosa,
Nos triunfos, doutrora, tão famosa,
Quando em prol de seus foros batalhou,
Repeliu sempre o ousado aventureiro;
Mas hoje ao heroísmo do estrangeiro
Tributa as homenagens que ganhou!

Feliz do povo quando na batalha
Expõe o peito impávido à metralha
Ensurdecido aos ecos do canhão,
Por libertar a pátria escravizada;
E depois – beija a mão abençoada
Do estranho que leniu sua aflição.

Pátria de Newton, 5 Inglaterra, exulta
Aos sons da lira brasileira – inculta!
Novo lustre realça os brilhos teus.
Nas artes, no comércio poderosa,
Nova c’roa (6) te cinge luminosa,
Mais grata aos homens e mais grata a Deus.

Quantas dores, bretão, não tens poupado
À terna filha, ao filho desvelado,
À mãe solícita, ao afanado pai?
Quantas dores, bretão, tens removido
Do par ditoso que somente unido
Ditosa a vida no correr lhe vai!

Homem sublime! Herói – que herói se chama
Aquele que se aquece à pia (7) chama
Da caridade – aceita o voto meu
De eterna gratidão, - filho somente
De um peito brasileiro incandescente
À nobre ação que te franqueia o céu.

Filho querido de Albion, teu nome
Entre nós assumiu alto renome,
Co’o o heróico Pernambuco há de morrer;
Mas, enquanto o perdão de sua glória
Tremular nos anais de nossa história,
Teu nome abençoado há de viver.

Recife (pelo cólera), 22 de março de 1856

Comentários
1) Metros. O mesmo que versos.
2) Álbiom. Antigo nome da Inglaterra. Pronuncia-se Ólbion. Ainda hoje por Álbion se designa literalmente a Inglaterra. Em inglês a palavra não toma acento gráfico. Pode em português escrever-se Albião.
3) Bretão. Da Bretanha. O mesmo que inglês.
4) Sião. Em hebraico Zion, Tsion. Nome de uma das colinas de Jerusalém. Nome que também poeticamente se aplicou a toda a cidade de Jerusalém. Tornou-se o símbolo da esperança da volta do povo judeu para a Palestina. Sião tem sido motivo poético desde o rei-poeta Davi e outros autores dos salmos bíblicos, até Dante e Camões.
5) Newton (Isaac). Físico e matemático inglês (1642 – 1727). Descobridor da gravitação e da teoria das cores. Obra principal: “Philosophiae naturalis principia mathematica” (Princípios matemáticos da filosofia natural), em que a formulação definitiva da mecânica de Galileu e abriu caminho para as descobertas do setor da mecânica celeste e continuou incontestada até a formulação da teoria da relatividade. Estabeleceu os fundamentos do cálculo infinitesimal.
6) C’roa. Coroa. Suprimida uma sílaba por necessidade de metrificação.
7) Pia. Piedosa.
Observação: No final da poesia, José Coriolano escreveu: pelo cólera. Segue-se o estudo.
CÓLERA-MORBUS. Ou cólera-morbo, ou simplesmente cólera. Assim descreve Drigalski a respeito deste mal. “Tão rica em maravilhas mas tão fértil em calamidades, tão freqüentemente maltratada pela natureza como pelos conquistadores é a Índia, que foi em todos os tempos e que é ainda a sede de um outro mal terrível. Na planície compreendida entre o delta do Ganges, o Hongli, o Bramaputra e os contrafortes do Himalaia uma epidemia violenta irrompe freqüentemente. No mais quente verão – na estação fria isto se produz mais raramente – acontece sempre que um indígena, depois de ter consumido os belos frutos da região, bebido da água de uma lagoa sagrada ou de algum poço, seja presa de uma doença repentina. Todo o corpo parece esvaziar-se numa diarréia irrepreensível; apesar do calor, o doente não pode transpirar. Sofre uma sede insaciável, sua face torna-se toda parda, seu corpo se desseca, seus membros tornam-se arroxeados e frios. A voz fica tão fraca, que ele só pode falar com grandes esforços. Perde logo os sentidos”. Todos os continentes conheceram o terrível mal. Na América do Sul, só em 1869 foi extinto.
Cólera, como paixão, ira, frenesi é a palavra feminina. E quanto à doença, deve dizer-se o cólera ou a cólera? Referindo-se à doença, Aurélio dá cólera como substantivo feminino e masculino: a cólera, o cólera.
Eis anotação de Silveira Bueno: “ O substantivo cólera é feminino, mas no composto cólera-morbus vem predominando o gênero masculino de morbus. A maioria dos gramáticos insiste no gênero: a cólera-morbus. A maioria, porém, do povo teima em levar ao masculino: o cólera-morbus. Quem vencerá? O povo” (Questões de Português” – pág. 87).
Napoleão Mendes de Almeida sustenta que “o composto cólera-morbo é do gênero feminino”.
Por esta forma se manifesta Cândido de Figueiredo: “Ao ler diariamente os numerosos telegramas que nos anunciam os casos coléricos da Rússia, de Paria, e da Itália, sinto destes calafrios, que não exprimem terror, mas uma repugnância instintiva pelo nome que dão à epidemia: o cólera”. (“Lições da Língua Portuguesa” 2º vol – 1901 – Lisboa – pág. 300). E acrescenta: “A palavra cólera, de origem grega, é feminina em todos os dicionários do respectivo idioma; passou para o latim, e ali também conservou o gênero feminino; passou para o português e aqui foi sempre feminino na boca dos mestres da língua e nos dicionários de melhor nome”.
Julgo oportuno transcrever estas considerações de Vasco Botelho de Amaral (“Problemas da Linguagem e do Estilo” – 1948 – págs. 190 a 192): “Quem abrir um dicionário de grego, como o de Bailly, por exemplo, encontra lá o vocábulo khole, biles, fel, e, no sentido figurado, cólera, ira. Em kholera, feminino, já se lê o sentido especial da doença. O latim recebeu do grego a palavra e pode ver-se em Quicherat que o vocábulo cholera, também feminino, significa na língua latina a biles, ou a doença da cólera, ou o sentimento da ira.
Tanto nesses dicionários, grego de Bailly ou latino de Quicherat, como noutros, toda gente pode verificar que o vocábulo greco-latino referia muita vez o próprio vômito que caracteriza tão medonha doença.
Temos, pois, que a palavra cólera já no grego e no latim nomeava a doença física e a doença sentimental, com a biles como base das perturbações, e já nessas línguas era feminina.
Passemos agora a ver o que aconteceu em francês.
Consultando etimólogos franceses, como Dauzat, aprendemos que o latim cholera deu em francês choléra (como nome da doença caracterizada pelos vômitos, isto é, pelas perturbações biliosas) e colère, isto é, ira.
Colère é feminina em francês. Mas le choléra (o nome da doença) é masculino.
Ora, como em Portugal há muita gente que se limita a papaguear a França, o gênero masculino francês do nome da doença começou a aparecer em traduções portuguesas. Começou quando?
Quando – não se sabe. Mas eu direi: sempre que a doença flagela alguma região do globo, a língua francesa espalha a notícia e os tradutores portugueses espalham a asneira de cólera no masculino.
Ora, não está certo que os nossos diários e, em reflexo do noticiário das agências, também as emissoras, ora empreguem a palavra num gênero ora noutro. Uns chamam a essa horrível doença a cólera; outros o cólera.
De estranhar é que a nossa Imprensa e a nossa Rádio concedam à palavra dois gêneros.
Mas eu ainda me admiro mais de não haver censura para certas indisciplinas. A vítima é sempre a língua portuguesa; e o resultado, a desorientação do público.
Em Portugal e no Brasil foram vários os filósofos que se ocuparam do gênero da palavra cólera. Entre outros, defenderam a feminilidade de cólera os autores seguintes: Leite de Vasconcelos, Cândido de Figueiredo. Ribeiro de Vasconcelos, Gonçalves Viana.
Era de supor que, depois das advertências desses Mestres da língua, não mais tornasse a aparecer “o cólera” em letra de forma. Redondo engano. A palavra hoje continua a ser tratada como hermafrodita pelos tradutores e pelos redatores portugueses.
Não se julgue que tal gênero incorreto não aparece em obras de responsabilidade. O excelente Dicionário de Aulete e Valente apresenta cólera no masculino, o que é verdadeiramente lamentável.
Além da sobredita razão de o vocábulo ser em grego e em latim o mesmíssimo que traduz a doença e o sentimento, além dessa razão, há ainda a contribuir para o gênero feminino a terminação em a, peculiar de tal gênero, e o uso dos melhores autores portugueses.
Os mais competentes autores de obras de Medicina em Portugal e no Brasil adotaram sempre a cólera, e não o cólera, à francesa.
Artistas da pena sempre lhe deram esse gênero, como Alexandre Herculano, o qual em O Monge de Cister escreveu:
“Com rapidez da cólera ou da peste...” (IX, tomo I, 17ª edição).
Muitas vezes acrescenta-se à palavra cólera o vocábulo latino morbus, isto é, doença. Como é masculino, toma-se em francês o conjunto le cholère-morbus como masculino. Os tradutores portugueses imitam e dizem “o cólera-morbus”.
Ainda neste caso, devemos, porém, corrigir para o feminino, considerando morbus como um elemento justaposto de cólera, que é feminino.
No dicionário de Dificuldades indiquei aos estudiosos esta abonação de Garret, nas Obras Completas: “é a cólera-morbus”.
Em suma: o cólera, o cólera-morbus são erros. A cólera ou, então, a cólera-morbo – sempre feminino. Eis a correção indiscutível”.

A Donzela e a Sensitiva

A donzela é prazenteira,
Como a aurora quando raia;
Tão fulgente,
Tão nitente,
Como a luz que o sol espraia:
Ela é como a sensitiva, (1)
Que ao leve toque desmaia!

É tão meiga como o riso
Da criancinha inocente;
É mimosa,
Duvidosa
Qual luz d’aurora nascente:
Ela é como a sensitiva,
Que do toque se ressente,

A donzela tem caprichos,
Como as vagas caprichosas;
É qual bela
Meiga estrela
Sobre as águas marulhosas:
Ela é como a sensitiva,
Como as flores mais donosas.

Às vezes nas faces dela
Brilha a cor que tem a rosa,
Desbotada,
Desmaecida
Depois vê-se a cor mimosa.
Ela é como a sensitiva,
Que se ofende melindrosa.

Sim, às vezes a donzela
É como a cecém (2)cheirosa
Sempre amada,
Festejada;
Outras vezes melindrosa.
Assim como a sensitiva,
Como as vagas – caprichosa.

A donzela oculta espinhos
Como a rosa em defensiva;
Se embravece,
Mas murchece
Depois como a sensitiva!
Às vezes ela é tão branda!
Outras vezes tão altiva!!

Comentários
1) Sensitiva.Planta. Noutro local há comentário sobre sensitiva.
2) Cecém. O mesmo que açucena.

A Órfã de Amor
e
A Rosa Desfolhada


Oh! quanto minha sina se assemelha
À triste sina desta pobre flor!
Ambas sofremos o rigor da sorte,
Ambas somos, meu Deus, órfãs de amor!

O quente estio dissecou-lhe as pet’las, (1)
O vento desfolhou-a pelo chão,
Faltou-lhe o orvalho da manhã serena,
Como a mim o bater de um coração...

O céu foi meu rival! E o sol brilhante
Que nos dias felizes me raiou,
Também se converteu em sol nocivo,
Que a seiva desta vida ressecou.

Também as mansas auras que brincavam
Com meus soltos cabelos pelo ar,
Tornaram-se tufões ardentes, rijos,
E ousaram meus amores desfolhar!

Porém diz-me, flor, que te secaste
Ao sol estivo, (2) que te fez morrer,
Não há para o perfume e para a vida
Uma terra em que devem reviver?
Comentários
1) Pét’las. Pétalas. O autor suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação.
2) Estivo. De estio, de verão. Estival.

A Vítima do Poder

(Fato)

Um pão, Senhor, um pão vos eu suplico,
Oh, se não, desta vida alivia-me.
Mil inferno, não valem, não importam
Os tormentos cruéis que a alma me pugem!
Desde muito, Senhor, meus longos males
Hei servido comigo – a sós – em pranto;
Mas a fome voraz me abrasa toda,
E a vossos pés prostrada um pão esmolo!
Meu marido morreu, da sanha vítima
De tiranos mandões – assassinado!
Culpado nunca foi, - honesto e probo,
Tendo o voto prestado em prol da pátria,
Foi convicto (1) de crime! Oh tirania!
Meu filho, que a seu pai sobrevivera,
Que curava de mim pobre, abatida,
Foi gemer na chibata desvalido,
Deixando desolada a mãe viúva!
E que crime, Senhor, meu filho tinha?
Que vícios, que maldades no seu peito
Podiam asilar-se em tal idade?
Ah! seus crimes, seus vícios eram estes:
O ser filho de um pai honesto e probo,
O cuidar de uma mãe misera e velha,
Que o esposo dia e noite pranteava,
Único apoio de um irmãzinha, o único
Que bis restava, além do pai celeste.
Potentados da terra, homens sinistros,
Que a sede saciais no sangue nosso,
Essa sede cerval, (2) - temei perversos,
Temei de Deus a vingadora espada,
Que mil galopes fulmina aos infratores
Dos seus santos preceitos de igualdade.
Senhor, se acaso sois também tirano,
Se é férreo vosso peito, ímpio, sangrento,
Vossa esmola desprezo, e só desejo
Que esta vida fatal tirai-m’a presto. (3)
Meu Deus! meu deus! perdão! vede – eu deliro!
Entre as vascas cruentas d’agonia,
Meu esposo me fala, e o desgraçado,
O meu querido filho das entranhas
Eu – lá vejo gemer sob a chibata,
Curvado, envolto em sangue e sem alento.

*
* *


Assim delirava a triste,
Do tempo exposta ao rigor;
Oh! que peito humano houvera
Infenso à tamanha dor?

Envolto seu corpo em trapos,
Como seu rosto em palor,
Rojava no chão a triste
Agonizante – em furor!

Depois soltou um gemido,
Tremeu e quêda (4)ficou:
Toquei-a! que horror! – gelada!
A desgraçada expirou!

Oh! quantos assim se acabam,
Como essa pobre acabou!
Seu filho sob a chibata
Quem sabe? – talvez findou.

E a orfanzinha, coitada!...
Que será dela também!
Oh! quanto a pobre criança
Na vida sofrido tem!

Não é sonho isto que ledes,
Nem poética ficção,
Pois eu vi convulsa a pobre,
Vi-a estendida no chão.

Depois toquei o seu corpo!
Coitada! Não tinha ação,
Da terra havia voado
Para a celeste mansão.

Comentários
1) Convicto. Qualificativo do réu cujo crime ficou provado.
2) Cerval. Relativo ao cervo.
3) Tirai-ma presto. O ma corresponde à combinação dos pronomes me e a: tirai a vida (ela: a) a mim (me). Presto: com presteza.
4) Queda. Feminino do adjetivo quedo (quê). Que não se move. Calmo. Sossegado.

Nos Anos de Maria

(em 21 de dezembro de 1856)

Já um sol Deus tinha feito
Quis Deus fazer outro sol
Com crepusc’lo (1)mais fagueiro
Com mais fagueiro arrebol.

Já uma aurora existia
Ornada d’oiro e rubim (2)
Porém Deus fez outra aurora
Mais formosa para mim.

Já nos céus milhões de estrelas
Cintilavam a fulgir;
Porém Deus fez outra estrela
Que tem mais doce luzir.

Já uma luz espargia
Sua luz d’almo (3) fulgor;
Porém Deus fez outra lua
Mais bela por seu langor.

Já mil flores recendiam,
O cravo, a rosa, o jasmim;
Porém Deus das flores todas
Criou outra flor pra mim.

E o sol novo, e a nova aurora,
E a nova estrela a luzir,
E a nova flor, que eu adoro,
E a nova lua a fulgir.

És tu, Maria formosa,
Mulher fagueira e gentil,
Que os mesmos astros supera
Que giram no céu d’anil.

E o sol dos amores
De meigos fulgores
Sepulta os ardores
No mar ou lá não?
Num bar bem estreito:
Sepulta-os de feito
No mar de meu peito
No meu coração.

E a aurora nitente,
Fagueira, ridente,
Com manto rubente
De roxo clarão,
Me cura as feridas
Na ausência sofridas,
No pranto embebidas
Do meu coração.

E a estrela donosa
Fadada, formosa,
Querida, mimosa,
De meigo clarão,
Também no meu peito
No mar bem estreito
Tremula de feito,
No meu coração.

E a lua saudosa,
Gentil, langorosa,
De luz duvidosa,
De frouxo clarão,
No mar bem estreito
Também de meu peito
Reflete de feito
No meu coração.

E a flor engraçada,
A flor perfumada,
De todos amada
No pátrio sertão,
Exalam odores,
Mimosos favores,
Por ser os amores
De meu coração.

O sol vem lá do oriente,
Sepultar-se no ocidente
Tingindo de fogo o mar,
Dando á borboleta amores
Nos refletidos fulgores,
No refletido brilhar.

Outra vez nasce brilhante
Outra vez morre inflamante,
Tingindo de purp’ra (4) o céu;
Às trevas sucede o dia,
Ao dia a noite sombria
Coberta de escuro véu.

E sempre o sol é fulgente
Quando vem lá do oriente
No occíduo (5) mar se ocultar,
Durante o curso aclarando
Montes, prados, e lançando
Sobre tudo o seu brilhar.

