JL Rocha do Nascimento entre a memória, a filosofia e o cinema
Em: 05/10/2025, às 22H19

O conto piauiense começa com Ovídio Saraiva, que publicou conto romântico fundindo o gênero à carta, na primeira metade do século IXX. Seguiram-se a ele nomes como Francisco Gil Castello Branco, João Pinheiro, João Freitas, C. de Moura Batista. A partir de 1958, com Fontes Ibiapina, o conto ganha novos contornos. Da segunda metade do século XX à contemporaneidade, escritores como O. G. Rêgo, H. Dobal, Alvina Gameira e uma legião de nomes mais recentes das três últimas décadas, repaginaram o gênero. Entre eles, JL Rocha do Nascimento. Doutor em Direito, magistrado e professor universitário, é autor de 6 obras de contos, além de livros noutras searas. Sua obra dialoga com a memória, o cinema e a filosofia. A estrutura de pensamento que a fundamenta é o tema desta conversa.
Dílson Lages — Vamos começar essa prosa remexendo o contexto de sua formação inicial como contista. Professor, você participou, em 1980, de um grupo de nome Tarântula, do qual faziam parte os contistas Airton Sampaio, M. de Moura Filho, J. L. Rocha do Nascimento e José Pereira Bezerra. O que proponham? O que a participação nesse grupo legam ao modo de expressão de sua prosa?
JL Rocha do Nascimento — Nós tínhamos uma proposta estética, a de modernizar a narrativa curta na literatura piauiense, até então presa a um regionalismo que Airton Sampaio denominou de “tacanho”. Mas é preciso que se esclareça exatamente o que ele queria dizer com isso, para que se evite compreensões equivocadas. Não defendíamos a ideia de que não se devesse escrever temas regionais, não se trata disso. Nós éramos contra o tratamento dado ao tema de maneira rasa, superficial e que reduzia o conto a uma mera contação de “causos” ou pura “anedota’, sem uma preocupação estética. Para além disso, sustentávamos que quando a narrativa fosse ambientada no meio rural, os temas deveriam aprofundados, as abordagens deveriam ser mais verticalizadas e aos personagens deveria ser dado um perfil mais complexo e com mais introspecção, que não ficasse apenas no plano da mera descrição, de modo que se pudesse ser universal a partir do local, do regional. Nesse sentido, o grupo Tarântula desemprenhou um papel na renovação do conto piauiense, na medida em que propôs uma linguagem coloquial que não era bem aceita pelo cânone literário ainda preso a padrões rígidos, a utilização de temáticas, tramas, cenários e personagens essencialmente urbanos, a análise introspectiva dos personagens dando-lhes um perfil mais complexo, bem como uma conexão profunda com a cultura pop, o movimento underground, fazendo uma intertextualidade entre literatura e outras formas de expressão artística, como o cinema, os quadrinhos e música. A minha participação no grupo, a partir de sua proposta estética me ajudou a construir uma contística com esses fundamentos.
Dílson Lages — Peço que você mostre esse legado lendo um trecho significativo, para você, de um de seus livros?
JL Rocha do Nascimento — Posso indicar dois exemplos. O primeiro demonstra que o autor pode tratar uma trama ambientado no meio rural e que, de forma açodada, poderia ser rotulado como um conto regional, mas que na verdade revela um personagem psicologicamente atormentado, assustado, a partir de fenômenos da natureza que ele, na visão fantasiosa de menino, interpreta como sendo fenômenos sobrenaturais, como assombração, visagem ou coisa parecida, muito comum nessa idade. Tudo isso é narrado de forma lúdica no conto abre e dá título ao livro: Um clarão dentro da noite.
O segundo conto se alinha aquela ideia da conexão do modo de contar com a cultura pop. Me refiro ao conto Jim Morrison Sobe aos Céus. O conto tece uma homenagem ao líder da banda americana de rock psicodélico, Jim Morrison que, não por acaso, era poeta. Trata-se de um conto, como o cronista Rogério Newton destacou em seu prefácio, de uma textura incrivelmente aberta, sem enredo, sem cenário, sem narração, todo dialogado e que diz muito mais pelo não dito do que por aquilo que não é dito, que fica escondido. Noutras palavras: eu só ameaço que conto e deixo para o leitor a tarefa de colmatar, de preencher os espaços vazios, de completar a comunicação. Esse tipo de abordagem eu não faria nos dias de hoje se não tivesse a formação que tive com o grupo Tarântula de contistas.
