ELMAR CARVALHO

 

Neste domingo, em Campo Maior, fui à maternidade Sigefredo Pacheco, para entregar ao médico e diretor daquela casa de saúde os meus livros Noturno de Oeiras e outras evocações, A casa no tempo e PoeMitos da Parnaíba. Fui acompanhado do professor Zé Francisco Marques e de meu irmão Antônio José. James estava, na área de recepção, a conversar alegremente com várias pessoas. Dessa atitude, em pleno domingo de carnaval, bem se pode inferir que ele tem paixão pelo que faz, que é um médico efetivamente vocacionado, uma vez que não apresentava o menor sintoma de mau-humor ou estresse.

 

Ele me apresentou às pessoas com quem conversava, e me traçou uma breve biografia, sobretudo enfatizando que eu era um poeta e que fora um bom goleiro, a desferir voos nos campinhos de várzea de Campo Maior, como está posto na parte final do livro Bernardo de Carvalho, o Fundador de Bitorocara, que eu lhe dera dias atrás, quando o encontrei, em feliz coincidência, no shopping Riverside. Naquela oportunidade, ele comprou um note book, e eu adquiri um pendrive para armazenar com segurança este Diário Incontínuo, que venho escrevendo há mais de três anos, e que desejo publicar em livro de papel, quando completar sessenta anos de idade.

 

Eu o conhecia há algumas décadas, principalmente do tempo em que eu trabalhava como fiscal da extinta Sunab, que funcionou no prédio da Delegacia do Ministério da Fazenda, onde o doutor James exercia o cargo de médico, como ainda exerce. Na conversa no shopping, ele me revelou que gostava de ler. Enalteceu as minhas atividades de magistrado e de poeta. Como é raro, hoje em dia, a gente encontrar um leitor de literatura, achei por bem lhe ofertar o meu livro sobre Bernardo de Carvalho, explicando-lhe que eu fora motivado pelo desejo de resgatar a memória dessa grande figura histórica do Piauí, que injustamente estava relegada ao esquecimento.

 

Quando lhe entreguei esse livro, disse-lhe, brincando, que ele não precisava lê-lo na íntegra, mas apenas a crônica que o encerra, escrita pelo Zé Francisco Marques, titulada “Quem te ensinou a voar?”, sobre as minhas atuações goleirísticas. Mas James Torres, com o seu notável senso de humor, retrucou-me:

- Por favor, não me faça um pedido desse; eu gosto de ler, e quero ler o seu livro todo...

Fiquei feliz. Afinal, os leitores compulsivos são “avis rara” cada vez mais raras, ralas e rarefeitas, nesses tempos apressados de internet e de audiovisuais.

 

Na maternidade, ele me mostrou um modesto painel, onde estavam afixadas, sem nenhuma ostentação, quatro a cinco fotografias, sendo duas bem antigas. Numa delas, apareciam o Dr. João de Deus Torres, seu pai, e o então senador Sigefredo Pacheco, seu tio afim, também médico e ex-deputado federal. João de Deus Torres, já falecido, foi prefeito de Campo Maior, no período de 1963 a 1967. Em outra foto, via-se a saudosa enfermeira Iracema Lima da Costa Santos, antiga parteira campomaiorense. Vim ao mundo com a ajuda de suas mãos, e durante muitos anos a chamei de mãe Irá, em homenagem a esse fato.

 

No painel, também estava a imagem de Jailton L. e Silva, filho da senhora Altair Lima de Deus, que inaugurou essa maternidade ao nascer em 05/12/1967, ainda nos bons tempos de Irá e do doutor João de Deus Torres. Nas fotos mais recentes, aparecem o médico James, uma jovem mulher e uma criança; esta infante, de nome Hellena do Vale Lima, nascida em 22/03/2004, é filha de Jailton. Portanto, vê-se nas imagens fotográficas a sucessividade das gerações de médicos e de pais e filhos, na eterna perpetuação da espécie bípede, mamífera e humana, ou homo sapiens, nem sempre tão sábio assim.

 

Durante um curto período, no início de minha adolescência, residi perto dessa maternidade. Nessa época, com certa frequência, tomava banho no Surubim e em sua velha barragem. Uma ou duas vezes, quando a alta caixa d' água, que lhe fica próximo, derramava água pelo “ladrão”, como se fosse uma bica, tive o prazer de banhar na verdadeira cascata que se formava. Na sua frente, namorei algumas vezes, à noite, uma garota da vizinhança, que nunca mais revi, e cujo nome já não recordo.

 

A pouca distância, ficava o extinto hospital São Vicente de Paula. Certa feita, quando eu me encontrava nessa entidade hospitalar, ouvi o forte clamor angustiado de uma mãe, que acompanhava o cadáver do filho. Durante alguns meses, a lamentação desesperada não me saía da memória, deixando-me o espírito impregnado de profunda tristeza pelo que a morte contém de irremediável e inelutável.

 

Como uma homenagem, recordo o nome dos velhos médicos da época, alguns já falecidos: José Francisco Bona, José Laurindo, Antônio de Araújo Chaves, João de Deus Torres, que relevantes serviços prestaram aos campomaiorenses, na área de saúde. O primeiro foi colaborador do jornal A Luta, em que publicou interessantes crônicas e artigos, que bem merecem ser coligidos em livros; doutor Chaves foi grão-mestre da Grande Loja Maçônica do Piauí. José Francisco e José Laurindo foram os responsáveis pela cirurgia cesariana, através da qual nasceu o meu irmão caçula, César Carvalho (Neném).