Porém este sol descrito
Mesmo belo está proscrito
D’outro sol pelo fulgor;
D’outro sol que dentro d’alma
Derrama cousa que acalma
Gemidos de um trovador.

É um sol que é um céu formando
Nele vê-se cintilando
Mil planetas, é a flor
Mais galante e meiga e pura,
Tem a celeste figura
Dos anjinhos do Senhor.

Este sol mais refulgente,
Que eu adoro ardentemente,
Este sol do meu amor,
Hoje viu a luz primeira,
Luz vital, grata, fagueira,
Luz de meigo resplendor.


Comentários
1) Crepúsc’lo. O poeta suprimiu uma sílaba por exigência de metrificação.
2) Rubim. Há comentário noutra parte do livro.
3) Almo. Noutro local há comentário sobre esta palavra.
4) Púrp’ra. Púrpura. Veja nota 1.
5) Occíduo. O mesmo que ocidental.

Sabes Amar?

Talvez amar não saibas! Não, não sabes,
Se vives satisfeito, se ela o vive;
Se, quando te sorri, teu peito folga;
Se uma palavra terna que te envia,
Te arrebata ao pináculo da glória,
E faz-te ouvir o sussurrar das brisas,
E o murmúrio da fonte que serpeia,
E o canto ingênuo das sonoras aves,
E a deliciosa música dos anjos:
Se assim é teu amor, amar não sabes!

Mas, se teu peito torturado geme,
Quando o sorriso nos seus lábios pousa,
Se tua alma se alegra a sós contigo,
Quando os seus olhos umedece o pranto;
Se, a meiga voz te cala n’alma
Seus ternos, suavíssimos acentos,
Descrer do que ela diz, do que ela jura,
E logo te arrependes e te humilhas,
E incrédulo, depois, o amor praguejas:
Se assim é o teu amor – amar tu sabes.

Mais de uma vez em minha triste vida
Amor tenho ensaiado... hoje em meu peito
À virgem do sertão derramo olores.
Porém ela sorri, quando em me rio,
É ditosa, é feliz, se eu sou ditoso.
No passado houve alguém que escarnecia
Do meu pranto e sofrer, mas que chorava,
Se nos meus olhos, se nas minhas frases
Descobria sinais de aprazimento: (1)
Essa... amava-me, sim, mas era um monstro!

Amor não gera em mim delícias brandas
Nem razoável acho-o em seus efeitos:
Faz-me o peito ferver em duras fráguas,
E faz-me apetecer martírios dela!
Sim, vê-la sempre rindo, encantadora,
Botão que desabrocha ao romper d’alva,
A falar-me de amor como os eflúvios
Da noite que branqueja em noite estiva,
Oh! fora para mim tormento e morte!
Não quero o seu amor assim, - não quero.

Vê-me o rosto a esp’rança (2) fulgorosa?
Vê-me nos lábios o sorrir dos crentes?
Vê-me nos olhos a paixão que brilha?
Pois mostre-me no rosto o desalento,
Mostre-me os lábios trêmulos sem vida,
Mostre-me os olhos lânguidos de pena.
Mas, se comigo sente as dores minhas,
Eu vejo nela a serpe (3) que se finge;
Se ao ver-me alegre, prazenteira folga,
Eu julgo seu prazer filho do engano!

Amar é mui difícil, pois só ama
Quem sente amor contrário como eu sinto.

Comentários
1) Aprazimento. Prazer. Contentamento.
2) Esp’rança. Esperança. Supressão de uma sílaba por necessidade de metrificação.
3) Serpe. O mesmo que serpente.


Êxtase

Minh’alma, às vezes, de visões bem cheia
Deixando a terra se remonta aos céus!
Presa nas asas de eternal idéia,
Descansa à sombra do espaldar de Deus!
Momento doce que embriaga a mente
Em doce arroubo que lhe faz sentir!
Batendo as asas para o Céu ridente,
Eia, minh’alma, vai ao Céu fruir!

Quanto é sublime do Supremo (1)a obra
Que misteriosa se revela além!
Segredo! – aos juizes do Senhor se dobra
Tudo! – quem pode-os (2) penetrar? Ninguém!
Somente o bardo nas canções singelas
Do Eterno (3) o templo poderá abrir!
Bate, minh’alma, tuas asas belas,
Eia, minh’alma, vai ao Céu fruir!

Deixa as terrenas ilusões do mundo,
Sobe, minh’alma, canta Hosana a Deus,
Beija-lhe o sólio (4) com prazer profundo,
Em coro – unidas com os anjinhos seus.
Olvida as pompas que no mundo passam
Qual da loureira (5) o desleal sorrir;
Esquece enganos, que o porvir te embaçam:
Eia, minh’alma, vai ao Céu fruir!

E quando houveres em prazer banhado
Teus seios – fartos – dos perfumes lá,
Volta, minh’alma, do meu corpo ao lado
Saudosa pousa, suspirando cá.
Espera a hora do tremendo juízo, (6)
Que há de no campo Josafá (7) surgir:
E então que glória – dir-te-ei num riso:
Eia, minh’alma, vai ao Céu fruir!

Comentários
1) Supremo. Deus.
2) Quem pode-os. Na tempo em que José Coriolano escreveu ainda não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje: quem os pode.
3) Eterno. Deus.
4) Sólio. O mesmo que trono.
5) Loureira. Loureira emprega-se como mulher de vida desregrada, também como mulher provocante e sedutora.
6) Juízo. Referência ao juízo final, julgamento que Deus fará de todos os homens, no fim do mundo: “Serão todas as gentes congregadas em torno de Jesus Cristo, que separará uns dos outros como o pastor separa os cabritos das ovelhas, e assim porá as ovelhas à direita, e os cabritos (os pecadores) à esquerda”. (Padre J. Lourenço – Dicionário da Doutrina Católica”. 133).
7) Josafá. Parece que o poeta não se refere ao célebre rei Josafá, de Judá. A referência parece feita ao vale de Josafá, identificado com o vale de Cedron, onde os católicos romanos e os maometanos dizem ser o lugar do juízo final. Simples conjetura.


Os Dez Mandamentos



Eu te amo, ó bela! em ti, por ti, me inflamo...
Meu peito já não sente um outro efeito
Que não do teu amor! Se durmo e chamo...
O lábio pronuncia
Teu nome que radia
N’est’alma, meu amor



Não juro à outra... não: oh! eu perjuro!...
Eu? – nunca! Antes morrer numa espelunca (1)
Como o tigre acoimado, fero (2) e duro.
Jurar à outra bela,
Trair-te, a ti, (3) por ela?...
Isso não, meu amor!



Desejas? queres?... Bem! Pra que tu vejas
Que eu quero obedecer a quem venero,
Viverei encerrado, se o almejas
Nos domingos e dias
De festas, d’alegrias,
Viverei, meu amor!



Respeito aos caros pais. Negar-te o preito
Que pede a amada e o amador concede
Para os obedecer? (4) – não quer meu peito.
Tudo farei, mas nisso,
Não, não, doce feitiço, (5)
Isso não, meu amor!



A vida que ao mortal é tão querida
Tira-la eu? Não: que horror que isto me cala!
Mas em tua defesa – eu homicida (6)
Serei, eu assassino,
Tigre, monstro ferino,
Mas por ti, meu amor!



Quem visse teus encantos, quem sentisse
O doce mimo que te envolve, e fosse
Capaz de te ofender, e não nutrisse
Um coração de fera,
De tigre ou de pantera, (7)
Isso não, meu amor!



Poeta, esse não furta: qual atleta,
Desejo tem de herói: porém um beijo
Eu morro para furtar-t’o: assim a meta
Do heroísmo tocara;
Somente assim furtara,
Só assim, meu amor!



E falso testemunho, em cujo encalço
Descrido, eu apanhado, eu desmentido,
Não, nunca levantei! Porém refalso (9)
Um fato, uma verdade
Por um f’licidade (10)
Gozar-te, meu amor!



Comigo, tu, querida! Oh! eu contigo,
Logrando o mago (11) céu, que ando sonhando
No grêmio do consórcio, sacro abrigo
Das pudibundas (12) almas,
Sonhar lascivas palmas...
Isso não, meu amor!

10º

Cobiça de que é d’outrem, que enfeitiça
Um peito pouco nobre, à inveja afeito,
Em mim seu torpe facho não atiça.
Porém cobiço, bela,
Os mimos que revela
Teu coração de amor

Os dez (13) se encerram em dous.

Eu amo a Deus (14) e a ti me inflamo...
A Ele por ser Deus, tu, porque d’Elle
És o mais precioso e gentil ramo.
Depois da Divindade,
A ti, minha beldade,
A ti o meu amor.

Comentários
Observação: são dez os mandamentos da Lei de Deus: 1) adorar a Deus e amá-lo sobre todas as cousas; 2)não invocar o santo nome de Deus em vão; 3) santificar os domingos e festas de guarda; 4)honrar pai e mãe; 5) não matar; 6) gastar castidade nas palavras e nas obras; 7) não furtar; 8)não levantar falsos testemunhos; 9) guardar castidade nos pensamentos e nos desejos; 10) não cobiçar as cousas alheias.
1) Espelunca. Lugar imundo. Origem grega, pelo latim.
2) Fero. Noutro local há observação sobre fero.
3) Trair-te, a ti – Caso de pleonasmo. Na frase há dois objetos: te e a ti.
4) Para os obedecer. Embora antigamente se usasse o verbo obedecer com objeto direto (os), hoje se fixou o objeto indireto (lhes), como no caso.
5) Feitiço. Noutro local há observação sobre feitiço.
6) Homicida. Em homicida há a raiz latina de homine (homem), seguida da vogal de ligação dos elementos latinos, que é i, finalmente cida, derivado da raiz do verbo latino caedo, caedis, caedere, cecidi, caesum, com a significação de ferir, matar. Deveria ser hominicida, mas suprimiu-se uma das duas sílabas próximas nasais, fato a que se dá o nome da haplologia (simplificação). Noutro local, veja o que escrevi a respeito de bondadoso.
7) Pantera. Animal carnívoro muito violento.
8) Descrido. Particípio de descrer.
9) Refalso. O poeta empregou o verbo refalsar, que os dicionários não agasalham, sim o verbo refalsear, enganar, atraiçoar.
10) F’licidade. Felicidade. Supressão de uma sílaba por necessidade de metrificação.
11) Mago. Emprego no sentido de delioso, encantador.
12) Pudibundas. Que tem muito pudor.
13) Os dez. referência aos mandamentos, antes citados.
14) Amo a deus. Caso de objeto direto com preposição. Assim pode aparecer o objeto direto quando representado por nome próprio, e noutros casos.


A Virgem e a Roseira

Linda virgem pensativa
Vagava só num jardim,
Seu rosto estava tristonho
Amor a tornara assim.

Seus olhos não tinham vida,
Nem suas faces rubor,
Que uma rival despiedada (1)
Lhe roubara o seu amor.

Viu numa bela roseira
Um semi-aberto (2) botão,
Querendo a virgem colhê-lo,
Estendeu-lhe a nívea mão.

Diz-lhe a roseira; “Donzela,
Acaso algum mal te fiz?”
A mão recolhendo a virgem:
- Não roseira, assim lhe diz.

- Não supus que mal fazia
- Em tirar-te este botão;
- Pra suprir a falta deste,
- Outros muitos brotarão.

Tornou-lhe a verde roseira:
“Tu virgem, não pensas bem!
Se um amante te hão roubado,
Procura, pois, outro bem.

Mas, se àquele só votavas
Tua extremosa paixão,
Eu dentre todos prefiro
Também só este botão.”

Linda virgem pensativa,
Que vagava num jardim,
Voltou cismando mais triste!
Amor a tornara assim.

Comentários
1) Despiedada. Que não tem piedade. Cruel.
2) Semi-aberto. Semi é o elemento latino com a significação de a) quase; b) metade, meio; c) um tanto.






O Triste Arcano! (1)

Lamento a sorte que me faz poeta,
Não que eu engenhe divinais canções;
Poeta n’alma cuja dor secreta
Do peito faz-me rebentar vulcões!...
Tenho um segredo que na fria lousa
Comigo à terra deverá baixar;
No peito guardo-o, pois ali repousa
O triste arcano que me faz penar.

Embalde tenho consumido os anos
Em falsas cismas... em penar sem fim;
Não saiba o mundo, de fatais enganos,
Aquele arcano... que só cumpre a mim!
A campa gélida comigo desça.
São desventuras que convém calar;
Basta que eu saiba-o (2) e que Deus conheça
O triste arcano, que me faz penar.

Dize-lo aos homens... não no (3) quer o peito;
Que importa aos homens o segredo meu?
Soubera-o o anjo... se não fosse afeito
Àquelas juras... como o penso eu.
Porém os anjos não perjuram... minto!
É triste a cisma que me faz chorar!
Do peito viva no fiel recinto
O triste arcano, que me fez penar.

Feliz julgai-me! Não no sou, por certo!
Anri meu peito, vê-lo-eis de dor
Contudo, enfermo, qual baixei incerto,
Lançado às rochas por um mar de horro.
Segredo infausto que, talvez na campa,
Meus curtos dias me fará murchar!
E a lousa (4) apenas saberão que estampa
O triste arcano, que me faz penar.

Rireis! – qu’importa – não permita o fado
A sorte, um anjo, ou a mulher, ou Deus
Que o peito vosso, qual o meu, penado
Concentre males como os males meus.
Males que pode desfazer somente
Um riso d’anjo... de mulher falaz... (5)
Mas não que a fala, que o sorrir desmente
O triste arcano, que me faz penar.

Corram meus dias lacrimosos, mestos, (6)
Julgem-me os homens, por demais feliz;
Fruindo julguem-me prazeres festos, (7)
E ocultem versos o que o rosto diz!
Comigo – aos sorvos – beberei meus males
Até meus dias, meu viver findar;
Nem leve a brisa pelos amplos vales
O triste arcano, que me faz penar.

Embalde tenho consumido os anos
Em falsas cismas... em penar sem fim;
Não saiba o mundo, de fatais enganos,
Aquele arcano... que só cumpre a mim!
À campa gélida comigo desça:
Basta que eu saiba e que Deus conheça
O triste arcano, que me faz penar.




Comentários
1) Arcano. Segredo profundo. É o latim arcanu, secreto, oculto.
2) Que eu saiba-o. Na tempo em que José Coriolano escreveu ainda não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos.
3) No. Nos clássicos, principalmente, o pronome átono, acusativo de 3ª pessoa, o, a, os, as assume, por assimilação, a forma no, na, nos, nas, depois de vozes nasais.
- Viam-no chegar.
- Não na deixariam prear impunemente (Rui).
- Que não sabe a arte, não na estima (Camões).
No português de hoje, depois de bem, não e quem, vai desaparecendo o modelo clássico: não o desejo, por exemplo.
4) Lousa. Emprego já comentado noutra parte deste livro, com a mesma significação.
5) Falaz. Que engana intencionalmente.
6) Mestos. Tristes.
7) Festos. O mesmo que festivos. Pronúncia aberta (fés)
.

A Vida Humana é Sofrer


É breve o viver d’aurora,
Mas essa vida d’um’hora
Brilha, fulgura e colora
Tudo ao seu alvorecer;
Pura nasce e morre pura,
Não sabe se há desventura,
Mas a humana criatura
Nasce e sofre até morrer!

Vive o sol somente um dia
Foco de luz, de poesia,
Muitos climas alumia
De seus raios co’o fulgor;
Dá vida às plantas nascentes,
Aquece os bosques virentes,
Torna as águas transparentes,
Todo (ou tudo) é brilho e resplendor!

Tem a flor bem curta vida,
Porém na estação florida
Vive entre galas (1) – querida
Impera no toucador. (2)
Tem uma cor de beleza:
Branca, - parece a simpleza;
Rósea, - parece a pureza,
Ofendida em seu pudor.

Entre as ramas que vicejam
As ternas aves se beijam,
E das brisas que bafejam
Sentem em torno o frescor;
Mas o homem vem ao mundo,
Sofre em breve um golpe fundo,
Depois outro mais profundo
E morre entre ais e entre dor.

Sim, o homem um só instante
Vivendo, sofre constante
Dissabores sempre avante,
Sempre avante até morrer!
Brilha a aurora e o nitente,
Recende a flor inocente,
Beijam-se as aves contente, (3)
E o homem sempre a sofrer!


Comentários
1) Galas. Pompa. Fausto. Abundância. Alegria.
2) Toucador. Espécie de cômoda encimada por um espelho e que serve a quem se touca ou penteia (Aurélio).
3) Beijam-se as aves contente. O poeta empregou contente no singular, com o valor de advérbio: beijam-se contentemente as aves.

O Que eu Quero


Em quanto a sorte me persegue avara,
E a dor dos males me deslustra o rosto,
Tenho um consolo: no futuro hei posto
Minha esperança mais donosa e cara.

Mas, se das turbas através eu passo
E não lhes ouço murmurar meu nome,
Penso que a sorte, que a cruel consome
Tantos castelos (1) que velando faço!

Então os olhos, a cismar, dilato,
E encaro a esfera que me está suspensa...
E num arroubo de uma idéia imensa
À porta augusta dos vindouros bato!

Talvez – orgulho – que a avareza cega,
Talvez – um erro – que me embala a mente;
Mas, quem não olha pra o futuro crente?
Quem destes sonhos – tão gentis – renega?

Cubra-me o corpo muito embora aterra,
E em meu jazigo, (2) em cuja paz repousa,
Nenhum letreiro me decore a lousa, (3)
Nem caia um pranto, que a saudade encerra.