Dílson Lages — O conto regionalista é página virada em nossa história literária? Ele realmente significou um retrospecto na ficção ou obedeceu apenas às marcas e às ideias predominantes em um tempo? Quando vejo algumas ideias pregadas pelo grupo tarântula, a impressão que me fica é que a literatura ao mesmo tempo que se quer dinâmica pressupõe que o que se fazia aqui era passadista e de repetição de um modelo desajustado com os novos valores de 70 e 80. Isso não seria uma forma ideológica de autoafirmação dos valores de um grupo? Passadas três décadas desse momento, qual avaliação você faz sobre as bases que fundamentaram esse grupo à que você esteve integrado?
JL Rocha do Nascimento — Creio que a resposta a essa indagação, de certo modo, já foi respondida na questão anterior. A ideia era romper com o paradigma anterior como forma de narrar. Mas não somente quebrar estruturas antigas para colocar o novo em seu lugar. Ademais disso, há também aí um outro componente: um modo de autoafirmação do grupo. Nós precisávamos de um discurso, de uma proposta estética, daí a opção do mote de tirar o conto do regionalismo tacanho para introduzi-lo na modernidade, no meio urbano.
Dílson Lages — Estou diante de um literato, que tem bastante consciência de seu fazer. Para tratarmos aqui do que é o centro dessa conversa, vou pedir que você mesmo resuma os temas preferidos e seu modo de expressão, com uma breve cronologia das transformações pelas quais passou SEU modo de narrar.
JL Rocha do Nascimento — Contando com o meu mais recente livro publicado, são, no total, seis livros de contos, que eu os divido da seguinte forma e em três grupos:
No primeiro grupo estão os dois primeiros livros: Um clarão dentro da noite , que ganhou o prêmio João do Rio da UBE-RJ de 2020, e Os pés descalços de Ava Gardner. Eles dialogam entre si a partir da forma de narrar e dos temas abordados. Em ambos, a memória afetiva é um tema recorrente. Há também o tema da assombração, do fantástico, do realismo mágico a partir da perspectiva do narrador, quase sempre uma criança ou um pré-adolescente. E há também abordagem de temas como velhice, demência e loucura, que não deixam também de se inserir no guarda-chuva da memória afetiva. E no segundo livro eu já meio que ensaio em alguns contos a introdução de temas que eu vou trabalhar a partir do quarto livro, que é a crítica social, política e de costumes com uma pegada filosófica.
E no que se refere à forma de narrar, em ambos os livros, eu lanço mão de uma linguagem moderna, ágil, dinâmica, não linear e com muita intertextualidade, onde predomina a fragmentação, a justaposição e cortes rápidos, às vezes abruptos, surpreendentes, que mais se aproximam de uma linguagem cinematográfica.
O segundo grupo é constituído somente de um livro de contos, o terceiro: Morangos silvestres e outros contos eróticos. O diferencial desse livro é que ele se trata de um livro monotemático., com um único tema: o erotismo, que ainda é, de uma maneira geral, tratado como um tabu, um tema interdito, muito embora se confunda com a história da própria humanidade. E eu como sou um escritor que não tem receios de penetrar territórios difíceis, lancei-me nessa empreitada, com um detalhe: o leitor não vai encontrar no livro a banalização do tema e nem linguagem vulgar. Muito ao contrário, todas as cenas, todas as passagens são descritas e mediadas por uma linguagem figurada, alegórica e sugestiva. Quanto a forma, a partir mesmo do título que homenageia Ingmar Bergman, o cineasta sueco, eu continuo a dialogar com o cinema.
O terceiro grupo é constituído por dois livros, o quarto (Na caverna de Platão e outros contos breves), publicado em 2023 e que ganhou o prêmio Rubem Fonseca da UBE-RJ de 2022 e Nunca seremos felizes, de 2024. Os dois livros têm uma identidade comum: um tom ensaístico de filosofia política e existencialista, neste último, além de uma crítica de costumes. São dois livros que exigem do leitor um esforço maior de leitura, porque dependem muito de uma pré-compressão dos temas abordados. Os livros, no entanto, divergem quanto à forma. Enquanto o primeiro é composto de microcontos, pequenas narrativas que, na sua maioria, abordam personagens deformados psicológica e socialmente. Já o livro Nunca seremos felizes eu inovei na forma de narrar. O livro não tem narrador, sem cenário, sem descrição, todo ele na forma de diálogos, à maneira do que faziam os filósofos gregos.
Por fim, meu último livro intitulado O livro de João em 101 versículos é uma espécie de outsider. Não se enquadra em nenhum dos três grupos e ao mesmo tempo tem elementos de todos eles. Trata-se de um livro de contos que pode ser lido como uma novela, dado que em todas as narrativas o personagem central que é um só: João, um anti-herói e o livro acompanha a vida dele desde a infância até a morte.
Dílson Lages — A linguagem do pós-moderno e do contemporâneo é fragmentada e iconográfica. Como a memória é empregada em sua criação para gerar efeitos de sentido e alcançar uma dimensão estética. Memória em Literatura não é só para recordar. É para quê?
