Não se ouve nenhum ruído na casa. Todos dormem.
Cansada de se revirar na cama, Laura se levanta. Anda pelo quarto. Procura nos objetos, tão seus conhecidos, uma distração para a falta de sono. Sem querer, derruba um porta-retratos de sua mesa de cabeceira. Pára. Tudo continua em silêncio. Resolve, então, sair do quarto.
A casa está às escuras. O assoalho de madeira range algumas vezes, forçando-a a andar com mais cuidado. Virando à esquerda sabe que irá esbarrar na velha poltrona de seu pai. Um pouco mais à direita, encontrará a mesa de costura de sua mãe. Para Laura, a casa - com seus velhos móveis e objetos - não guarda mais segredos. Assim, vai desviando de uma estante ali, uma mesinha de centro lá, até conseguir chegar à porta de sua espaçosa sacada.
Abre com muito cuidado o trinco de metal meio enferrujado. Não quer acordar ninguém. Ao sair, sente uma aragem agradável soprando em seu rosto. Suspira satisfeita.
Ela sempre gostou desta sacada. Uma cadeira de balanço muito usada ocupa parte do espaço. Nela sua mãe senta todas as tardes para costurar e ouvir as fofocas da vizinhança. Agora, entretanto, sacada e cadeira estão vazias, como que a convidando a permanecer ali sozinha.
Acomodando-se na velha cadeira de balanço, olha a noite distraída. De repente, um barulho vindo da rua atrai a sua atenção. Inclina-se sobre o parapeito da sacada para tentar enxergar a origem do ruído. Assusta-se quando vê na calçada, à sua frente, bem debaixo do poste de luz, um cachorro.
Nunca o havia visto por ali. Parece velho e doente. Seu pêlo, com falhas em vários pontos, não tem brilho e está muito sujo. Mas o que chama mais a sua atenção são os olhos. Eles não a deixam, parecem acompanhar seus movimentos. Se não soubesse que se trata de um cachorro, diria que aqueles olhos pertencem a um ser humano. São olhos tristes, sábios até.
Faz uma careta para o cão. Ele não reage. Sacode os braços numa tentativa de afugentá-lo. Nada. Começa a ficar nervosa. Olha para a porta da sacada pronta para fugir caso ele resolva avançar. O cão, no entanto, nada faz. Continua apenas observando-a; parecendo querer lhe dizer algo. Com medo, Laura decide entrar.
O cachorro, aparentando adivinhar a sua intenção, resolve se mexer. Suas orelhas, antes caídas, colocam-se em pé, tentando captar algum som que só ele é capaz de ouvir. Em seguida, sem qualquer sinal aparente, lança-lhe um último olhar e, de um salto, corre pela rua, como se de algo fugisse, deixando-a sozinha.
Laura volta a respirar. Não percebeu que estava prendendo a respiração. Aliviada, olha em torno e nada mais encontra: a rua está deserta. Assusta-se quando ouve um novo ruído. Agora, ele vem de dentro da casa. Prestando mais atenção, reconhece o som: é seu pai, arrastando os pés com seus velhos chinelos. Esconde-se. Não quer ser perturbada com perguntas ou sugestões. Quando o silêncio finalmente retorna, se levanta da cadeira. Antes de deixar a sacada, olha mais uma vez a rua. Nada vê. Cansada, mas ainda insone, regressa ao quarto.