Não quero pranto, nem letreiro ou flores,
Quero somente que meu nome e glória
No tempo augusto da imortal memória
Radie ao evos (4) co’imortais fulgores.

Comentários
1) Castelos que velando faço. Castelos no ar. Imaginar coisas excelentes mas irrealizáveis.
2) Jazigo. Sepultura, túmulo
3) Lousa. Pedra funerária que se coloca sobre a sepultura.
4) Evo. Século. Perpetuidade.



Primeiras Águas

Foge, pavoroso espectro (1)
Maça magra e poeirenta,
Deixa vir o guapo jovem
Que a tudo, meigo, aviventa.

Em teu ossudo regaço (2)
De medonha catadura,
Só chilra o grilo, a cigarra,
Só há poeira e secura

Porém nos frescos domínios
Do jovem que assoma rindo
As árvores vêm florescendo
E os prados também florindo.

O velho tronco lascado, (3)
Que tinha a seiva perdido,
Sente as fibras se lhe incharem,
E brota reverdecido.

O jericó (4) suculento,
Que na seca se encolhera,
Caindo no chão a chuva,
Mais belo reverdecera!

A gentil cebola brava, (5)
Dos prados lindo ornamento,
Pelas várzeas e campinas
Brinca e se embala c’o vento.

Nos galhos reflorescentes
Os canoros passarinhos
Se lembram de seus amores,
Se fazem ternos carinhos.

E troveja pra o nascente,
E o tempo todo empardece,
E a terra inchada verdeja,
E o velho tronco enverdece.

Oh! quanta é minha ventura
Por gozar na minha terra
De amor os brandos influxos,
Que esta gentil quadra encerra!

O colono imaginando
No seu lar, no seu porvir,
Mostra no rosto a esperança
Nos lábios mostra o sorrir.

O fazendeiro contente
Dá largas ao coração;
Sente o peito dilatar-se
Nos campos do seu sertão,

E a semente cai na terra
Pelas mãos do lavrador;
Mil frutos dela se esperam
Entre risos, entre amor.

E o fazendeiro à porteira
Abóia (6) as vacas que vêm
Berrando pelos bezerros
Que o curral seguros tem.

Notai aquela vaquinha:
Que berro saudoso – momm!...
Pois ela chama o filhinho,
Que responde ao terno som!

Te os sapinhos nos charcos
Festejam ao modo seu
Esta quadra deleitosa
Que a natureza nos deu!

Oh! vida, quem não te inveja,
Nem sente gosto e prazer:
Senti-los, sem invejar-te,
Não sei como possa ser!

E a chuva cai em torrente,
E a terra toda alagou;
Corem riachos e grutas,
Mais de um açude sangrou.

Meu Deus! Prestai-me saúde
Neste meu sertão gentil,
Onde o inverno é tão belo,
Onde o céu tem tanto anil!


Comentários
1) Espectro. Sentido figurado. Espantalho.
2) Regaço. Sentido figurado: lugar onde se repousa.
3) Lascado. Rachado, quebrado.
4) Jericó. Planta da caatinga. Pode secar completamente sem morrer.
5) Cebola-brava. Planta da família Narcisáceas.
6) Abóia. Do verbo aboiar, derivado de boi. Aboiar é cantar à frente do gado; toada pouca variada e triste; serve para guiar e pacificar as reses, e sobre estas exerce muita influência, quando saudosa e em viagem”. (Juvenal Galeno). Aboio é canto sem palavra, marcado exclusivamente em vogais, entoado pelos vaqueiros quando conduzem o gado. (Cascudo). Os vaqueiros abóiam para orientação dos companheiros. Para atrair o gado. Para guiar a boiada. Também se diz aboiado, como Euclides da Cunha: “... ecoam melancolicamente notas do aboiado...”

A Um Passamento

Triste rola, por que gemes?
Tua dor quem motivou,
Que te carpes nestas horas,
Quando o sol já se ocultou?

Lastimoso e triste sino
Quem te ensinou a dobrar
Deste modo tão penoso
Que o peito faz-me (1) ansiar?

Brisa serena da tarde,
Por que passas a gemer
Pelas folhas da mangueira?
Por que vens-me (2) entristecer?

Sol formoso, que douravas
O céu com teu arrebol,
Por que perdeste essa cores,
Que eu tanto te amava, sol?

Lua pálida, mimosa,
Astro belo, inspirador,
Por que mais lânguido brilho
Ressumbra do teu fulgor?

Rosa bela, purpurina,
Por que te murchaste assim?
Lírio, por que te secaste?
Por que morreste, jasmim?

Meu coração, por que sofres?
Por que bates, coração?
Que desgraças me anuncias
Nesta tua agitação?

Ah! já sei: tudo me indica
Triste nova, que se deu;
Tudo lamenta uma esposa,
Que bela e jovem morreu!

Mas, ah! – lembrei-me que a esposa,
Se para o mundo morreu,
Para o céu mais venturosa
Entre glórias reviveu.

Comentários
1) Que o peito faz-me. Na época em que José Coriolano escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje: que o peito me faz.
2) Por que vens-me? Veja nota 1

Beijos Mudos

Não quero dar-t’os na face,
Na lisa fronte não quero,
Nem quero um beijo que estale
Nos lábios com todo o esmero:
Eu quero um lânguido beijo,
Mudo abrasado de pejo.

Não quero que ninguém saiba
Que eu te beijei, meu encanto;
Eu gosto dos beijos mudos,
São beijos que sabem (1) tanto!
Depois – as brisas loureiras
São por demais chocalheiras.

Basta que os lábios se rocem
Mudos, bem mudos de pejo;
É testemunha indiscreta
A brisa de um som de um beijo,
Pode contar no arvoredo
O que se fez em segredo.

E as flores podem ter zelos (2)
Invejar nossa ventura
Podem ferver tantos beijos
Nas flores pela espessura!
E podem brisas e flores
Divulgar nossos amores.

Por isso delícias minhas,
Toma um terno e mudo beijo!
Não é mais doce e macio?
Não tem mais fogo e mais pejo?
Um beijo assim sabe tanto!
Toma inda outro, meu encanto!

Comentários
1) Sabem. Verbo saber. Empregado no sentido de ter sabor.
2) Zelos. No plural corresponde a ciúmes.

O Rei

Reis da terra o que sois? Oh quase um nada
(G. Dias)

Sentado no trono soberbo, brilhante
De pedras luzentes e de ouro e cetim, (1)
O rei se espreguiça, notando o cambiente (2)
Das sedas custosas e do ouro e rubim

Da mente lhe fogem tristeza humanas,
Que humanas tristezas não sentem os reis;
Circumdam-lhe o sólio volúpias insanas,
E em torpes prazeres imerso vê-lo-eis. (3)

Real diadema, cingindo-lhe a fronte,
Mortal não supõe-se, (4) mas julga-se um Deus,
Nos vastos domínios – quem há que o afronte,
Não são-lhe (5) os vassalos quais vis pigmeus? (6)

Baixelas (7) riquíssimas, taças doiradas,
Manjares opíparos – tudo primor,
O gosto lhe excitam, e as horas passadas
No vinho, na gula que lhe trazem torpor.

Do marmor, (8) do jaspe (9) deslumbram-lhe as cores,
E as vestes refulgem com mago esplendor;
Dos vasos pendentes exalam-se as flores
De em torno a seu trono perfumes e odor.

Mil quadros lascivos vigiam-lhe o leito,
Forrados de sedas, de moles coxins; (10)
Mil quadros que acendem-lhe (11) a flama no peito,
Que em beijos apagam-lhe (12) maus serafins.

E os paços (13) se atulham de infames vassalos,
De damas corruptas, de vis cortesãos,
Que todos procuram os reis para honrá-los,
Curvar-lhes os joelhos, beijar-lhes as mãos.

São todos sedentos de fama e de glória,
Sem feitos briosos, sem nobres ações!
A vida estudai-lhes: vereis sua história,
Manchada de crimes, de negras paixões.

Vereis suas frontes ao peso curvadas
De louros sangrentos de vítimas mil!
Zombando – profanos! – das cousas sagradas
Com riso de mofa, com ar senhoril!

Vereis ondular-lhes na mente orgulhosa
Enxames, sem conta, de idéias cruéis;
Vereis sua pena mover-se impiedosa,
Selando mil mortes, - cruentos lauréis!

Tiranos do mundo, num lago de horrores
A purp’ra (14) profana, nem podem lavar!
E a purp’ra manchada, que escorre em cruores, (15)
Não sabe outra cousa, que o vício acatar!

Abutres famintos, flagelo dos povos
São todos os testas-coroados, - os reis;
Voltejam-lhe o leito febris, sempre novos,
Prazeres impuros, - tais sempre os vereis!

História de monstros – dos reis é a história:
Um bom dentre centos, - os mais são maus reis;
Deveres conculcam, dos homens escória,
São massas inertes, são massas sem leis.

São massas (16)inertes, que um rei sem virtude
É rei só na forma, no peito não é:
Senhores se dizem, e em tal atitude
Nos gozos que passam somente têm fé.

Poeta livre não me curvo ao ouro
Dos reis perversos, que tiranos são:
O falso brilho do seu vil tesouro
Ofusca a escravos, mas a livres não.

Somente a escravos, pois o povo é nobre
Por natureza, mais gentil brazão
Que esses ganhados do suor do pobre
Como os dos reis pela mor (17) parte o são.

Os reis detesto, porque neles vejo
Impresso o selo de um viver de horror;
Direis que o fausto que o circunda invejo,
Dizei-o embora, que hei de vós só dor.

Dizei-o embora! Mas sabei que o peito
Do poeta é livre, como livre sou;
Não crê nos ídolos da grandeza, e preito
Só rende ao justo que ação justa obrou.

No livro magno que contém a história
Dos reis mundanos, o que aí vereis?
Sinistros feitos e fatal memória
Legada aos evos por ignóbeis reis.

Esse Alexandre, (18) que às nações deixara
Um nome cel’bre, (19) que jamais ganhou,
Ébrio – execrável! O seu braço alçara
Ferindo aquele que o até (20) salvou!

A mesma pátria que no livre seio
Produziu Brutus (21)e gerou Catão, (22)
Gemeu nos ferros, no infernal enleio
De reis protervos – como todos são.

Sim, lêde os feitos de um cruel Tibério, (23)
E os de um Calígula (24) inda mais cruel;
Vêde, fazendo lupanar do império
De Cláudio a esposa, (25) sensual, infiel!...

E Nero... (26) o monstro ainda mais que a fera
Cruento e mau, de coração cerval,
Páginas negras de sangrenta era
Juntou à história mais cruel, fatal!

E esse guerreiro que apregoa a fama,
Que para sempre no Waterloo (27) caiu;
Em cujo peito laborava a flama
Incendiaria – qual jamais luziu!...

Fui um tirano que usurpou impérios,
E que da esposa vil repúdio fez! (28)
Como os Calígulas e cruéis Tibérios
Foi Bonaparte (29)tão cruel, talvez.

De quantos Neros se recheia o mundo!
Não posso, oh nunca! – querer bem aos reis;
Num mar de gozos, nesse pego (30) imundo
Os reis polutos sempre aí vereis.

Dos reis inveja... não se ajusta ao peito
Do poeta livre, como livre sou;
Não creio em ídolos de grandeza, e preito
Só rendo ao justo que ação justa obrou

Comentários
1) Cetim. Tecido lustroso e macio. Origem árabe.
2) Cambiante. Gradação de cores. Cor indistinta. Alguns estudiosos lhe atribuem indiferentemente o masculino e o feminino. Escritores de grande notoriedade empregaram cambiante no masculino: “A fé e a superstição misturam os seus reflexos num cambiante confuso” (Manuel Bandeira).
3) Vê-lo-eis. Ao futuro do presente não se junta, depois dele, o pronome átono. Ou o pronome vem antes do verbo – não o vereis, ou no meio do verbo: vê-lo-eis.
4) Não supõe-se. Na época em que José Coriolano escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje: não se supõe.
5) Se são-lhe. Veja nota 4.
6) Pigmeus. De muito pequena estatura.
7) Baixelas. Utensílios empregados no serviço da mesa.
8) Mármor. Termo poético. O mesmo que mármore.
9) Jaspe. Tipo de quartzo que apresenta grande variedade de cores.
10) Coxim. Almofada, ou travesseiro, para descanso.
11) Que acendem-lhe. Veja nota 4.
12) Que em beijos apagam-lhe. Veja nota 4.
13) Paço. Forma evolvida do latim palatiu. Este latim deu duas formas portuguesas: palácio e paço.
14) Púr’pra. Púrpura. José Coriolano suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação. Púrpura é substância vermelho-escura. Também vestuário dos reis, como na poesia.
15) Cruores. Sangue que corre, sangue que sai dos vasos. Matéria corante que entra na composição do sangue. Parte coagulante do sangue (Nascentes).
16) Massas. Emprego no sentido de corpos.
17) Mor. Forma contraída de maior.
18) Alexandre. Veja noutro local herói de Alexandria, que é o mesmo Alexandre, ou Alexandre III o Grande (356 – 323 a.C.). Rei da Macedônia. Destruiu Tebas. Venceu Dario. Conquistou Tiro, Gaza e o Egito. Fundou Alexandria. Apoderou-se da Babilônia. Um dos maiores guerreiros da história da humanidade.
19) Cel’bre. Célebre. Supressão de sílaba por necessidade de metrificação.
20) Que o até salvou. Próclise é a colocação do pronome átono antes do verbo. No caso houve reforço da próclise.
21) Brutus. Político e escritor romano (85 – 42 a.C.). Protegido de César, mas participou da conspiração contra este, que, vendo-o brandir um punhal, gritou: Tu quoque, Brute, fili mi! (Tu também, Brutu, meu filho!).
22) Catão. Marcus Porcius Cato, dito Catão o Antigo (234 – 149 a.C.). tribuno. Político austero e honesto. Lutou contra o luxo das mulheres. No senado exigiu o aniquilamento da cidade de Cartago.
23) Tibério. (Tiberius Julius Caesar). 42 a.C – 37 d.C. Imperador romano. Tomado de desconfiança e misantropia, retirou-se para a ilha de Capri, deixando parte de suas responsabilidades a Sejano, que tramou a queda do imperador. Tibério mandou matar Sejano e vários membros do senado e da família imperial.
24) Calígula. (Caius Caesar Augustus Germanicus) – dito Calígula (12 d.C – 41). Imperador romano. Foi educado entre os soldados, responsáveis por seu cognome de cáliga, calçado militar. Sucessor de Tibério. Enlouqueceu no poder. Extravagante e cruel. Quis que seu cavalo Incitatus fosse nomeado cônsul. Lamentava que o povo romano não tivesse apenas uma só cabeça para que pudesse degolá-la de um só golpe. Assassinado.
25) Do império de Cláudio a esposa. Cláudio I (Tiberius Claudius Caesar Augustus Germanicus – 10 a.C., 54 d.C.). Imperador romano. Epiléptico. Drenou o lago Fucino. Sofreu a influência de suas esposas Messalina, depois Agripina. Esta o envenenou. José Coriolano faz referência especialmente a Messalina (Valeria Messalina), que se entregou à devassidão e foi executada por ordem do imperador.
26) Nero (Lucius Domitius Nero Claudius). Nasceu em 37 d.C. Faleceu em 68. Sucessor de Cláudio. Mandou matar o irmão Britânico e a própria mãe. Cruel. Imperador romano, realizou governo despótico e libertino, que contou com a cumplicidade da segunda esposa Popéia, acusou os cristãos do incêndio de Roma, e pelos cristãos foi acusado de incendiá-la. Perseguiu o cristianismo. Abandonou o poder depois de declarado inimigo público pelo senado. Fez-se matar por um liberto.
27) Waterloo. Escreveu José Fonseca Fernandes: “Waterloo é uma povoação a quinze quilômetros do centro de Bruxelas (Bélgica). Deu nome à batalha em que Napoleão Bonaparte foi vencido pelos exércitos reunidos dos ingleses de Wellington e prussianos de Bulow e Blücher, última e derradeira batalha em que se empenhou o maior general-de-campo da idade contemporânea. Uma batalha que Napoleão perdeu na última hora por ter faltado tirocínio militar a um de seus marechais, Grouchy, o indeciso auxiliar que não soube incorporar-se ao grosso das tropas em combate, permitindo às reservas prussianas comandadas por Blücher que decidissem a sorte da contenda” (“Europa de Sempre” – 176).
28) E que da esposa, vil repúdio fez. Referência ao fato de se ter Napoleão Bonaparte divorciado de sua mulher Joséphine Tascher de La Pagerie para casar-se com Maria Luísa, da Áustria.
29) Bonaparte. Napoleão I, imperador dos franceses de 1804 a 1815. General. Cobriu-se de glória como guerreiro em quase todo o mundo do seu tempo. Venceu a Itália. Ocupou Alexandria no Egito. Restabeleceu a ordem na França. Restaurou a paz religiosa. Participou da redação do código civil, um dos maiores monumentos jurídicos de todos os tempos. Anexou a ilha de Elba à França. Nomeado Presidente da República italiana. Reorganizou a Alemanha. Reformou a universidade e realizou grandes obras de urbanismo. Quando anexou a Holanda, atingiu o máximo de poder. Foi desastrosa a guerra que fez à Rússia. Abdicou do trono. Exilado em Elba, mas voltou ao poder. Perdeu finalmente a batalha de Waterloo. Abdicou segunda vez. Feito prisioneiro pelos ingleses na ilha de Santa Helena, aí faleceu seis anos depois.
30) Pego. O mesmo que pélago, mar profundo. O poeta empregou a palavra em sentido figurado.

