Inclusão, para quem?
Por Paulo Ghiraldelli Jr Em: 09/06/2011, às 12H48
Paulo Guiraldelli Jr.
“Chegando ao Planeta SOFT-10, da Galáxia KIND-1, não foi necessário pousar nossa nave para que percebêssemos que a arquitetura das cidades da civilização ali instalada tinha alguma semelhança com a nossa. Todavia, quando pudemos percorrer as ruas das várias cidades em que fomos acolhidos – aliás, bem acolhidos –, então deparamo-nos com alguns elementos significativamente diferentes dos da nossa Terra. Raramente as habitações possuíam portas, e as que realmente delas necessitavam eram nutridas com as de abertura automática, sem qualquer maçaneta. O desenho de uma maçaneta, quando apresentado ao habitante de SOFT-10, não foi reconhecido como sendo uma peça de uma porta, aliás, nem foi associado a nada com que tivesse qualquer utilidade. Um mundo sem maçanetas! Incrível.” (23/08/2025, Diário de Bordo do Capitão Pablo Smith, da Nave Interestelar Americana Snoopy-1).
Foi somente a partir de 2025, quando esse diário do Capitão Pablo Smith se tornou popular em nossas livrarias aqui na Terra, que pudemos formular o conceito, agora tão simples, que diz que ninguém pode ser declarado diferente, pertencente a uma minoria, senão quando levamos em conta que a individualidade não é algo atômico e natural.
A individualidade é a individualidade, mas ninguém nasce indivíduo. Nem mesmo num mundo – o dos países ricos do Atlântico Norte – em que a democracia liberal é hegemônica o nascimento de uma criança é o surgimento no mundo de um indivíduo. A individualidade pode estar posta no âmbito social há muito tempo e ser alguma coisa consagrada, já praticamente naturalizada e, no entanto, ainda assim ela se desenvolverá em cada criança segundo um novo processo histórico. É nesse processo histórico que surgirão as diferenças e, então, também as diferenças que criarão características que poderão, talvez, colocar essas crianças, mais ou menos por volta da idade escolar, como aspirantes a pertencerem a minorias sócio-políticas. Os habitantes do Planeta SOFT-1 (fig. 1) nunca deixaram de conhecer e reconhecer minorias, mas não tiveram entre elas uma minoria semelhante às que tínhamos no passado terrestre, as com uma reivindicação específica, como aquela nossa minoria de “portadores de necessidades especiais” que, por não terem mãos em formas de garras, não se davam muito bem com nossas portas de outrora.
Indivíduos nunca são membros de minorias se forem tomados como átomos. Todo indivíduo que pertence a uma minoria possui algum desejo, alguma reivindicação, que compõe sua identidade e reclama não só por tolerância, mas por reconhecimento e, então, por valorização (Charles Taylor), se sua individualidade é vista por todos como uma construção histórica, uma interação dinâmica entre meio ambiente e corpo. Não existe corpo deficiente. Nem mesmo corpo “com necessidades especiais”. Talvez nem mesmo o corpo ou com diferenças étnicas ou com diferenças de gênero e assim por diante seja algo efetivamente existente se nosso conceito de individualidade for o de unidade atômica. O indivíduo é uma construção sócio-política e filosófica da história do Ocidente. Ele também é uma construção, em cada um de nós, a partir de nosso nascimento, de uma psicologia que está intimamente ligada à construção já estabelecida em nível social, histórico e filosófico. O romance de cada um de nós só é possível porque o gênero romance é um gênero de literatura que veio a existir e se fez popular.
Tudo isso já sabíamos mais ou menos, há muito. Mas foi um saber que ganhou a população somente quando o livro do Diário de Bordo do Capitão Pablo Smith (Manole & Bisnetos) ganhou o público.
Começamos então a imaginarmo-nos como passíveis de sermos redescritos, sendo vistos, a cada dia, como “versões melhores de nós mesmos” (Richard Rorty). Somos o presente daquilo que Rorty disse que seríamos, quando ele escreveu essa frase, ainda no finalzinho do século XX. Faz certo tempo isso. Mas só o compreendemos a partir de 2025. E somente agora, começamos a pensar nossas minorias segundo essa visão mais útil. Só agora começamos a perceber que cada um de nós que pode ainda ser chamado de X-Men não tem defeitos, têm é sorte. Peças que parecem faltar em nosso corpo só faltam se algo no meio ambiente, ou seja, em nosso Planeta que, enfim, é obra inteiramente quase nossa, aponta para a ausência delas. Mas, ser X-Men não é ter peças que faltam, é apenas ter outras peças que nem sempre o vizinho ao lado tem.
09/06/2035, Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor há muito aposentado