 

O Zé Francisco fez questão de proclamar, alto e bom som, e no melhor tom tonitruante, que James, além de médico dedicado e competente, é um exímio violonista, do nível de Turíbio Santos e Dilermando Reis. Devo dizer que o autor dos elogios não lhe deve ficar atrás, além de dedilhar, com rara maestria, um teclado. Dessa forma, marcamos um encontro para um dueto e um duelo entre esses dois mestres das cordas pulsantes e sonoras de violão, que acontecerá no primeiro ou no segundo domingo de março.

 

Após James Torres afirmar que eu fora um grande goleiro, a empreender minhas voadas nos campos pebolísticos de Campo Maior, tive vontade de lhe dizer que talvez tenha havido certo exagero por parte do Zé Francisco; que as “asas” com que eu voava eram pregadas com cera, como as de Ícaro, e que, como um anjo decaído, eu me estatelava no chão; que apenas fui um admirador dos guarda-metas conterrâneos Beroso, Icade e Zé Olímpio da Paz Filho, este para mim o melhor golquíper na modalidade futebol de salão.

 

Meu ícone, que procurava imitar, foi o imortal caiçarino Coló, um dos maiores goleiros do Piauí de todos os tempos. Coló colava com cola, como dizia a modinha, cantada no auge de sua glória. E eu, se muito colasse, colava com grude ou goma arábica.

QUEM TE ENSINOU A VOAR? (*)


José Francisco Marques

Professor, compositor e instrumentista


Remonto ao início dos anos 70, mais precisamente após o nosso escrete canarinho haver conquistado a tão cobiçada taça Jules Rimet. A nossa seleção (considerada ainda hoje por experts como a melhor de todas as seleções), despertou de maneira ainda mais efusiva e visível a simpatia por esse esporte. Assim, o futebol de várzea efervescia certamente por conta de tal feito.

Eu, não contrariando a toda uma geração, me deixei levar por essa “onda” futebolística. O meu primo/irmão João Bartolomeu Filho fundou na época um time de futebol amador, o qual denominou de Palmeiras. Era de fato um time bem organizado, com reuniões semanais, englobando todos os que faziam parte daquela equipe.

Organizou-se então um Campeonato, que tinha como coordenador mor um jovem ao qual chamavam de Pedro Rocha, apelido que acredito ser uma alusão ao famoso craque do São Paulo naquela época, cujo nome verdadeiro era Antônio Francisco Souza. A citada competição acontecia aos domingos, no Estádio Deusdedit Melo .

Eu era uma espécie de faz tudo. O office boy da equipe, por assim dizer. Lembro que, dentre as tarefas a mim delegadas, a que mais me deixava prazeroso era a de literalmente acordar o nosso atleta maior. Refiro-me ao mestre amigo, poeta, cronista, blogueiro dos mais famosos e imortal de várias academias, dentre elas a Piauiense de Letras, Elmar Carvalho, que representava, sem dúvida alguma, a peça que transmitia a toda equipe a segurança necessária. Assim o digo porque, enquanto eu não conseguisse completar a minha tarefa, o meu primo, lá no Estádio, usava de todas as artimanhas possíveis para protelar o início do jogo, para iniciá-lo apenas quando o nosso guarda-metas chegasse.

Elmar era de fato um goleiro diferenciado. Elegante em suas defesas e de uma agilidade impressionante, pois muitas vezes arrancava aplausos (fato raríssimo entre expectadores desse nível futebolístico), da plateia que o assistia. Eu, entre orgulhoso e com um nítido sentimento de dever cumprido, sentia-me, dentro do contexto, feliz por ser parte, ainda que ínfima, desse espetáculo que dominicalmente o nosso atleta oferecia.

Lembro-me, dentre outros feitos, de uma defesa antológica que Elmar praticou. Repassei, durante muito tempo, aos amigos que militavam na área esportiva, tal feito. Era uma espécie de semifinal ou algo parecido. O jogo estava duríssimo e o Palmeiras vencia por 1X0. O jogo já estava quase finalizando, quando o centroavante adversário acertou uma cabeçada no canto esquerdo, tendo o nosso goleiro, em um reflexo incrível, efetuado a defesa. A bola resvalou na trave. A pelota sobrou para outro atacante, que de primeira soltou um “torpedo”; o nosso arqueiro, usando de uma agilidade felina, conseguiu, no canto contrário, fazer uma defesa fenomenal. Mais tarde, ao ver uma defesa de Rojas, atuando no Santos (os mais afeitos ao futebol certamente lembrarão), é que pude estabelecer um comparativo com essa verdadeira façanha malabarística.

Elmar tornou-se um grande goleiro precocemente. Certa feita, ainda criança, jogava com alguns amigos em um campinho de futebol. A sua atuação despertou a atenção de um agricultor que por ali passava. Depois de seguidas defesas e voos, a espalmar a bola, o agricultor, não contendo a sua admiração e espanto, expressou em voz alta: “Meu Deus, parece um passarinzim”.

O lado intelectual falou mais alto, e assim o futebol perdeu um grande goleiro. A magistratura, por sua vez, ganhou um reforço substancial.

Mas, voltando às minhas memórias, jogo terminado, Elmar seguia, agora com alguns amigos, de volta ao seu lar (ou algum boteco), não sei ao certo, entre elogios e expressões de puro contentamento.

Hoje, depois de muitos anos, o mesmo jogador brilhante, que antes imitava com perfeição o voo dos pássaros em suas defesas acrobáticas, transporta-me em suas asas poéticas a voos ainda mais densos e infindos.

Mestre, humildemente vos pergunto: Quem vos ensinou a voar?