A Rosa Defendendo-se

Numa roseira formosa,
Vicejante, bela, airosa,
Despontava linda rosa,
Entre espinhos e entre odor;
Quis colhe-la à madrugada,
Mas a roseira agastada
Me fere a mão desdenhada,
Que logo foge co’a dor.

Qual o guerreiro valente
Que, ferido mortalmente,
Descansa e co’o combatente
Vai nova luta travar;
Assim eu esperançoso,
Ousado, cavalheiroso,
Tendo o botão odoroso
Da roseira conquistar.

Porém a roseira altiva
A fresca chaga me aviva
Aos meus desejos esquiva
Co’o mesmo espinho d’então;
Fujo ainda mais pressuroso,
Já me tornando medroso,
Já sentindo estrepitoso
Me bater o coração.

Então todo amedrontado
Pelo poder denodado
Do lindo botão amado
Que a roseira em si contém,
Já no meu fado reflito,
Em minha sorte medito,
E quase vencido grito:
- Sou fraco como ninguém!

Contudo, outra tentaiva
Inda faço, mas me esquiva
A roseira, é dor mais viva
Fez-me então exp’rimentar; (1)
E logo as armas deponho,
Envergonhado e tristonho,
No verde tronco risonho
Sem que mais queira tentar!

Se a roseira, vegetante
Apenas, zela constante
Seu lindo botão fragrante
Que só tem beleza e odor;
Como a donzela a beleza,
Que lhe deu a natureza,
E a su’alma de pureza
Não há de zelar co’ardor? (2)

Sê, pois, qual tal a roseira,
Ó donzela prasenteira,
Se de tu’alma fagueira
Quisesse um mimo roubar;
Sê assim, anjo donoso,
Que Deus, sempre bondadoso, (3)
Neste mundo tormentoso
Não quis para alívio dar

Comentários
1) Exp’rimentar. Experimentar. Necessidade de metrificação.
2) Co’ardor. Com ardor. Necessidade de metrificação.
3) Bondadoso. Forma rigorosamente correta ao lado de bondoso. Esta resultou de haplologia: supressão de uma sílaba quando no vocábulo há outra próxima do mesmo valor: da, do (dentais). O mesmo se passa com caridadoso (caridoso).


Feliz Tempo

Momentos felizes, momentos ditosos
Em que desfrutei
Tua meiga presença, teu rosto de graças,
Em que me arroubei;
Mas eles se foram, passaram veloces (1)
E eu triste fiquei.

Contudo, Maria, meu peito consulto,
Responde: não sei!
Lhe noto incerteza, por isso em meus braços
Te unir poderei!
Venturas me agoura? (2) Contigo momentos
Felizes terei!

Agora somente me restam gemidos,
Pois nada alcancei;
Meus lábios quiseram se abrir e pedir-te,
Porém me calei!
Meu fado maldigo; mas como se eu mesmo
Meu dano causei?

Ao menos nutrindo tão grata esperança...
Assim viverei;
Se a mão delicada me deres de esposa,
Feliz eu serei!
Se a mão me negares de esposa, ó querida,
Então morrerei!

Não achas, Maria, tão duro dizer-se:
“Jamais o amarei?”
não achas tão doce, tão grato afirmar-se:
“Sim, tua serei?”
Pois olha, Maria, sincero te digo:
- Eu sempre te amei.




Comentários
1) Veloces. Forma latina, muita usada antigamente. Hoje, veloz, velozes.
2) Agoura. Verbo agourar. Empregado no sentido de prever, predizer. Fazer agouro, agourar, hoje se emprega quase sempre em mau sentido.

À Morte

Do Visconde de Almeida Garret.


Não morre o gênio, sobrevive a fama,
Não morre o sábio, seu renome voa
Em meio às eras que o repetem sempre,
Retumba altíloquo.

Se abate as asas na gelada lousa, (1)
Pairando frio, se bordeja à campa,
Não morre o vate, nos anais fastosos (2)
Seu nome exalça-se.

Que importa a morte, pois se a vida extingue
Do sábio, fica-lhe renome eterno?
Se da memória resplandece o templo,
Que importa o túmulo?

Mais de três séculos sobre o luso (3) vate
Que importa pesem, se Camões (4) perpassa
Nos moles carmes, (5) nas endechas (6) tristes,
No canto altíssono?

Cantor mavioso! não findou tua vida.
Pairou no topo dos umbrais da morte;
Ei-la se expande, esvoaçando em torno
Do orbe terráqueo. (7)

Sim, nos teus versos de imortal beleza
Sorriem-te os evos através dos tempos!
Repousa a fama sobre o mundo como
No céu o espírito.

Cantor mavioso, do cantor do Gama, (8)
Rival nas letras e na glória infinda,
Teu nome ecoa lá nos peitos lusos
Qual nos brasílicos.

E o bardo rude do alaúde tosco
Tristes saudades te dirige triste;
Se vive a fama, se o esp’rito (9)goza,
O vate falta-lhe.

Soam teus versos como mestos soam
Repercutidos, virginais suspiros;
Decresce a arte, se lamenta o mundo
Pelo teu trânsito.

Porém que importa? – Sobrevive a fama,
Não morre o sábio, seu renome voa
Em meio às eras que o repetem sempre,
Retumba altíloquo!




Comentários
Observação: Almeida Garret pertenceu à celebre trindade de romantismo português. Os dois outros: Castilho e Alexandre Herculano. Foi poeta, dramaturgo, romancista.
1) Lousa. Noutro local há comentário sobre lousa neste sentido.
2) Fastosos. De fasto. Grande, notável, pomposo.
3) Luso. O mesmo que português.
4) Camões. Maior gênio literário de Portugal. Grande lírico. Épico notável. Autor de “Os Lusíadas”, epopéia que, em 1972, completou quatrocentos anos de publicada. Chamou-se Luiz Vaz de Camões.
5) Carmes. Poema. Versos líricos.
6) Endechas. Poesia triste. Canção melancólica.
7) Terráqueo. Que tem terras e águas.
8) Cantor mavioso do cantor do gama. Cantor do Gamam foi Camões. Vasco da Gama, o descobridor do caminho marítimo da índias, é o herói da epopéia nacional portuguesa “Os Lusíadas”. Quando José Coriolano diz cantor mavioso do cantor do Gama, está a referir-se a Garret, pois Garret escreveu o poema “Camões”.
9) Espr’ito. Espírito. O poeta suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação.

O Infante

Gosto de ver um infante (1)
Alegre andar pelo prado
A correr;
Gosto de ver-lhe o semblante
De pureza sombreado
Florescer.

Gosto de vê-lo correndo
Em busca da borboleta
A fugir;
Gosto de ouvir-lhe dizendo
Uma gracinha indiscreta
A sorrir.

Gosto de vê-lo sisudo
Quando a mãe o repreende
Porque errou;
Gosto de vê-lo assim mudo
Quando a lágrima que pende
Borbulhou.

Gosto de vê-lo chorando
Porque alguém de coitadinho
O chamou, (2)
Quando na relva brincando
Com seu pequeno irmãozinho
Se zangou.

Vede-o correndo – tão lindo!
Mas um queda, coitado
Lá deu!
Dizei-lhe: “É nada.” Sorrindo,
Não mostrará acalmado
Que sofreu!

Vede-o no colo materno
Cândidos beijos colhendo
Como vai!
Vede-o também como terno
Mil graças está fazendo
Para o pai!

Ó infante! Ó belo anjinho!
Quem dera no mundo fosses
Sempre assim...
Tens encetado o caminho...
Teus dias inda são doces!
Mal de mim!

Mal de mim – que hei já chegado
À quadra fatal da vida,
A do amor;
Já fui, qual tu, fortunado;
Hoje tenho a alma ferida
Pela dor!...

Ah! que dos anos da infância
Nem eu mais a memória posso
Conservar!
Nem mais dessa bela estância (3)
Da vida – a mimosa história
Sei contar!

Não sei – que a vida do adulto
É um mistério constante,
Um sofrer;
Num leito de dor sepulto,
Não tem alívio um instante,
Te (4) morrer!

Eis porque gosto do infante
Alegre, andando no prado
A correr;
Gosto de ver-lhe o semblante
De pureza sombreado
Florescer.

Comentários
1) Infante. Emprego no sentido de criança no período da infância.
2) De coitadinho o chamou. No sentido de dar nome, apelidar, o verbo chamar não admite, hoje, o pronome o, mas o pronome lhe.
3) Estância. Emprego no sentido de quadra, período.
4) Te. Por até. Assinala Silveira Bueno que os textos arcaicos apresentam variadas formas da atual preposição e, algumas vezes, advérbio até: ata, ataa, ta, ta, tee, até, te (“A Formação Histórica da Língua Portuguesa” – 181). No texto te por necessidade de metrificação.

Coragem
(pelo cólera) (1)


Não descrede da sorte: o mal nem sempre
Vos há de lacerar a doce vida:
Portai-vos corajosos; não descrede (2)
Da bondade do Céu na dura lida.

O céu é previdente: pelas dores
Com que o morbo (3) vos há ceifado a vida,
Nesse eterno jardim, de olor eterno,
Vos destina uma sorte mais subida.

Não descredo do Céu: co’as mãos erguidas
Louvai a mão divina que suspende
No curso o mesmo sol; que, majestoso,
Manda ao mar dividir-se, e ele se fende!

Não descrede do Céu: correi ao leito
Onde jaz sem recurso o triste, o pobre,
Prestai-lhe esses sufrágios que dimanam
De um peito caridoso e grande e nobre.

Um dia morreremos; pois corramos
Sem descanso a exercer a caridade;
Não pode uma ação boa ser banida,
Nem esquece-la a divinal bondade.

Nos momentos da vida nenhum gozo
Se pode comparar ao gozo santo
Que frui o caridoso junto ao leito
Que o mísero verte amargo pranto.

Não vede (4) em poucos dias tantos nomes
Gravados sobre o templo da memória?
Não vede em poucos dias laureados
Tantos bravos e heróis? – que maior glória?

E enquanto tremular a grimpa alçada
Aos brios desta terra belicosa,
Um nome ler-se-á no seu fastígio:
O nome da pessoa caridosa.

Avante, meus irmãos! Se a Deus se pode
Rival atribuir na vida e fama,
Será rival de Deus o caridoso
Que vela o moribundo ao pé da cama.

Comentários
1) Cólera. Veja estudo noutro local.
2) Não descrede. O imperativo negativo se faz com o subjuntivo presente: não descreais.
3) Morbo. Veja o estudo a respeito de cólera.
4) Não vede. O imperativo negativo é feito com o subjuntivo presente: não vejais. Admite-se não vede porque na época em que José Coriolano escreveu muitas questões da língua ainda não estavam disciplinadas.


O Velho Caçador de Onça

I

“Avante meus camaradas,
Vamos às matas bater;
Coragem! Fogo na onça
Quando a onça arremeter,
Que o meu facão amolado
Lh’hei de na guela meter;
Que eu não sei que cousa é medo,
Não sei, nem quero saber.

Aquele cão, que ali vedes, (2)
Trinta mil réis (3) me custou!
Faltará chuva em janeiro,
Mas nunca me ele (4) faltou!
Se a onça ronca raivosa,
Se um ah cão! Me ele escutou,
É polv’ra (5) – o bicho na cava
Meu tubarão (6) acuou!

Ouvi-me este canto agora;
Sabeis que eu não minto, não:
Eu caçava no peeiro (7)
O meu cavalo alazão: (8)
Vi uma onça comendo-o,
Estumei-lhe (9) o tubarão.
Ele filou-lhe na curva,
E eu puxei pelo facão.

A fera, escumando raiva,
Urrando, a mim se botou!
Da mão arrancou-me o ferro (10)
Co’a tapa que me soltou!
Mas eu o braço lhe enterro
Guela dentro que a afogou!
E a fera co’os finos dentes
O braço me mastigou!

Fiquei – assim – aleijado,
Mas inda movo o facão;
Não temo onças, nem almas,
Nem os vivos, temo, não
Esperai!... vejo trilhada
De rastro (11) a vereda... Ah cão!
Palavras não eram ditas,
Já corria o tubarão.

II

Sobre a encosta do serro (12) empinado
Uma onça pintada acuou;
Eram brasas seus olhos medonhos,
Muitos cães já o monstro matou!
Um restava – estafado – sangrento –
Que avançava aos estumos d’iscou! (13)

Para um canto jaziam cançados
Muitos bravos com pedras na mão!
Um somente co’a fera lutava,
Açulando (14) o fiel tubarão!
Cada grito d’iscou! Retumbava
Qual retumba no espaço o trovão!

Era só, mas seu rosto brilhava
Como brilha o semblante do herói!
Muitas vezes à boca da furna
Investia valente – qual sói (15)
Ser o bravo guerreiro ferido
Que a ferida não mostra que dói!

E lidava e lidava – afilando
O brioso, fiel tubarão;
E uma pedra vibrando, raivoso,
Fez a fera rolar pelo chão
Tremeu ela... gemeu... dando um urro
Que troou como troa o trovão!
E o guerreiro das matas repete
Novo golpe que o onça matou;
E, co’o peito incendido (16) de glória,
Seus amigos, por fim animou
Com a rude canção que dos lábios
Entre vivas e aplausos cantou.

III

Sou filho destas catingas,
Donde vós também os sois;
Nunca temi o novilho,
Como a onça temer pois?
Co’o ferrão (17) topo-os na testa,
Inda vindo dois a dois!
Não me abate o frio inverno,
Nem de agosto os quentes sóis. (18)

Nunca tive dor de dente,
Nunca tive indigestão,
Nunca doeu-me (19) a cabeça
Nunca sofri retenção, (20)
Nunca andei pelas cidades,
Nunca passei do sertão,
Nunca rojei, suplicando,
Pelos pés do cortesão.(21)

Com setenta anos de idade
Inda não sei me torcer;
Ando de pé quase sempre,
Sofro o frio sem tremer;
Lamento os moços de agora
Que vivem tudo a temer;
Nunca chorei nos meus dias,
Nunca me ouviram gemer.

Sou solteiro, - não casei-me
Porque Deus não permitiu;
Amei uma linda moça
Como igual nunca se viu!
Mais leve que uma veada (22)
Que o caçador pressentiu,
Ela não era da terra,
Co’os os anjos ao céu subiu!

Confessou-me que no mundo
Eu só era o seu amor!
Que vez, tocando a rabeca, (23)
Vi-lhe (24) no rosto o palor, (25)
E uma lágrima comprida
Banhar-lhe o seio d dor!
Nem pai nem mãe tinha ela,
Tinha-os levado o Senhor.

Vivia do seu trabalho,
Honrada como ninguém!
Pelos quereres (26) da vida
Eu adorava-a que nem
Tenho palavras que possam
Pintar-vos todo o meu bem!
Mas ela foi-se e eu cá vivo,
Enquanto a hora não vem...

Desprezei o casamento,
Do mundo não quis saber;
Meus pobres pais em meus braços
Eu vi-os também morrer.
Poucos amigos me restam...
As onças vivo a bater.
- Sou cristão, assisto à missa,
confesso-me; eis meu viver.”

_______

Eis a rude canção que cantava
O Senhor do fiel tubarão,
Que zombava do mundo e das onças,
E dos males, das eras (27) de então.

Comentários
1) Onça. Nome vulgar nas espécies de animal carnívoro do gênero felino. De modo geral, a onça pintada ou verdadeira, de ocorrem as espécies suçuarana e tigre. À onça preta se dá o nome de onça-tigre, muito feroz.
2) Vedes. Verbo ver na 2ª pessoa do plural do indicativo presente.
3) Trinta mil réis. Mil réis era a antiga moeda brasileira. Em 1942 passou a cruzeiro, dividido em centavos. Reis é plural de real (moeda).
4) Nunca me ele faltou. Próclise é a colocação do pronome átono antes do verbo. Os clássicos costumavam colocar o átono antes do reto, quando ocorria na frase advérbio notadamente de negação. O fato se chamou e se chama reforço da próclise.
5) Polv’ra. Por pólvora. Supressão de uma sílaba por necessidade de metrificação.
6) Tubarão. O cão, o cachorro.
7) Peeiro. Lugar onde se peiam os animais.
8) Alazão. Cavalo cor de canela. É palavra árabe.
9) Estumei. Verbo estumar. Assanhar (os cães) por meio de gritos e assobios apropriados.
10) Ferro. O facão.
11) Rasto. Também pode dizer-se e escrever-se rastro.
12) Serro. Pronuncia fechada (ser). Espinhaço.
13) Estumos de iscou. Os dicionários não agasalham estumo. Tenho impressão que o poeta empregou estumo como grito, assobio (para assanhar os cães). Macedo Soares diz que estumar é verbo tirado da interjeição ist! ist! “com que se estumam os cães”. Assim estumo seria deverbal de estumar. O poeta empregou ainda iscou. Há o verbo iscar, o mesmo que açular (os cães). Mas iscou na expressão acima está como interjeição.
14) Açulando. Do verbo açular. Instigar (cães) por meio de gestos, gritos. Emprega-se também em sentido figurado: irritar, provocar.
15) Sói. Verbo soer. Defectivo. Significa costumar e só se conjuga nas seguintes formas: sói, soem (indicativo presente); soia, soías, soía, soíamos, soíeis, soíam (pretérito imperfeito do indicativo; soído (particípio).
16) Incendido. É o verbo incender, acender, inflamar.
17) Ferrão. Ponta aguda de ferro.
18) Sóis. Plural de sol.
19) Nunca doeu-me. No tempo em que José Coriolano escreveu ainda não se havia disciplinado a colocação dos pronomes átonos. Hoje se diria: nunca me doeu.
20) Retenção. Prisão de ventre. Dificuldade de evacuar.
21) Cortesão. Empregado no sentido de homem de corte, palaciano.
22) Veada. Fêmea do veado. Venatum. Adjetivo latino do verbo venari (caçar). Tal adjetivo indicava, a princípio, todo e qualquer animal obtido pela caça. Hoje veado designa o antigo cervo.
23) Rabeca. Espécie de violino, quatro cordas de tripa friccionadas com um arco de crina, untado no breu.
24) Vi-lhe. Correto emprego do lhe em função possessiva, correspondente a seu, dele.
25) Palor. Cor pálida.
26) Quereres. Emprego de querer como substantivo. Ato de querer: o querer, os quereres (vontade).
27) Eras. Plural de era: época.

