Joaquim Cardozo, de volta

Everardo Norões 

 

A arte de Cardozo reúne a racionalidade da ciência e o 'enigma da poesia' - Everardo Norões

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Chegou finalmente às livrarias, publicado pela editora Nova Aguilar, em co-edição com a editora Massangana, o livro Poesia completa e prosa, do engenheiro calculista de Brasília e um dos maiores poetas brasileiros, Joaquim Cardozo. Há setenta anos, ele era exonerado pelo secretário de Viação e Obras de Pernambuco, "a bem do serviço público". O motivo alegado: "incapacidade técnica para o exercício das funções de engenheiro-auxiliar da Diretoria de Viação, Obras Públicas e Oficinas. Sem trabalho, foi obrigado a exilar-se e partiu das várzeas do Capibaribe em busca dos ares do mundo. Somente regressaria ao seu Recife de 'decrépitas calçadas' pouco antes de tomar lugar no vagão do 'último trem subindo ao céu'.

Na apresentação da poesia de Joaquim Cardozo, Marco Lucchesi compara esse trem do poema Trivium a outros da lírica moderna, em especial o "G.W.B.R", de Jorge de Lima, e o "Presidente do Globo Terrestre", do poeta russo Vielimir Khliébnikov. E conclui que Joaquim Cardozo foi o primeiro poeta "a tirar o trem dos trilhos", numa expressão feliz que traduz uma inusitada invenção: a viagem, segundo Marco Lucchesi, "de um poema transfísico, por iniciar-se e se espraiar em todos os horizontes do universo, das cem milhões de estrelas em nossa galáxia e dos tantos multiuniversos, aos cem milhões de neurônios no céu da mente humana, à pura abstração".

De fato, a poesia de Joaquim Cardozo - além de sua grandeza intrínseca, evidenciada por inúmeros críticos - tem uma característica especial: a única a reunir a racionalidade da ciência e o 'enigma da poesia', numa empresa nunca antes observada na literatura brasileira. É possível que Carlos Drummond de Andrade tenha se apercebido dessa estranha proeza - equivalente à de um Goethe ou à de um Khliébnikov - , quando declarou que A Nuvem Carolina era um de seus poemas prediletos. No poema, Joaquim Cardozo percebe nos gestos de uma nuvem uma possibilidade de fala. Segundo ele, da "formalização dos gestos da natureza podia nascersempre uma linguagem". Também na penumbra do laboratório do poema O silêncio expectante e a voz inesperada, na busca da descoberta do "espaço completo e geral/onde se pudesse definir a pulsação originária", ouve-se, através de "uma fresta imperceptível no rádio", uma longínqua voz de mulher cantando nas Antilhas... Essas invenções poéticas, entrelaçadas aos descobrimentos das ciências, nos conduzem ao mundo extraordinário de Joaquim Cardozo, um 'homem universo', conforme o definimos na introdução à sua obra, que tivemos o prazer de organizar e acaba de sair do prelo.

Chamado de poeta bissexto por Manuel Bandeira (que depois faria a devida retificação), afastado de Pernambuco por ato burocrático e prepotente, Joaquim Cardozo está de volta para nos transportar através de seus belíssimos textos. Textos que reafirmam o quanto sua obra é contemporânea. Contemporaneidade entendida como trama de tempo e de espaço, a nos lançar num movimento dialético de atração e de repulsa, que nos distancia e ao mesmo tempo nos permite enxergar o oculto: o lado escuro que a razão não consegue alcançar. Aquilo que explica, finalmente, porque toda verdadeira obra de arte, todo grande poema, não tem data.