JL Rocha do Nascimento — A memória é uma das matrizes de minha criação literária. Ela está sempre presente desde quando eu fui jogado neste mundo sem qualquer tipo de consulta. Então, quando eu parto para escrever um texto, eu já carrego comigo meus pré-juízos, meus pré-conceitos, que são transformados em uma espécie de argila para eu formatar e construir minhas narrativas. Borges sempre dizia que quando vai escrever você sempre parte de você, de dentro de você. Comigo não é diferente.
Dílson Lages — Ao escolher o narrador em muitos de seus contos, a partir da definição sensorial e espacial de uma ambientação, você o utiliza como uma chave para a memória. Por exemplo: Em Ela, o menino e as aventuras de Tarzan, de Um clarão dentro da noite, temos um menino que vai limpar o comércio do pai e é projetado para um confronto paradoxal entre o mundo do desejo e a inocência, para a partir daí provocar em nós, leitores, um amálgama de sensações. O narrador se desdobra em camadas de flashs curtos. Cenas rápidas. O narrador não é só um ponto de vista. O narrador é um recorte espacial e temporal, mas voltado para a sensação do que para o episódio em si. Mais para a surpresa do que para a consequência de uma ação. Seu narrador é um obcecado pela surpresa acima de tudo e tudo o mais, a memória inclusive, é só um pretexto para mexer com a imaginação do leitor?
JL Rocha do Nascimento — Não creio que seja só um pretexto, embora também o seja. É mais que isso, a memória, como eu disse é argila, é matéria de construção dos meus sonhos, de minhas mentiras, que o ato de escrever, num certo sentido. E o conto trata do arrebatamento de uma criança, já quase entrando na adolescência, quando ele, de maneira abrupta, descobre que o mundo não se resume a diversão e entretenimento. É quando ele é apresentado ao desejo, a partir de quando ele se divide e fica meio que confuso, sem saber se continua imerso no mundo das histórias em quadrinhos, em especial da história do Tarzan, o seu super herói ou se rende aos encantos da personagem feminina que lhe arrebata com um beijo.
Dílson Lages — A rua Paissandu com a João Cabral aparece repetidamente em contos seus, sob a ótica de um narrador saudosista. Encontramos novamente em Deus Salve Antônio Leiteiro, em Os pés descansos de Ava Gardner. Por quê?
JL Rocha do Nascimento — Não só a Rua Paissandu e a João Cabral, mas também a Rua Coelho de Resende em vários contos do primeiro livro Um clarão dentro da noite. O conto intitulado A outra é um exemplo disso. Trata-se de um título enganoso. A outra aí não é uma pessoa e sim uma outra rua, no caso, a rua Coelho de Resende. Ela é o personagem principal. Escrevi esse conto como uma homenagem à rua em que passei boa parte de minha infância. E para fazer um contraste com uma outra rua, essa bem famosa, que ficava ali na proximidades do barrocão e que foi imortalizada numa famosa canção.
Dílson Lages — A supressão do ambiente e do espaço tem sido experimentado por muitos autores nas últimas décadas. Você faz isso em Nunca seremos felizes, a pretexto de pôr a filosofia em cena. O que cabe ao leitor neste tipo de leitura? Que leitor você pretende alcançar?
JL Rocha do Nascimento — Nunca seremos felizes, em termos de forma, tem uma estrutura diferenciada, na medida em que o livro é todo escrito na forma de diálogo. Eu, de fato, suprimo espaço, cenário, narrado. Fiz isso como proposta estética, mas também porque o livro é todo ele atravessado por temas filosóficos, sobretudo o da filosofia existencialista. Ali você encontra um pouco de Heidegger, Sartre, Nietzsche. E o livro pede a participação do leitor. Cabe a ele colmatar os espaços vazios, construir um imaginário para completar aquilo que propositadamente foi omitido.
Para além disso, lançar mão do diálogo foi um pretexto para colocar na cena a filosofia, a história uma vez que minha pretensão era a de emular um pouco os diálogos gregos que, para Borges, se constituem no maior legado dos Helenos.
Dílson Lages — Você utiliza do cinema em muitos contos por alusão direta, criando metáforas ou processos de similitude, por meio do intertexto. Uma narrativa acaba se transpondo para outra narrativa. O gosto pessoal do cinéfilo é uma obsessão autobiográfica. Quais efeitos de sentido você acredita que provoca no leitor ao usar este recurso?