Em Que Pensas?
(pelo cólera) (1)

A estas horas, quando em noite turbida
Elevam todos seu esp’rito (2) a Deus,
Temendo os males que ao mortal misérrimo
Envolver tentam nos horrores seus;
A estas horas, quando a chuva em cântaros
Alaga as ruas tão intensa assim,
Que mais assusta os timoratos ânimos,
Bela, em que pensas? Pensarás em mim?

Além rouqueja pelo espaço altíssono
A voz do Eterno no feroz trovão,
Que abala a terra ao fuzilar contínuo
Que à terra vibra do Senhor a mão.
Enquanto a guerra pelo espaço horrífico
Os elementos travam feia assim,
Dormes ou cuidas, linda virgem cândida?
Bela, em que pensas? Pensarás em mim?

Ah! tu respiras junto à mãe solícita,
Sem que um idéia de volteje má;
Nem talvez pensas que o cruel contágio
Possa ferir-me sem que eu volte lá!
E eu entre os males, entre as duras fráguas
Em ti só penso! Crê-lo-ás assim?
Mas tu tão longe, criatura Angélica...
Bela, em que pensas? Pensarás em mim?

Não queira a sorte, nem o Céu propício
Que eu morra inglório, sem gozar feliz
Os teus encantos que na vida fazem-me
Olvidar males, de que amor maldiz.
Goze eu a glória, seja embora efêmera,
De nos teus braços ser ditoso assim
Como cogito no sonhar poético...
Bela, em que pensas? Pensarás em mim?
Comentários
1) Cólera. Veja estudo noutro local.
2) Esp’rito. Espírito. O poeta suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação.

A Filha do Deserto

Eu sou a triste filha do deserto,
Que Deus na terra ingrata abençoou;
Se suspiros e lágrimas desperto,
Consolações e paz também eu dou.
Quando as pompas do mundo te enfastiam,
E os prazeres sensuais, que te inebriam,
Derramam-te o horror no coração,
Quem é que, entre sorrindo e lacrimosa,
Que mãe enternecida e piedosa,
A ter com Deus te guia pela mão?

Eu sou o amigo oásis (1) do deserto,
Que Deus ao viajante fabricou;
Se as saudades da pátria em ti desperto,
Em ti também à pátria um gênio dou
Onde o luso escreveu essa epopéia, (2)
Gigante filha dessa nobre idéia,
Que deu a Portugal fama e brasão? (3)
Onde é que o vate geme suspiroso
As desgraças de um mundo tormentoso,
Fértil em males, fértil em traição?

Eu sou a companheira do proscrito, (4)
Como fui do Alverenga e do Dirceu; (5)
Se gemidos arranco ao peito aflito,
Também extingo-os no regaço meu.
Acrisola-se em mim a penitência,
Faço em mim ver o ateu a Onipotência,
Dos olhos seus rasgando o denso véu;
Em mim todos encontram pronto meio
De chegar-se ao Eterno ao imenso seio,
De ganhar-se um asilo lá no céu.

Era em mim o Sinai, (6) em que contrito
Moisés (7) quarenta dias jejuou,
E o Horto, (8) em que o discípulo maldito (9)
Com um ósculo ao Mestre (10) atraiçoou;
E o Horebe, (11)junto ao qual a sarça ardia,
E o presépio, em que viu a luz do dia
E a Estrela mais gentil da redenção:
Eu sou, mortais, a filha do deserto,
Que o amor e a contrição em vós desperto:
Eu sou, mortais, eu sou a solidão!

Comentários
1) Oásis. Lugar aprazível, coberto de vegetação, no deserto. No singular e no plural tem a mesma forma.
2) Onde o luso escreveu essa epopéia. Referência ao poeta português Luís de Camões, autor do poema épico “Os Lusíadas”.
3) Brasão. Noutro local há comentário sobre brasão.
4) Proscrito. Desterrado.
5) Alvarenga e Dirceu. Referência a Alvarenga Peixoto, poeta brasileiro do século XVIII integrante da chamada Escola Mineira, lírico; Dirceu é pseudônimo, ou nome árcade, de Tomás Antônio Gonzaga, português de nascimento, que se radicou em Vila Rica (Ouro Preto). Autor do célebre livro de poesias “Marília de Dirceu”. Marília foi Maria Joaquina Dorotéia de Seixas Brandão, sua noiva. Ambos os poetas se envolveram no movimento político da Inconfidência Mineira.
6) Sinai. Nome de uma montanha, aonde chegaram os israelitas depois da saída do Egito. Do cimo deste monte foi proclamada a lei dos dez mandamentos e na sua base foi ratificado o pacto que formou a nacionalidade hebraica, que tinha Jeová por rei.
7) Moisés. Grande legislador hebreu. Instruído na literatura egípcia, pois era filho adotivo de uma princesa do Egito. Descobriu que Deus o chamara para ser libertador dos israelitas, seus irmãos. Retirou-se do Egito. Muito refletiu, na solidão do deserto. Depois do episódio da sarça, Moisés voltou ao Egito. Aí tomou o comando do povo hebreu. No Sinai foi admitido a íntimas relações com Deus. Obteve de Deus os estatutos, baseados nos dez mandamentos. Numa das ocasiões em que foi chamado por Deus ao monte, jejuou quarenta dias e quarenta noites. Como organizador de um povo, Moisés dotou Israel com instituições civis e religiosas de primeira ordem. Possuía dotes de estadista.
8) e 9) Horto e discípulo maldito. Referência ao Jardim das Oliveiras, onde Jesus foi preso por soldados, acompanhados de Judas Iscariotes. É o mesmo Jardim de Getsemâni.
10) Com um ósculo atraiçoou o Mestre. De acordo com um sinal previamente combinado, a fim de indicar aos soldados a pessoa de Jesus, Judas adiantou-se e saudou o mestre, beijando-o na face.
11) Horebe. Veja nota 6. é o monte Sinai.
12) A sarça ardia. Quando terminou a meditação de Moisés no deserto (veja nota 7), foi ele surpreendido com o incêndio de uma sarça que ardia sem se consumir. Aproximando-se para observar o fenômeno, o Senhor o chamou no meio da sarça para ir libertar o seu povo.

A Noiva

Ei-la tão bela e casta – pensativa...
Sobre a mão descasando a linda face!
Ei-la de leve abrindo os róseos lábios
E um ai soltando que em Jesus termina!

Ah! que uma lágrima dos meigos olhos
Ora lhe inunda o encantador semblante;
Mas um sorriso brinca-lhe nos lábios,
Dando a seu pranto salutar antídoto! (1)

Vede-a, não mais suspira, a breve boca
O sorriso descerra, pudibundo,
Tão cheio de inocência e de candura,
Tão pudibundo que de sê-lo cora!

Mas, dor! – de novo o pranto se sucede,
De novo o riso nos seus lábios pousa!
Virgem, virgem do amor, que alternativa
Tu’alma ingênua assim contrista e alegra?

Que sentes, virgem? Que mistério é este?
Por que tu choras, enrubesces, ri-te?
Como é que o pranto te sucede o riso?
Como é que ao riso te sucede o pranto?

Virgem, virgem de amor, eu te perscruto...
Os recônditos, puros pensamentos
Descortino-te, e sei porque suspiras
Tão grato suspirar envolto em gozos.

________

És noiva, em breve teus dias
Vão tomar diversa cor,
Não turvos, sempre serenos
Nos doces laços do amor.

Se pensas, virge, e suspiras,
Se acendes na face a cor,
Suspiras, virgem, de pura,
Pensas nos laços do amor.

Teu terno pranto coado
Da saudade no rigor,
O seio materno banha,
Banha as mãos do genitor.

Teu riso adoça a lembrança
Da posse desse penhor,
Que por ti somente anhela
Os doces laços de amor

Tu’alma é como a de um anjo
De um Serafim do Senhor;
É pura como a das virgens
Que habitam co’o Salvador.

Se pensas, virge, e suspiras,
Se acendes na face a cor
Suspiras, virgem, de pura,
Pensas nos laços de amor.

_______

Tu pensas! não sabes se acaso um futuro
Pra ti se reserva de angústias pejado;
Tu pensas! não sabes se o nó que meditas
Será feliz sempre, ditoso, sagrado.

Tu choras! teu pranto saudades revela,
Revela lembranças do tempo passado;
Tu choras! teu pranto nos joelhos goteja
Da mãe carinhosa, do pai desvelado.

Tu ri-te! teu riso te afaga a lembrança
De unires-te (2) àquele que te é tão prezado;
Tu ri-te! (3) teu riso demonstra a certeza
De seres, ó virgem, penhor muito amado.
Tu coras! o nácar (4) que às faces te sobe.
Que o rosto formoso te faz mais rosado,
Ó virgem, demonstra que és pura, que és bela,
Que um nó tu meditas difícil, sagrado.

E a virgem que pensa na sorte futura,
Que chora saudosa – do tempo passado,
Que ri-se (5) à lembrança de mútuo amor terno,
Que cora de um laço tão puro e sagrado:

Oh! não! essa virgem, tão puro, tão santa,
Às portas tremendas do templo sagrado,
Um beijo não cede, não vende perjura
Ao vil que a requesta, profano, malvado.




Comentários
1) Antídoto. É o emprego anti (contra) e doto (dado). Antídoto significa dado contra. Contraveneno. O poeta empregou a palavra em sentido figurado: remédio contra um mal moral.
2) Na época em que o poeta escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos.
3) Vide nota 2
4) Nácar. Cor de carmim. Cor-de-rosa.
5) Que ri-se. Veja as notas 2 e 3

Nênia

(À morte de meu colega Manuel Alexandrino da Silva Girão, falecido no dia 8 de maio de 1855, quando estudante do 1º ano da Faculdade de Direito do Recife.)

Frágil homem, mortal, que és tu no mundo,
No grande espaço do universo solto?
- Hoje vida e prazer; - hoje alegria:
- Amanhã cinza ou nada, em morte envolto.

Hoje vida e consolo; hoje esperança,
Reluta a mente co’o poder da sorte:
Mas não reluta, por lhe ser defeso, (1)
Co’o tremendo poder que vem da morte.

E ela tirana, com seu ferro ervado,
Prostra o mancebo no florir dos anos;
Desfaz a glória de seus sonhos magos,
Sem que vença o porvir de seus arcanos.

Ó morte, és bem cruel! Por que roubaste
O filho pelo qual a mãe suspira?
Por que roubaste o devotado amigo,
Cuja lembrança tanta dor inspira?

Mas ah! que a flor singela da campina
Muitas vezes abate o vento forte,
Como a vida singela do mancebo
Muitas vezes decepa a crua morte!

Tua vida exalou-se, como o incenso, (2)
Como esvai-se da flor o doce cheiro,
Fugiu de sobre a terra como foge
A cristalina fonte de um ribeiro.

Foi unir-se ao Senhor, grato consolo!
Que um prêmio lá no céu tem a virtude;
Foi unir-se ao Senhor, que o céu acolhe,
Quando morre contrita a juventude.

Mas a dor que min’alma dilacera
Quanto é pungente! Que cruel saudade!
Quanto é breve, meu Deus, quanto aflitiva
A vida humana nesta soledade!

Frágil homem, mortal, que és tu no mudo,
No grande espaço do universo solto?
- Hoje vida e prazer; - hoje alegria:
- Amanhã cinza ou nada, em morte envolto.




Comentários
1) e 2) Defeso e incenso. Palavras comentadas noutro local deste livro.
Observação: três espécies de cantos ou poemas havia na antiga Roma recitados nas exéquias de pessoas notáveis: a nênia era declamada ou cantada junto à fogueira, em que se incinerava o cadáver; o epitáfio era gravado sobre a urna; e o epicédio era pronunciado na cerimônia dos funerais, estando o corpo presente. O vocábulo epitáfio ainda tem a mesma significação. A nênia e o epicédio são hoje elegias fúnebres compostas para celebrar ou lamentar a perda de pessoa ilustre e querida (Veja – Olavo Bilac e Guimarães Passos – “Tratado de Versificação” – 135, 136)

Entrevista

Quero pedir-lhe uma coisa.
“Duas e três: diga, peça.”
Não se zangue: dê-me um beijo.
“Tudo farei, menos essa...”

Deixe disso: dê-me um beijo.
“Logo lhe dou, não se vexe.” (1)
É que você não me estima.
“Não diga tal, não se queixe.” (2)

Mas por que não dá-me (3) o beijo?
“Não lh’o dou por ser donzela.” (4)
Pois então dê-me um abraço.
“Bem tola, se caiu nela!”

Nada então você quer dar-me?
“Dou-lhe este róseo botão.”
Somente! nada mais dá-me? (5)
“Dou-lhe mais meu coração.”

Poderei dispor só dele?
“Esta é boa! Por que não?”
Então não tem outro dono?
“Por Deus lhe juro que não.”

Porém... quando dá-me (6) o beijo?
“Quando der-lhe (7)a minha mão.”
Mesmo à face dos altares?
“Deus me defenda! Aí não.”

Ah! já sei, você tem medo.
“Medo, não; vergonha, sim.”
Pois escute: é um segredo...
“Ai beijou-me! Só assim.”

Comentários
1) e 2) o poeta rimou vexe (ê) com queixe. Não é rima perfeita, mas muito usada.
3) Não dá-me. Na época em que José Coriolano poetou, não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje: não me dá.
4) Donzela. Emprego no sentido de virgem. Mulher virgem.
5) Nada mais dá-me. Veja nota 3
6) Quando dá-me. Veja nota 3.
7) Quando der-lhe. Veja nota 3.

Só Eu Não Morro

Morre a inocente criança,
Esperanças de seus pais;
Morre a donzela formosa,
Nem coram-lhe as faces mais!

Morre o poeta mimoso
Que em brandos versos cantou
Sua pátria, seus amores,
E tudo que o inspirou!

Dentre o catre (1) da velhice
Sempre querido o ancião,
Deixa o filho inconsolável,
Deixa mais de um coração!

A brisa que sobre a tarde
Vem co’as ramas cochichar,
Se perde no espaço imenso,
Nem pode mais murmurar!

Morre a flor que se embalança
Na linda haste que a sustem,
Tudo morre neste mundo:
Morre a virtude também!

Tudo morre, é bem verdade!...
Mas eu por que vivo sou?
Se as flores e as virgens morrem,
Por elas por que não vou?

Eu irei... é bom que finde
Este leal coração,
Que há tantos anos padece,
Sem achar consolação!

Flores donosas da terra,
Mimosas virgens de Deus,
Não morrei, (2) por vós eu parto,
Lembrai-vos de mim. Adeus!




Comentários
1) Catre. Cama pobre, miserável.
2) Não morrei. Trata-se de imperativo negativo. O imperativo negativo faz-se com o subjuntivo presente: não morrais.

Hino à Tarde


Mas eis a tarde de primores rica!
Em mimos co’a manhã rivalizando.
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Marques de Paranaguá

I

Tarde meiga e gentil, se tu não fosses
Mais triste que a manhã, mais melancólica,
Quantas vezes comigo meditando,
Precursora do sol te julgaria!
Mas, depois, atentando em teus langores,
Na dor, na compaixão que em ti transluzem,
Conheço o teu fadário neste mundo
Não es ditosa, - não – e só tens risos
Para o filho infeliz da desventura.
Tarde meiga e gentil, amo-te muito!
Que peito pode haver ingrato e rude
Aos influxos suaves que respiras,
Sem do passado refletir saudoso
Nos dias de prazer que já gozamos!
Ou em que em teu seio, ébrio de saudade,
Não gema e não suspire, e aos tristes olhos
Não mande um pesaroso pranto – amigo!
Oh! sim – eu chorarei, porque meu peito
Às vezes no chorar encontra alívio.
Tarde meiga e gentil, amo-te muito.

Se compassiva os corações tu prendes,
Como nos prende com seu pranto a órfã,
Se a mente em santo arroubo nos enlevas,
Como o riso da virgem pudibunda
Que o selo marca de um sofrer intenso,
Porque da frouxa, dissonante lira
Sentidos carmes te ofertar não devo?
Oh! sim – eu cantarei, porque meu peito
Às vezes no cantar encontra alívio.
Tarde meiga e gentil, amo-te muito!

II

Quanta é bela a manhã, surgindo alegre
Das partes do oriente, em que se arreia (1)
Que formosos listões (2) de fogo e púrpura,
Que sua cor dourada comunicam
Às campinas, à fonte, às cumeadas!
O levantino (3) mar é todo rosas
No seu leito de areia a espreguiçar-se
Oh! quanto a aurora despontando é bela!
Tarde, filha do céu, os teus encantos
Não lhe ficam somenos: (4) tu guarneces
Também as nuvens brancas de escalarte,
Quando além do poente o sol se esconde.
Um manto sobre o mar também estendes
De vermelhos listões também formado.
Vales, campinas, fonte e campanários
Com seu meigo arrebol também matizas.
Se a natureza ri-se (5) com seus raios,
Se bafejam as auras docemente,
Enchendo de fragrância os horizontes,
Também, tarde gentil, no teu regaço,
Ao sepultar-se o sol, as aves trinam,
Suspira a natureza, as auras sopram,
Embalsamando os ares de fragrância.
Em ti se encontra amor, ledice, encanto!
O proscrito, (6) nas lágrimas que entorna,
No teu suave seio alívio encontra;
Encontra alívio aos duros sofrimentos
O desgraçado que de amor padece.
Chora a tarde o extremoso amigo a ausência
Do amigo que no peito traz gravado.
Choram os pais pelos ausentes filhos,
E os filhos pelos pais ausentes choram.
O amante pela amada em dor se fina (7)
E a amada pelo amante em dor consome-se.
Todos carpem à tarde, e acham consolo,
Se da ausência os rigores crus suportam.
Extático (8) o poeta te contempla!
E que idéias tão ternas se associam
Por teu tristonho porte despertadas!
Te semelhas à virgem que suspira,
E como ela também és triste e bela.
Mas na tua tristeza o mel se bebe
Que tranqüiliza os corações que sofrem.
Num triste cogitar se encontra às vezes
Lenitivo, que os males dissipando,
Torna a mente de novo ao seu descanço.
Ó tarde, doce amiga, quanto te amo!
Que vezes me ofereceste desafogo
As saudades que assaz me acompanhavam!
Que vezes dos meus olhos roxeados
Já de muito chorar, mais novo pranto
Arrancaste, a minh’alma consolando,
Que em chorar também há consolo pronto!
E quando esses momentos soidosos (9)
Melancolia só me prodigavam,
Onde soltava os meus gemidos longos
Que “saudades e ausência” só diziam?
Soltava-os nessas sombras que ministras
De copado arvoredo sussurante
Ou no abrigo das penhas que resistem
Aos embates do vento duro e forte.
Ó tarde! – quanto és grata aos que padecem!
Quanto mais tu das trevas te aproximas,
Mais exultam d’alegres dous amantes.

III

Porém, céus! – que feliz coincidência
Mais a tarde enfeitiça no meu canto!
Eu escuto uma voz que me desperta
Na mente altiva pensamentos puros,
No peito nobre sentimentos caros.
Pobre virgem! quem sabe o que ela sofre!

IV

Que belo quadro – agora – além contemplo!
Perto de mim – sereno – se desliza
O meu velho Poty. (10) Como amoroso
Recebe na rugosa e limpa face
Macios beijos das trementes ramas,
Que as margens lhe embelecem de verdura!
Que sons tão meigos! – que trinados ternos!
São canoros cupidos (11) que saudosos
Despedem-se da tarde que se ausenta.
E lá voa também a parda rola (12)
Do movediço galho do mofumbo,
Que deixou de gemer neste momento;
E vai no interior, talvez, da selva
Em procura do esposo que ela adora.

V

Horas propícias, horas de repouso,
Em que o duro trabalho abandonando
O rude camponês, fruir vem mimos
Da linda esposa que na porta espera
E graças infantis, travessos brincos
De tenra prole, que sentada em torno
Da carinhosa mãe, lhe pede um conto,
Uma história de fadas, de Trancoso, (13)
Onde falem pombinhas e outras aves,
A piaba, (14) a sardinha, outros pescados,
E a quem um beijo, uma promessa ilude,
Convidando a dormir – tão crente e pura.
Ó horas de repouso, eu vos saúdo!

VI

Talvez, agora mesmo, além vogando,
Garbosa como um cisne, uma barquinha
Conduza sobre o mar sereno e quedo
Ditoso amante porque aos lares volta,
Depois de haver em doce amigo abraço
Afogado a saudade que o pungia
Ou pode ser que alguém... (talvez que um bardo) (15)
Infeliz chore a perda irreparável
Da prenda que o amava e que constante
Amor lhe merecia do imo (16) peito.
Talvez, que agora mesmo, sobre a laje,
Que dela cobre os restos preciosos,
Ensine, soluçando, às mansas brisas,
Tristes endechas, (17) suspirosas nênias! (18)

VII

Tarde, tarde de amor, que som penoso
Te quebra a placidez do almo remanso,
Prenhe d’inspirações que infudem n’alma
Um sentir que nos lembra a Eternidade?
É o toque do sino que anuncia
A hora angelical: (19) eia... rezemos;
Um momento, sequer, aos céus divinos
Nossa mente se eleve em santo arroubo!
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Só tu, ó tarde, encerra tais encantos!
Ó tarde mais gentil que a manhã bela!

VIII

Já por outro hemisfério o sol radia!
E mal no ocaso seu fulgor vislumbra.
A noite já desdobra sobre a terra
Sombrio véu que a torna erma e tranqüila.
Já tremulam no céu tíbios luzeiros,
Decorando de brilho a azul esfera, (20)
Já rutila saudosa e meiga lua,
Beijando o vale ameno e a flor do lago!

IX

E a deus, ó tarde meiga, um ai recebe
Deste que te cantou.
Sê formosa como é sempre a bonina (21)
Que em ti desabrochou.

Como a virgem que ardente o bardo adora,
Que em teu seio chorou;
Que gemeu, por não vê-lo em teu regaço,
Que tanto suspirou.
E adeus mais outra vez, ó tarde amiga,
Tarde do coração;
Dá-me sempre de amor saudoso pranto,
Dá-me consolação.

Em ti, somente em ti penso nos dias
Passados – que lá vão...
Contigo e só contigo os males choro
Do triste coração.

E adeus, terceira vez, tarde querida,
Meu inocente bem
Outros bardos inspira e prende meiga
Por onde vais – além.

Sem teus amores e perfumes castos
Que gosto a vida tem?
Adeus! – té amanhã: sentidos versos
Sempre inspirar-me vem.

Comentários
1) Arreia. Verbo arrear, ornamentar, enfeitar.
2) Listões. Palavra já comentada.
3) Levantino. Relativo ao Levante (o mesmo que leste).
4) Somenos. Adjetivo. De qualidade inferior.
5) Se a natureza ri-se. No tempo em que José Coriolano escreveu não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos. Hoje: se a natureza se ri ou se se ri a natureza.
6) Proscrito. Observação neste local deste livro.
7) Em dor se fina. Verbo finar-se, morrer.
8) Extático. Enlevado, maravilhado. Não confundir com estático (que está em repouso, parado).
9) Soidosos. Forma antiquada de saudoso.
10) Poti. Já observado noutro local.
11) Cupidos. Personificação do Amor. Amantes. Não confundir com cupido.
12) Rola. Já observada a palavra noutro local.
13) Trancoso. Aparece na expressão “História de Trancoso”. Afrânio Peixoto escreveu nas notas ao seu romance “Bugrinha”: “Outro livro que Portugal e o Brasil conheceram e vão esquecendo injustamente, “Contos de História e Proveito e Exemplo”, muito popular em tempo, entre as nossas populações rústicas. Além de livro de leitura e edificação, trazia, apensas, regras de urbanidade e polícia moral, com que educava nas boas maneiras. Várias vezes ouvi, na minha infância o ditado: - São histórias de Trancoso – como cousa difícil de ser acreditada, pela piedade e bom regimento, ironia do povo ao ingênuo autor que lhe encantou e sujeitou a infância, contando-lhe aventuras para proveito e exemplo, para os fazer pessoas prudentes e graves, o que é sempre aborrecido e molesto. Ao bom Gonçalo Fernandes Trancoso deu recente e merecida ressurreição o mais formoso volume da “Antologia Portuguesa”, que dirige o sábio Agostinho de Campos (Lisboa, 1921)”. (“Bugrinha) – pág. 350).
14) Piaba. Peixe de água doce. Peixe pequeno.
15) Bardo. Poeta.
16) Imo. O mais profundo.
17) Endechas. Palavra comentada noutro local.
18) Nênia. Palavra comentada noutro local.
19) Hora angelical. Angelical é o mesmo que angélico. Relativo aos anjos. Hora angelical é a hora do ângelus, oração em honra ao mistério da Encarnação. Toque do sino que indica aos fiéis o momento de recitar tal oração, no fim da tarde.
20) Azul esfera. O firmamento.
21) Bonina. Planta dos prados.


A Rola e o Gavião

Estava a rola em seu ninho,
Quando aponta um gavião, (1)
Que já tinha um borrachinho (2)
Roubado a seu coração.
“Que vem ver, ave inimiga?
Não basta o que sofri eu?
Talvez mui (3) breve se diga:
A triste rola morreu!”

- Rola – lhe diz o tirano,
Dá-me esse pobre pagão; (4)
Ficarás em paz este ano,
Todo o resto da estação – (5)
Diz-lhe a rola: “Ave inimiga,
Dize: que mal te fiz eu?
Talvez mui breve se diga:
A triste rola morreu!”

- Dá-me, inocente, mesquinha,
Dá-me teu filho, se não (6)
Eu juro comer asinha (7)
Filho e mãe sem distinção –
“Paciência, ave inimiga,
Foi este o destino meu!
Talvez mui breve se diga:
A triste rola morreu!”

E a cruel ave despreza
As queixas que ouvia em vão:
Filho e mãe faz sua presa,
Come-os com sofreguidão
E voando a ave inimiga,
Pra sempre o ninho esqueceu!
Porém há tanto quem diga:
A triste rola morreu!

Comentários
1) Gavião. Ave de rapina.
2) Borrachinho. Diminutivo de borracho. Diz-se de borracho do filhote do pombo. José Coriolano empregou a palavra como filhote da rola. Silveira Bueno leciona que borracha, latim burrago, burraginis, derivado de burra, pele, era vasilha para líquidos, garrafa. Mas na borracha também se colocava vinho e daí se chegou a noção de bêbedo que se vê em borracho: cheio de vinho. O filhote de pombo – borracho – se prende a burra, pele, “mas sobre outro aspecto, sob o aspecto da cor: a pele nova é vermelha e a lã avermelhada, não clara, também era chamada burra. O borracho então, filhote de pombo, tem tal nome já pela cor da pele e também porque, em geral está gordinho, cheinho”. (“Questões de Português” – 1ª série – 68, 69).
3) Mui. Já observado noutro local.
4) Pagão. Empregado no sentido em que não tem padrinho, desprotegido.
5) Estação. Cada uma das quatro partes do ano, diferentes pelas condições de temperatura (primavera, verão, outono e inverno).
6) Se não. Separados os dois elementos quando significa caso não, como no texto.
7) Asinha. Não se trata de diminutivo de asa, mas do advérbio depressa, sem demora, antiquado.

A Morena

Estende no cavalete (1)
O pintor a branca tela,
Já lhe transborda a paleta (2)
De alambre, (3) jambo (4) e canela. (5)
Não é a Vênus (6) dormindo,
Nem também do mar saindo,
Que o quadro vai animar:
É a morena mimosa,
De face tão setinosa,
De tão mavioso olhar!

Dá vida, pintor, à tela,
Empunha, poeta, a pena:
Ei-la! Que moça tão bela!
Que encantadora morena!
Não sombreiam suas faces
Rubim e corais (7) vivaces (8)
Sobre um tez de marfim;
Mas nas faces tem a musa (9)
O garbo de uma Andaluza, (10)
As graças de um Serafim.

Painel soberbo! – nas aras
Profanas de tempo adusto,
Belezas assim tão raras
Valem mais que heróico busto.
Marca o guerreiro o nome
No batalhar que o consome
Entre lagos de cruor;
A tua glória, morena,
É perfumosa e serena
E grata como a da flor.

Sobraçara Homero (11) a harpa (12)
Para tecer-te odisséias, (13)
Te invejara a breve charpa
Essa mãe do pio Enéas, (14)
Ossian (15) no seu alaúde
Te consagrara não rude
Um belo canto escocês; (16)
E até das azuis campinas
As plêiadas (17) peregrinas
Te cobiçaram a tez.

De alambre, jambo e canela
Extrata, (18) pintor, as tintas,
Extrata, e anime-se a tela
Com essas cores distintas.
Na tela o pincel, na história
Do bardo a pena, - que glória!
Vão-te a cor eternizar:
Tu es na terra, morena,
Fadada, como a Sirena (19)
Nos régios paços do mar.




Comentários
1) Cavalete. Armação de madeira, que lembra o cavalo.
2) Paleta. O mesmo que palheta. “Tabuinha delgada, geralmente oval, com abertura para o polegar da mão esquerda, utilizada pelos pintores para dispor e combinar as tintas” (Nascentes).
3) Alambre. É o âmbar. Resina fossilizada. Cor amarela.
4) Jambo. Fruto. De cor loura, esbranquiçada, ou tirante a cor da gema do ovo.
5) Canela. Árvore e especiaria. Cor alourada.
6) Vênus. Da mitologia. Deusa da beleza e do amor, nasceu da espuma do mar.
7) Corais. Concreção calcária e ramosa, geralmente vermelha.
8) Vivaces. O mesmo que vivazes. Vivace é forma antiquada.
9) Musa. Emprego no sentido de mulher inspiradora de um artista.
10) Andaluza. Mulher da Andaluzia, capital Sevilha, na Espanha. As mulheres andaluzas são atrativas, têm algo secreto nos olhos, nos gestos, na personalidade. Inspiraram grandes pintores.
11) Homero. Poeta épico grego cuja vida, desde o século VI a.C., tem sido assunto de lendas. Diziam-no cego. A ele são atribuídas as duas grandes epopéias “Ilíada” e “Odisséia”.
12) Harpa. Instrumento musical de cordas, forma triangular.
13) Odisséia. Título da epopéia de Homero. O poeta empregou odisséia como viagem cheia de aventuras extraordinárias.
14) Enéias. Príncipe troiano, filho de Vênus e de Anquises, herói do poema “Eneida”, de Virgílio. Combateu corajosamente os gregos durante a guerra de Tróia. Aportou ao Lácio, território dos latinos. Daí nasceram Roma e a Itália.
15) Ossian. Herói e poeta da Escócia (século III).
16) Escocês. Natural da escócia. A mais setentrional das três partes das Ilhas Britânicas, ao norte da Grã-Bretanha.
17) Plêiadas. Também plêiades. Designação geral das sete filhas de Atlas e de Plêiona. metamorfoseadas em estrelas.
18) Extrata. Verbo extratar, extrair.
19) Sirena. É o latim sirena, que, pelas transformações fonéticas normais, passou a sereia, ser mitológico, gênio feminino malfazejo, representado geralmente na forma de peixe, com cabeça e peito de mulher. Os primitivos navegadores acreditavam que a sereia, que diziam ter canto mavioso, atraía os marujos para o mar, onde morriam afogados.

A Canção do Serrano (1)

Deus Senhor compadecido
Nossas preces atendeu;
A seca que ameaçava.
Dentre nós despareceu. (2)
Graças a Deus, temos chuva!
Graças a Deus já choveu!

Eia, meus filhos, partamos,
Vamos à serra plantar,
Vamos as perdas passadas
Este ano recuperar:
Milho, arroz, feijão, farinha,
Teremos tudo a fartar.

Agora a seca arrebenta,
Coragem! Meus filhos, fé!
Teremos bastante chuva,
Boa safra de café.
Graças à Virgem Maria,
Louvores a San’José. (3)

Esta noite ouvi a porta
Muitas vezes estalar;
Esta noite a rã esteve
Constantemente a raspar... (4)
São sinais de bom inverno:
Vamos, rapazes, plantar.

Também reparei que à noite
Esteve a relampejar
Para as partes do nascente, (5)
Toda noite num cortar!
É sinal de bom inverno:
Vamos, rapazes, plantar.

Vamos, que a vida da serra.
Tem primores que mais não!
Nosso peito se dilata,
Bate alegre o coração
Quando chega o fresco inverno
E foge o quente verão.

É belo à tona da terra
Ver-se o legume brotar;
É belo vê-lo ir crescendo,
Crescendo até se fechar;
É belo em manhã serena
Na roça se passear.

E quando o milho começa
No roçado a pendoar, (6)
E depois de pendoado,
Principia a bonecrar, (7)
E as vberdes, lindas bonecas
Começam d’encabelar... (8)

Oh! que então nada no mundo
Eu jugo tão belo assim!
Pode ser lá para os outros,
Mas, não é cá para mim;
Nos gostos não há escolha:
Não há nada bom, nem ruim.

Disse, digo e direi sempre:
Nada me sabe agradar
Como a vista deleitosa
D eum roçado a verdejar!
E como as loiras espigas (9)
Ao lume assando a estalar!

Quando um atilho (10) de espigas
De milho trago na mão.
Ou no ombro atravessado,
Julgo-me mais que um barão! (11)
Não troco a vida da serra
Pelo viver cortesão.

Não invejo o pão das praças,
Pois temos a nossa aipim; (12)
Não há nada tão gostoso
Como o nosso gergelim, (13)
Como a nossa tapioca (14)
E o beiju (15)co’o mondobim. (16)

O queijo também o temos;
Que nos vem lá do sertão;
Nada nos falta, meus filhos,
Temos tudo em profusão,
Não troco a vida serrana
Pelo viver cortesão.

Socorro-nos Deus com chuva,
Que tudo vai bem assim:
Pra completar nossos gozos
Vem a moagem (17) por fim,
A rapadura, (18) a batida (19)
E o enroscado (20) alfinim. (21)

Não invejemos a vida
Que desfruta o cortesão:
Somos aqui poderosos,
Somos nobres que mais não:
Temos a enxada por cetro, (22)
O machado por brasão. (23)

Eia, meus filhos, partamos,
Vamos à serra plantar,
Vamos as perdas passadas
Este ano recuperar:
Pois que o timbre do serrano
Consiste no trabalhar.