JL Rocha do Nascimento — Sim, trata-se de uma verdadeira obsessão. Antes dos livros, duas formas de expressão artísticas vieram primeiro e me arrebataram: o cinema e as revistas em quadrinhos. Os livros eles surgem depois. A magia do cinema sempre me encantou. E as histórias em quadrinhos meio que se aproximam do cinema em termos de magia. Por isso a presença constante do cinema na minha obra. E o efeito que gostaria de provocar é o da magia e ao mesmo tempo da aproximação com o real. Lembro do primeiro filme que vi. Devia ter entre 10 e 12 anos. Um bang-bang americano. No tempo das diligências, do John Ford e estrelado por John Wayne. Fui levado ao cinema pelas mãos da minha tia. Tem uma cena que não esqueço e que me ficou marcada para sempre, tamanha era a aproximação com o real, o que somente o cinema consegue fazer. Uma diligência era perseguida por um grupo de fora-da-lei. Na fuga, a certa altura o cocheiro tinha que se decidir entre seguir em frente ou se render aos bandidos. Só que à frente havia um precipício a ser transposto. Sem alternativas, o cocheiro chicoteou os cavalos e eles avançaram sobre o precipício. Uma das tomadas era filmada na perspectiva de baixo para cima. Eu juro que quando a os cavalos e a diligência caíam sobre o precipício, eu me abaixei na poltrona com as mãos na cabeça para me proteger. A cena me pareceu tão real que imaginei que a diligência iria despencar sobre minha cabeça. Foi com essa cena que eu fui apresentado ao cinema pela primeira vez. Impactante. E quando escrevo, na maioria das vezes, eu tento trazer a linguagem e os efeitos do cinema para o meu texto. Trazer o leitor pra dentro do texto, como o cinema consegue levar o expectador para dentro da telinha.
Dílson Lages — O Uso de elisões. Cortes, colagens. Enquadramentos. Próprios da linguagem do cinema está na materialidade de sua linguagem. É uma tentativa de se aproximar do leitor? Um processo natural de incorporação de intersemioses do dia a dia? Um processo calculado para tornar a linguagem dinâmica e em movimento? Voce acredita realmente que o cinema na literatura serve para quê?
JL Rocha do Nascimento — Como eu disse na questão anterior, a ideia é provocar o mesmo efeito do cinema. Trazer o leitor para dentro do texto, estimular a cumplicidade dele, sua participação. Trata-se de uma ideia planejada, de uma estratégia para tornar a linguagem mais dinâmica, ágil e atrair a participação do leitor, provocar uma imersão, fazer dele um participante ativo ou, no mínimo, um cumplice da narrativa. Eu gosto dessa troca mútua, dessa transposição de um lugar para o outro.
Dílson Lages — A história das narrativas literárias aproximou-se em muitos instantes do conceitual e do ensaístico. Na literatura universal não faltam exemplos. Voltaire é um deles. Na literatura brasileira, Canudos é um bom exemplo. No seu conto, Na caverna de Platão, entra em cena o conceitual sob influência da Filosofia. Não estaríamos nos desviando da linguagem em sua dimensão mimética para o plano da abstração filosófica. Como é possível usar o discurso filosófico sem obscurecer a dimensão literária?
JL Rocha do Nascimento — Essa é uma questão que atravessa quase todo o livro Na Caverna de Platão e creio que, mais ainda, no livro Nunca seremos felizes. A presença do tom ensaístico. Haveria um prejuízo para a linguagem enquanto ficção pura? Confesso que não tenho uma resposta pronta para isso. E você tem razão quando diz que isso seria meio uma culpa do discurso filosófico que invade a ficção. Nesse cenário, o papel do ficcionista, do narrador é fundamental, ele tem que ter o controle do processo criativo, de modo a evitar que a especulação filosófica não sufoque a narrativa literária. Mas essa foi a minha proposta nesses dois livros. Meio que eu quis misturar as coisas, mesmo porque nós exemplos emblemáticos na literatura mundial. Em Borges, por exemplo, fica difícil em determinados contos dizer onde começa o ensaio e termina a ficção ou vice-versa. A fronteira entre uma coisa e outra é muito tênue, é uma espécie de bruma, uma zona cinzenta.
Dílson Lages — Por fim, falemos do Erotismo. Seus narradores são obcecados em descreverem as artimanhas da sedução. Duas dimensões, porém, contrapõem-se em muitos contos: o desejo como manifestação imaginada versus a materialização de instintos carnais. Como tratar o tema sem apelos e sem banalizá-lo? Em que reside a beleza do erotismo na palavra literária e em sua palavra literária em particular?
JL Rocha do Nascimento — Sou suspeito para falar, mas acho que eu procuro tratar o tema sem banalizar, uma espécie de autocontenção. E vai depender muito do tratamento que o autor vai conferir à linguagem. E nesse sentido, eu procuro ser rigoroso. Os contos dos Morangos silvestres são todos figurados, verdadeiras alegorias. E nunca digo tudo, há sempre um não dito para ser preenchido pelo leitor e faço isso lançado mão de uma linguagem elegante, estilizada. Você não irá encontrar nenhuma banalização nos textos.