Comentários
1) Serrano. Pessoa que habita as serras.
2) Despareceu. O mesmo que desapareceu.
3) São José. Esposo de Maria, mãe de Jesus. Ocupava-se no ofício de carpinteiro. Viva em Nazaré. Parece que morreu antes da crucificação de Jesus, pois não se houve falar dele em companhia das mulheres que estavam junto à cruz do Calvário. Também Jesus não teria recomendado sua Mãe aos cuidados do apóstolo João, se José ainda vivesse.
4) A rã esteve a raspar. Penso que raspar aqui está como sinônimo de arranhar, tocar mal, causar sensação desagradável ao ouvido.
5) Nascente. Ponto do horizonte donde parece surgir o sol.
6) Pendoar. O mesmo que apendoar, guarnecer de pendões. Botar pendão (o milho).
7) Bonecar. Derivado de boneca, espiga de milho em flor.
8) Encabelar. Criar cabelos. Referência aos cabelos da espiga de milho.
9) Espiga. É a parte do milho que termina o colmo e contém os grãos. Latim spica.
10) Atilho. Feixe de espigas de milho.
11) Barão. Título dignitário. Homem ilustre.
12) Aipim. Dos tipos de mandioca (raiz de Jatropha Manihot Euphorbiacea, da qual se faz a respectiva farinha). Dois tipos são comestíveis: a mandioca amarga (Manihot uitilissima), com que se fabricam a farinha de mandioca, beijus, polvilho etc, e o aipim ou aipi (mandioca doce, mandioca mansa ou macaxeira), que se usa cozido, assado ou frito, em bolos etc.
13) Gergelim. Já por variada forma se grafou este nome: gerzelim, zirgelim, gingilim, girgelim,jingeli, gegeri. Fixada a grafia gergelim. Planta da Índia. Bem secas as sementes, torradas, socam-se no pilão com farinha de mandioca, sal e açúcar, ou só farinha e sal, “e dão um prato de cheiro e gosto deliciosos”.
14) Tapioca. Alteração de tipioca. De tipiog (tipioca) em Batista Caetano. Trata-se da farinha de tapioca, que é a goma de mandioca umedecida e preparada, e que fica granulosa.
15) Beiju. Também beju, biju. Há muitos tipos de beijus. É o bolo de massa de mandioca ou da tapioca. Do tupi mbeiú, o enroscado, o enrolado.
16) Mudubim. Na classificação de Lineu, arachis hippojoea. As sementes são comidas cruas ou torradas. Acreditam-se que sejam afrodisíacas. Fornecem óleo para uso culinário e farmacêutico. Leio em Macedo Soares: “A sua celebridade consiste no seguinte: depois de fecundado o ovário, o pendúnculo da flor dobra-se procurando a terra, crescendo até penetrar no chão, onde o fruto desenvolve-se e amadurece”. José Coriolano grafou mudubim, mas a palavra tem variada grafia: mandubi, mendubi, mendobi, mendobim, manobi, mundubi e outras. Fixou-se amendoim, por intercorrência de amêndoa. A palavra provém do linguajar indígena: mandubi ou manduí.
17) Moagem. Ato de moer. O autor faz referência à época de moagem da cana-de-açúcar.
18) Rapadura. Açúcar de tipo inferior, produzido sob a forma de tijolos ou blocos de qualquer formato.
19) Batida. Tipo de rapadura, alvo, não em forma de tijolos.
20) Enroscado. O mesmo que enrolado. Dobrado em roscas.
21) Alfenim. No vocabulário de Mario Sette (“Arruar”) está alfenim com esta definição: “Substantivo masculino. Confeito alvíssimo, sólido mas delicado e quebradiço, muito agradável ao paladar, preparado com melado, que se deixa ao fogo até atingir um ponto especial, quando, então, se retira a massa do fogo, estendendo-se sobre um mármore ou qualquer outra superfície fria. Depois de parcialmente esfriada, puxa-se a massa com as mãos polvilhadas de goma, até alvejar e solidificar, podendo-se antes, dar-lhe as mais variadas formas”.
22) Cetro. Bastão de comando – uma das insígnias da realeza. Poder soberano, Coriolano empregou cetro em sentido figurado.
23) Brasão. Conjunto de insígnias que compõem o escudo de armas de um país, de uma cidade, de uma corporação, de uma família. Honra. Empregado em sentido figurado.

Mudanças

Mudou-s o sol que despontava rindo,
Desmereceu-lhe a luz, perdeu o brilho,
Embaçado por grossas, pardas nuvens,
Já não difunde raios!

A meiga aurora já não tem primores,
Matiz os campos, nem frescura os vales,
Murcharam as belezas d’outro tempo,
Que os olhos atraiam!

Não é mais estrelado o céu da noite,
Por crepes (1) nebulosos sempre envolto,
Não mostra mais em tela acetinada
Da lua o branco disco!

Sob o manto sombrio da tristeza,
Só quebrando a soidão (2) piar sinistro
D’aves mil (3) agoureiras, (4) são as noites,
Meu Deus, tão merencórias!

Já não cicia no arvoredo a brisa,
Nem além rumoreja o bosque espesso,
Já não serpeiam límpidos regatos
Nem sussurra a cascata!

Deixaram de trinar os passarinhos,
Secaram colos (5) e vergéis e prados,
Tudo, tudo mudou-se, a natureza
Vai regressar ao nada!

Já balouça o vento as verdes copas
As flores não disparsem mais perfumes!
Quem uma tal mudança produzira,
Eu bem saber quisera!

Mas, ah! nada mudou-se (6)– eu só me iludo!
Meus olhos, sim, mudaram-se de tristes:
Tudo existe no estado primitivo:
Eu somente mudei!

Ainda fulge o sol e do levante
Surgindo, ri donoso e luz do mundo,
É a aurora serena, e meiga ainda,
Os horizontes doura.

De estrelas coruscantes é juncado
Ainda o céu de anil, onde passeia
A branca lua, que um lençol de prata
Estende sobre a terra.

São as noites tranqüilas, não as cobrem
Tristes mantos que induzam tristes cismas: (7)
Sob a mangueira lá suspiram langues
Dois amantes felizes.

A brisa no arvoredo ainda cecia,
Ainda rumoreja o bosque espesso,
Serpeiam os regatos com doçura,
Ainda rui a cascata.

O vento ainda balança as verdes copas,
As flores ainda exalam seus perfumes,
Tudo existe no estado primitivo,
Eu somente mudei-me!

Ainda as aves docemente trinam,
Só meus olhos de triste se mudaram,
Vendados da incerteza nada enxergam,
Lânguidos sem vida!

Desgraçado de mim que tudo vendo,
Da paixão ofuscado nada vejo;
Se a brisa me bafeja murmurosa,
Rijo tufão concebo!

Ah! triste condição é do amante
Que, vendo, nada vê de quanto o cerca,
Embora tão patente como o lume
Que o sol derrama a pino!

E assim vivo, ó meu anjo, ó doce amada,
Deslumbrado co’a luz desses teus olhos,
Que rompendo a amplidão imensa e vasta,
Minha razão ofuscam!

Comentários
1) Crepes. Emprego em sentido figurado: cor negra.
2) Soidão. Solidão. Já observada noutro local a palavra.
3) De aves mil. Mil, quando proposto, indica grande quantidade.
4) Agoureiras. Agoureiro; que faz mau agouro. Agouro é predição supersticiosa.
5) Colos. Observação noutro local deste livro.
6) Nada mudou-se. No tempo em que José Coriolano escreveu ainda não estava disciplinada a colocação dos pronomes átonos.
7) Cismas. Receio supersticioso. Meditação. Neste sentido é feminina. Cisma no masculino significa desacordo, desunião. Rebelião pela qual as pessoas se separam da sua religião.

Eugênia Belém

E

Narciso Cordo

Na primavera dos anos
Era Eugênia tão formosa
Como a branca estrela d’alva,
Como a redolente rosa.

Seu casto peito era templo
Desses singelos amores,
Que o doce lar perfumando
Se matizam de mil cores.

A núbil, formosa virgem
Era a fadinha (1) do campo,
Colhia flores de dia,
E de noite o pirilampo. (2)

Nunca a paz lhe pertubaram
Aflições, nem dissabores,
Nem as faces setinosas
Envergonhados rubores.

Antes de pegar no sono
A menina encatadora
Inocentinha, arroubada
Se encomendava à Senhora. (3)

E descuidosa e indolente
Andava pela campinas
A perseguir borboletas,
A colher sempre boninas.

Mas eis que topa com ela
Apaixonado Narciso;
Vê-la, amá-la, desposá-la
Foi todo o seu paraíso.

Contava Eugênia três lustros, (4)
E quatro seu belo esposo;
Que vida cheia de encanto!
Que lindo par venturoso!

Dois meses eram passados
Depois da celebração
Das bodas (5) afortunadas,
De tão ditosa união.

Quando o déspota Solano (6)
Contra o Brasil move a guerra, (7)
E do par que jubilava
Toda a ventura desterra.

Não! que no peito do esposo
Pulsa um coração ardente,
Que geme da pátria amada
O mal, o p’rigo (8) iminente.

Ei-lo, la vai para a guerra
Viver vida amargurada;
Que despedida custosa!
Que dura ausência chorada!

Voluntário! Deus te escute
Nesses campos pantanosos,
Que voltes ao lar querido
Trazendo troféus honrosos.

________

Bem poucos meses são idos
Depois que partiu-se o bravo,
A granadeira (9) troveja
E já prostra tanto escravo!

Que soldado ali peleja
Nesse ardido atrevimento?
Co’o a baioneta calada (10)
Vale mais que um regimento!

Quem há de ali, senão ele,
Batalhar com ar de riso
E dando vivas à pátria,
Quem há de, se não Narciso!

Sibilam, zunem-se as balas,
Sem a fronte lhe ferirem,
Outras sente desdenhoso
Aos pés – humil (11)– caírem!

Porém que Narciso é este
Que assim às balas sorri?
- Um voluntário da pátria
Das margens lá do Poti.

Belicoso campesino,
Quem te instruiu nas batalhas?
Quem nos lábios debuxou-te
Este desprezo às metralhas?

Nunca um passo recuaste,
Nunca temeste o inimigo!
Quem pela pátria combate,
Não teme, arrosta o perigo.

É que por ti uma santa,
Tua esposa noite e dia,
Reza de joelhos chorosa
À Virgem Santa Maria.

Reza, reza, boa Eugênia,
Pela pátria e pelo esposo;
O céu nem sempre é nublado,
Nem sempre o mar tormentoso.

Espera, que a fé é base
Da consoladora esp’rança; (12)
Espera! À negra procela
Que vez sucede a bonança!

Que nação há aí possante
Que na sua juventude
Haja ceifado iguais louros
Com tanto garbo e virtude?

Minha pátria, o mundo culto
Para vós se volta atento,
Pasma! Admira a vitória
Dessa batalha incruenta.

Por terra e mar que triunfos!
Quanto é sublime e quão belo
Ver Pedro (13) em Uruguaiana, (14)
Barroso (15) em Riachuelo! (16)

Heróis já tão conhecidos
Nas matas de Tuiuti, (17)
Como Curuzu (18) tomaram,
Tomarão Curupaiti. (19)

A aurora lá se apavona,
O dia bem perto está
Em que render-se há por força,
Ou por vontade Humaitá. (20)

Há de ser nossa a vitória
De Francia (21) vergôntea ímpia!
Tão certa, oh sim, como a aurora
Ser precursora do dia!

__________

- É meia noite! ela dorme
Na rede sosinha ali...
Nem sonha ver-me disforme...
E eu dela tão perto - aqui!
Dorme talvez descançada,
De um doce sonho embalada,
Que lhe sorri traiçoeiro
Como a brisa suspirosa
Que sussurra perfumosa
Nas ramas do pequizeiro. (22)
Oh sina mesquinha, avara
Para a pátria e para mim!
Quando ela nunca pensara
De me ver voltar assim!
De não lhe dizer na volta:
“Eugênia, engrinalda a fronte,
Teu riso angélico solta,
Saúda o novo horizonte!
Caiu sob o gládio invicto
Da tríplice – ultriz aliança (23)
Esse tirano maldito,
Novo Rosas (24) na pujança.”
Mas quanto o mortal se ilude!
Tudo lhe sai ao contrário!
Real somente a virtude.
É toda mágua e fadário
Este pélago (25) profundo
De Circes (26) cheio – este mundo!
São fados – quem lhe resiste?
Fortuna... sorte... destino...
Nume impiedoso e ferino,
Para mim nunca sorriste!
Hoje alegre? – amanhã triste...
Depois feliz? – mais adiante
Liba-se o cálice feleo, (27)
E o lábio que não repele-o,
Traga-lhe o amargor num instante!
Mas porque gemo queixumes,
Quando já libo os perfumes
Deste lar que é todo meu?
Inválido! – Embora. E ela...
Tão meiga, tão pura e bela...
Quem sabe quanto sofreu! –
________
Guerreiro que te bateste
Nos campos do Jatai, (28)
Que as hostes bravo venceste
Nas matas do Tuiuti,
Que o braço esquerdo perdeste
No ataque a Curupaiti,
Esta demora é funesta
A ela e fatal a ti.

______

- Pan, pan, pan!
- Meu Deus, quem bate
Tão tarde, a tal hora aqui!
- Pan, pan, pan!
- Já meia noite
Gemeu o meu Jacamim! (29)
- Pan, pan, pan
- Acorda, Firma,
Vem te deitar junto a mim.
Ouviste bater lá fora?
Alguém perdeu-se n aestrada.
Ó lá de dentro, (30) pousada
Ao pobre infeliz perdido!

- Meu Deus, bater-se a tal hora,
Depressa, Firma, o vestido,
Oh! vamos, é dever nosso
Dar pousada ao peregrino,
Vamos, negar-lh’a (31)não posso,
Repare se dorme Nino.
Dorme, mana, (32) o coitadinho.
Ei-lo! Parece um anjinho!
E o peregrino?... – É verdade!
Lá fora... ao frio... tão tarde!

- Sim, vamos abrir-lhe a porta.

_______

A noite estava sombria
E derramava a luz morta
Da lua que se sumiu.
Abriu-se a porta.
- Senhora,
Não tema sair cá fora,
Bem sei que é fora de hora,
Que a lua além se ocultou;
Não tenha de mim receio;
Honra, dever e virtude
Me foram da vida esteio
Em toda vicissitude,
Meu ser se não transformou.
Nunca fiz mal neste mundo
A ninguém nunca farei;
Voto respeito profundo
Tanto à donzela mimosa,
Como à velhice rugosa;
Se fiz algum mal... não sei!
Se meu coração a fundo
Conhecesse, ah! – saberia
A fada destas campinas,
Destas virentes colinas,
Quanto dó (33) mereceria
Este pobre sem ventura,
Que oscila... gemente aqui!
Que deixou sem sepultura
Lá junto a Curupaiti,
Um braço á bala arrancado!
Senhora, o pobre aleijado
Vem de longe... dessa guerra,
Onde se vê rubra a terra
Do sangue dos nossos bravos
Derramados por escravos
Ao jugo desse Lopes,
Desse déspota e tirano,
Que recrudesce cad’ano,
Que tantos males nos fez,
E que está fazendo aos nossos
Com traições, torpedos, fossos; (34)
Na protérvia, (35) na bruteza
Tigre sangrento e faminto
Do sangue da pátria tinto;
Aborto da natureza!
Reflete no horrido sonho
A satânica (36) maldade
Que do coração ferrenho
Mostra toda a feridade.
Engenho perverso e vil
Tão fatal à humanidade,
E sobretudo ao Brasil!

- Entre senhor, nesta choça
Não se despede ninguém,
Pois é obrigação nossa
Acolher a todos bem.
Dê-me notícias da guerra,
Se é que da guerra vem.

- Venho, senhora, da terra
Que nos tem a paz roubado,
Porém estou fatigado;
Depois que o braço perdi,
Ando tão desajeitado,
Que sinto no andar enfado,
Cousa que nunca senti!

- Perdeu então o seu braço
N’algum encontro, senhor?

Oh sim! voou pelo espaço
No ataque a Curupaiti.
Não tenho dele saudade,
Pois pela pátria o perdi;
E até co’a horrível dor,
(Foi talvez do céu vontade)
Estranho prazer senti,
Prazer de novo dulçor!

________
- Agora que descançastes,
Dizei-me se lá na guerra
Vistes alguém desta terra,
Das margens cá do Poti?
- Conheci, senhora, um bravo,
Filho aqui desta ribeira,
vi-o sempre na fileira
combatendo o guarani. (37)
Era casado, e vi muito
No ardor do márcio (38) conflito
A esposa chamar aflito
E a cara pátria também.
- E o nome, senhor, do bravo
Da esposa o nome também?
- Se acaso bem me recordo...
O dele... Narciso Cordo,
O dela... Eugênia Belém.

______

Eis ali o par ditoso,
Jovem, lindo, afortunado,
Em doce abraço enlaçado,
Em mudo enlevo de amor!
Soluça agora de gozo
A lembrança dessas máguas,
Dessa ausência, dessas fráguas
De fogo tão queimador!
Deixa-los: findo o transporte
Voltarão depois à vida;
Que meiga fase sentida
Dos lábios lhes brotará!
Das saudades a coorte (39)
Dos suspiros na vanguarda
Desertaram desta quadra, -
Onde o amor só reinará.

_______

- Vês, Eugênia, este maneta (40)
Tão feio que causa dó,
Mas não se parece ainda
De Eugênio co’o Manquitó. (41)
Perdeu pela pátria o braço,
Feliz por perde-lo só,
Feliz por ti, por mim nunca,
Pois fora melhor morrer
Para salvar nossa pátria,
Do que vê-la ainda sofrer.

- Amigo, eu sinto que a bala
Te houvesse o braço levado;
Porém Deus, que é previdente,
Que cura o mal que pressente,
Nos há bem recompensado:
Por um braço que perdeste,
Dous braços, Narciso, achaste!
Vem cá, - vês este menino?
Repara – quanto é celeste!
- Tão belo!
- Se chama Nino.
Dous braços nele encontraste;
Se a bala um dos teus roubou-nos,
Com dous o céu compensou-nos!

- Te lembras? – quando partiste
Me deixaste de esperanças...
Entre dores e lembranças...
E o amargo pranto, tão triste!
O pobre Nino nasceu!
Dous anos breve (42) completa;
Narciso, é a tua imagem!
Sabido! A sua linguagem
Já parece desse atleta
Que à cara pátria volveu!

- Oh! quanto sou venturoso
Por tanta felicidade!
Do amor da cara metade (43)
Encontro o melhor penhor!
Cresce, meu anjo formoso,
Cresce meu futuro bravo;
Livrarás – quem sabe? – o escravo
Das mãos do cruel senhor.

- Cresce, cresce, meu menino,
Cresce, cresce para o bem;
Vale Deus em teu destino
E teus pais Cordo e Belém.

_______

- Amado, meu bem Narciso,
Como é bele esta deveza!
Repara na natureza,
Mais graça nela diviso!
A precursora do dia!
Nas novas galas que muda,
Que pompas, que louçania!
Como a flor é mais cheirosa!
Como alegre o passarinho
A meiga aurora saúda
Cantando sobre o raminho!

- Minha Eugênia, esta ventura
Só Deus a fez para os pobres,
Pois no torreão (44) dos nobres
Reina a soberba e o festim,
Mas aqui nesta fragura,
Onde demora a cabana,
Para Deus temos hozana!
Perfumes tem o jasmim.
- Quando com a foice aguçada
Descer o anjo à cabana
Montado no seu corcel,
Não chores por mim amada,
Mas antes entoa hozana
Ao santo Deus de Israel. (45)

- Lá onde tudo é doçura,
Onde tudo é poesia,
Onde se goza a ventura
Sem mescla de desprazer,
Lá nos veremos um dia
Nessa região feliz,
Onde se vai reviver!
Lá unirei o meu peito
O bravo Francisco Luiz; (46)
Herói, Eugênia, perfeito,
Filho deste Piauí, (47)
Onde nasceste e nasci.
Morreu de balas passado
A vinte e dous de setembro,
O corpo todo crivado...
Sem ter inteiro um só membro!
Outro mais bravo não vi!
Saudades à sua memória!
Foi neste ataque intentado
Sem fruto a Curupaiti,
Porém famoso na história,
Onde também teu Narciso
Perdeu o seu braço, - glória
Para nós, - pra outros risos!

- Eu e tu e o nosso Nino,
Firma também, nossos pais,
Nossos parentes e amigos,
Lá nos céus seremos tais!
Lá se goza de uma vida
De delícias sem iguais!
A vida lá tem prazeres,
Que não desfrutam mortais!
Ame-se a pátria, a virtude,
Que gozos lá perenais!

- Mas em quanto o alto destiono
Nos não desviar da rota...
Façamos do nosso Nino
Um guerreiro, um patriota.

- Cresce, cresce bom menino,
Cresce, cresce para o bem,
Vele Deus em teu destino,
E teus pais Cordo e Belém.


Comentários
1) Fadinha. Diminutivo de fada, que é ente sobrenatural com o poder de predizer destinos e fazer encantamentos. Por extensão, mulher formosa, assim empregado pelo poeta.
2) Pirilampo. Do grego piro, fogo, e lampo, facho, do verbo lampein, brilhar. Pirilampo, que brilha como fogo. O mesmo que vaga-lume. Melhor seria pirolampo, pois o o é a vogal de ligação de elementos gregos, mas entrou no hábito da coletividade pirilampo.
3) Senhora. Nossa Senhora.
4) Lustro. Período de cinco anos.
5) Bodas. Casamento, núpcias.
6) Solano. Solano Lopez, ditador do Paraguai.
7) Guerra. Referência à Guerra do Paraguai, que principiou em 1864.
8) P’rigo. Perigo. O poeta suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação.
9) Granadeira. Conjunto de granadas. Granada é explosivo.
10) Baioneta-calada. Baioneta é arma de aguda ponta que se adapta à extremidade do cano da espingarda, do fuzil. Muitos dicionaristas apontam como origem o francês bayonnette. Tirado da cidade francesa de Bayonne, onde a arma foi fabricada pela primeira vez. Baineta-calada: posta em posição para investir contra o inimigo.
11) Húmil. O mesmo que humilde.
12) Esp’rança. Esperança. O poeta suprimiu uma sílaba por necessidade de metrificação.
13) Pedro. Pedro II, imperador do Brasil, que chegou a Uruguaiana em 11-9-1865.
14) Uruguaiana. Cidade ocupada por tropas paraguaias (Rio Grande do Sul). Uruguaiana foi cercada por tropas brasileiras e uruguaias. As tropas paraguaias renderam-se.
15) Barroso. Almirante Francisco Manuel Barroso da Silva, comandante da esquadra brasileira na Batalha do Riachuelo (Guerra do Paraguai).
16) Riachuelo. Arroio Riachuelo. Batalha do Riachuelo ganha por Barroso (11-6-1865 – Guerra do Paraguai).
17) Tuiuti. Ganha batalha ganha pelos aliados (Brasil, Argentina e Uruguai) contra o Paraguai (24-5-1866).
18) Curuzu. Pequena fortaleza paraguaia tomada pelos brasileiros no dia 3-9-1866.
19) Curupaiti. Batalha de Curupaiti. Primeira derrota de argentinos ,brasileiros e uruguaios na guerra do Paraguai. Setembro de 1866).
20) Humaitá. Doze meses de duração as lutas pela posse de Humaitá na Guerra do Paraguai. Foi ocupada pelas tropas aliadas.
21) Francia. José Gaspar Rodriguez Francia, chamado Dr. Francia. Fundador da independência do Paraguai. Ditador. Nasceu em 1776 e faleceu em 1840. Ditador vitalício. Alcunhado El Supremo, governou até morrer. Grande estadista e déspota intransigente. Fortaleceu a economia paraguaia.
22) Pequizeiro. Veja pequi, noutro local deste livro.
23) Da tríplice – ultriz aliança. Referência à aliança do Brasil, Argentina e Uruguai contra o Paraguai, na Guerra do Paraguai. Ultriz quer dizer que vinga. Aliança vingadora.
24) Rosas. José Manuel Rosas (1793 – 1877). Soldado e trabalhador em fazendas de gado. Com o tempo e depois de muitas lutas tomou conta do governo de Buenos Aires. Deixou o governou e foi a ele chamado novamente.o seu poder foi ratificado por um plebiscito. Passou a governar despoticamente. Muitos foram fuzilados. Vários paises assumiram posições contra ele Buenos Aires foi bloqueada. Derrotado pelos brasileiros na batalha de Monte Caseros.
25) Pélago. Veja pego noutro local.
26) Circe. Feiticeira que transformou em porcos os companheiros de Ulisses, quando este aportou à sua ilha, para que o herói permanecesse mais tempo junto dela. Por vezes se faz referência a essa transformação para aludir a pessoas que embruteceram ou perderam as boas maneiras.
27) Féleo. Relativo a fel. De fel.
28) Jataí. Combate de Jataí. Encontro da Guerra do Paraguai (17-8-1865), decisivo para a sorte do general Estigarribia. Argentinos, brasileiros e uruguaios derrotaram o Paraguai.
29) Jacamim. Também jacami. Ave dos campos, de canto singular. Do tupi já-acan-mim, o que tem cabeça pequena, ou já-acan-mii, aquele que move a cabeça.
30) Ó lá de dentro. Modo, no interior, de chamar alguém.
31) Negar-lha. O lha é combinação dos pronomes lhe e a: negar a ele (lhe) a pousada (a).
32) Mana. O mesmo que irmã.
33) Quanto dó. Como compaixão, tristeza, dó é palavra masculina.
34) Fossos. Empregaod no sentido de fortificação, entrincheiramento.
35) Protérvia. Insolência, desaforo, desavergonhamento.
36) Satânica. Derivado de satã, o mesmo que satanás, diabo. Satanás em hebraico é satan.
37) Guarani.de guá igual a guá (hár), o guerreiro, e rani igual a rini,os que guerreiam ou estão guerreando. Primitivamente – lembra Romão da silva – aplicou-se este nome a um dos grupos avançados da grande família lingüística americana, que ocupava o delta do rio Paraguai, e com que primeiro estabeleceram contato e comércio os conquistadores. Mais tarde passaram a chamar assim todos povos afins da bacia do Prata (veja “Denominações Indígenas na Toponímia Carioca” – 138). Guarani é o mesmo que paraguaio.
38) Márcio. Derivado de Marte, deus da guerra, na mitologia.
39) Coorte. Porção de gente armada. O poeta empregou figuradamente como grande quantidade.
40) Maneta. Que não tem um braço.
41) Manquitó. Que manqueja. Coxo.
42) Breve. Adjetivo empregado como advérbio: brevemente.
43) Cara-metade. A esposa com relação ao marido. A palavra cara, na expressão, vale querida, amada. O povo, porém, vê cara como dispendiosa.
44) Torreão. Torre larga e ameada sobre um castelo (Aurélio).
45) Deus de Israel. Israel foi a designação das tribos que se separaram de Judá, formando um dos dois reinos após a morte de Saul. Israel: nome do reino das dez tribos. Deus de Israel é o criador de todas as cousas, inclusive do homem e da mulher. Cristo é o filho de Deus de Israel.
46) O bravo Francisco Luís. Monsenhor Joaquim Chaves transcreve documento de que copio: “No dia 4 de maio, pelas cinco horas da tarde, fez em Teresina sua entrada o contingente de Voluntários da Pátria fornecido pela vila de Barras, em número de 52 praças e 2 oficiais. Aos esforços do Capitão Luís Francisco Pereira de Carvalho e Silva, que foi o primeiro a inscrever-se no alistamento e o primeiro a procurar com o poder de persuasão e do estímulo fazer-se acompanhado de tantos cidadãos, muito se deve pela aquisição de tão importante número de voluntários”. (O Piauí na Guerra do Paraguai” – 17). E adiante, pág. 38: “Em Corrientes, no Estado argentino, faleceu no dia 7 de outubro último (1866), Francisco Luís Pereira de Carvalho e Silva, em conseqüência do ferimento de uma bala que lhe penetrou no peito direito, no ataque de Curupaiti, a 22 de setembro. Natural da cidade de Oeiras e residente na vila de Barras, onde se dava à vida pacífica da advocacia, apenas a Pátria pôs em prova a dedicação de seus filhos, o capitão Francisco Luís apresentou-se voluntário e seguiu com o 1º Corpo que desta Província partiu para o teatro da guerra. Não lhe obstaram o propósito a cara esposa e os ternos filhos, que oram ficam na viuvez, orfandade e pobreza. Fez a campanha de Uruguaiana. No combate de Curuzu o nobre piauiense portou-se heroicamente” (documento citado por Monsenhor Chaves”).
47) Piauí. Nome indígena. De piau (o pele manchada, peixe) e i (rio) – o rio dos piaus,isto é, dos peixes de pele manchada.

O Avarento

Quid juvat immensum te argenti pondus et auri
Furti defossa timidum deponere tura?
(Horácio – Sat.)

Vede o pobre ancião na humilde choça
Os tíbios olhos para os céus erguendo:
Seus lábios trêmulos se dirigem súplices
Aos pés do Eterno, desferindo graças...

Certo despreza deste mundo as pompas;
Dizem-nos os anos e a cerviz (1) pintada:
Apalpa as contas que rolando descem
No grosso fio; (2) só nos céus medita...

Ele é ditoso, que a virtude é dita.
- Vede o pobre ancião na humilde choça!

________

Seus dias correm como os sons queridos
Da fresca brisa que desperta as folhas;
Correm serenos como os sons da flauta
Que acorda as trevas do dormir profundo.

Na pobre mesa não se estendem lautos,
Gordos manjares que derramam n’alma
Torpor e tédio: na frugal (3) comida,
Bem mostra, sóbrio, que abomina a gula.

Ele é ditoso, que a virtude é dita.
- Vede o pobre ancião na humilde choça!

_______

Seus dias correm como os sons queridos
Da fresca brisa que desperta as flores
Correm serenos como os sons da flauta
Que acorda as trevas do dormir profundo.

Na pobre mesa não se estendem lautos,
Gordos manjares que derramam n’alma
Torpor e tédio: na frugal (3) comida,
Bem nostra, sóbrio, que abomina a gula.

Ele é ditoso, que a virtude é dita.
- Vede o pobre ancião na humilde choça!

______

Não tem mobília no seu tosco albergue.
Apóstolo fiel da caridade,
Repele o luxo que arruína os povos,
E socorre, propício, aos desgraçados.

Vede-o – levanta-se, e com passo incerto
Passeia – olhando para certo lado
Da humilde estância... aonde (5)os dias passa
Puro – distante do viver da corte. (6)

Ele é ditoso, que a virtude é dita.
- Vede o pobre ancião na humilde choça!

_______

Mas estudai-lhe do semblante lívido
Todos os traços, estudai-lhe os olhos
Baços, (7) erguidos para os céus, e os lábios
Que a Deus parecem desferir (8) mil graças...

Sim, estudai-o ... Dir-vos-a seu rosto,
A cerviz branca, seus olhares baços,
Que aos céus se elevam e depois se abaixam, (9)
E vão pregar-se, vão morrer num canto.

É desgraçado - que a vareza torpe
Faz a desgraça do mortal que a nutre.

_________
Oh! Não! Como é possível que a maldade,
Que a torpe hipocrisia se rebuce
Nas brancas roupas que a virtude veste?
É possível, meu Deus, tanta impostura?
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
________
É ele nada menos que um avarento!
Prata e oiro conserva sob a terra:
Um só real (10) não passam os seus gastos
Dos juros extorquidos aos que presta (11)
Dinheiro, cujo prêmio desejara
Ao mês fosse de mil ou mais por cento!
Porque julga o de dous, de três ou quatro
Incapaz de dar pasto à vil cobiça
E à sede de metal (12) que lhe devora
O peito que se afez a torpes crimes!
- É de tanto capaz um avarento!
E assim vive já próximo da campa, (13)
Sem que a fome remova ao mendigo;
Sem que ao despido corpo do indigente
Uma vara (14) ministre de fazenda;
Sem que atenda o gemer do pobre infante
Que vive a tiritar de frio e fome
E com a voz da inocência o pão esmola; (15)
Sem que a sede sacie ao que a suporta,
Pois que até lhe é penoso um gole d’água
Dar a quem lh’o (16) suplica sequioso!
- É de tanto capaz um avarento!

A prole, triste dela! – mal curada,
Apenas tem por mestre a consciência!
“Meus filhos, assim diz, viver só devem
Esta vida qual eu vivido tenho.”
E os míseros escravos que se afanam (17)
No contínuo lidar – nus e famintos –
No horror do desespero aos céus dirigem
Maldições, maldições contra o tirano
Que os dias amesquinha-lhes... que as carnes,
Lhes despe – em tiras – do mirrado corpo!
- É de tanto capaz um avarento!

Malvado! – que ensurdece ao grito infausto
Da miséria! – nem sabe-lhe propicio
Mitigar o sofrer um só instante!
Coração mais ferino que o do tigre!
Mais duro do que a rocha! Oh! vede o monstro:
- Ao pobre que reclama o pão do dia,
Ao cego, cuja indústria lhe é vedada,
Ao mísero aleijado que o trabalho
Não pode manejar, diz, feio e torvo:
“Todos vós sois vadios – que trabalhem...
- É de tanto capaz um avarento!

Em que pensa o avaro? o qu’ele sonha?
- Pensa e sonha chupar o sangue humano!
Ao crime negro e vil oblações rende!
A virtude, profano! – olvida e cospe:
À viúva que vê envolta em trapos,
Tendo ao seio apertado o orfãozinho,
E que uma esmola, lacrimosa, pede;
Embora honesta seja, diz-lhe: “Vai-te,
Mulher torpe, que as cinzas do finado (18)
Desonras com os teus nefando vícios.”
- È de tanto capaz um avarento!

Porém, ei-lo que jaz na cama enfermo,
Já sentido da morte o golpe extremo;
Seus filhos que da morte o leito imundo,
Pranteando-o, circundam, na desgraça
Com a decrépita esposa hão de famélicos
Morrer a míngua... Mas, no que ele cuida
Que, mesmo agonizante, os frouxos olhos
Não desprega de um lado... de um somente!
- é que ali enterrada a prata, o oiro,
Permanecem, que são “seu deus, seu tudo!”
- É de tanto capaz um avarento!

E muito embora à cabeceira tenha
Do Senhor o ministro (19) que o exorta,
A ninguém os tesouros seus descobre!
As verdades do céu são-lhe fantasmas
De feio aspecto, que o sofrer lhe agravam.
Se os olhos cerra, (20)novo mundo encontra
De tét

FORTUNA CRÍTICA