Imprecisões palimpsestas
Em: 04/04/2025, às 22H08

[G. Monteiro]
Escrever em tempos de (in)tensa polarização ideológica? Publicar poesias em demorada época de guerra cultural, de paixões partidárias em si? Nessa era, vale estender, de midiática desqualificação do outro e de crise identitária consequente, luzes reacendem o itinerário pessoano quando a busca do existir tece a própria existência. Afinal surge Ontologia do ser (Penalux, 2024), de João Luiz Rocha do Nascimento. Essa coletânea de poemas reage a um repertório social em que a vida é “organizada” por instituições, a ponto de o indivíduo ser recepcionado em tábula rasa. Os versos percorrem planos mentais de possibilidades sartreanas. Ou melhor, quando a essência não é um privilégio. A partir de então, o autor concebe o indivíduo escorregadio ao se atravessar bem. Logo no primeiro poema, Eu e os vários de mim, nos versos não sou eu e nem qualquer outro que poderia ter sido e que /ainda me habita tem-se a expressão com que se constrói todo o livro: o humano em crise existencial atraente, o outro de si: mais percurso do que verdade.
Lendo a obra desde o título, é flagrante, pois, a voltagem existencialista. Flagrante fluídico versos no vazio que se quer atingir. Noutros termos, a poesia, crônica deste tempo estruturalmente utópico, conflui verso e prosa frente à experiência superando qualquer verdade. Para tanto, estar-no-mundo jaz na imaginação criadora, em incursões filosóficas em crise, a exemplo do poema Borges: não há nada que é ou que será / que [eu] já não tenha sido / agora sei do outro [que é] o mesmo / ser Borges duplo de si mesmo. A propósito, J.L. Rocha do Nascimento, um leitor do referido poeta argentino, projeta na alteridade a marca dominante em Ontologia do ser. O duplo de si mesmo e então o humano atravessa o espaço-tempo e convive com o impreenchível. Desse modo, o sujeito conhece a angústia inspiradora, esta liberdade de se experimentar, gestando simplesmente, este além da dor a romper a fronteira da solidão. Dessa sorte, longe dos ditames da lógica, a condição da existência tem morada na especulativa linguagem poética. O eu rentável de não o ser é codificado na feliz estreia do autor neste livro solo de poesia. Para citar um dos quarenta poemas, Rota de fuga – como os demais – nos escapa e nos reside porquanto: Escrevo pra chegar perto de mim. / Nem sempre consigo. / Às vezes, quando acho que estou perto, escapo entrelinhas.
Assim como Albert Camus, Dostoievsky e Simone de Beauvoir, para mencionar alguns dos mais festejados, João Luiz também se introduz entre os pensadores / literários inclinados à tônica existencial. Quanto ao poeta, o exame filosófico aventura-se na transcendência-ambiguidade humana. Difícil direcioná-lo a este ou àquele autor. Mas afinal, quais as perguntas fundamentais da filosofia? No poema Tudo outra vez nunca mais lê-se vários de mim foram, outros vieram., e eis uma amostra do que a falta de resposta pode alimentar. Assim, sem linguagem empolada, Ontologia do ser transfere os clichês de quem eu sou para a consciência da oscilação, das fontes controversas, visto toda tese revelar-se irrisória a Rilke, porque posterior e secundária. Ora, o poeta atravessa o monoteísmo, o ateísmo, o absurdismo e todos os ismos ao sentir o sentido da vida no esforço de viver a busca desse sentido. Veja-se em Angústia heideggeriana o não limite entre o que não é e o que não é mais. Veja-se em Da passagem do tempo: quando um dualismo metafísico me assombra e provoca sobressaltos entre Heráclito e Parmênides. Veja-se, de ponta a ponta da obra, o adâmico paradoxismo humano, já que nos move o abismo entre a verdade de cada época e as perguntas fundamentais das filosofia:
Mar, sereno mar, deixa eu te revelar o meu segredo:
Eu que não sou o único grão dessa infinita areia, me vejo
antepassado e para além de ti.
(Elegia)
Mas então fazer versos em tempos de ultraprocessadas soluções? Escrever arredio a toda sorte de provérbios em sistemas digitais? João Luiz Rocha do Nascimento, autor de cinco livros de contos também comprometidos com a interioridade, publica Ontologia do ser, livro sem medo e sem arrogância de não se situar em protagonismos sazonais. Ao largo de meras distrações das massas, há a estetização da coautoria de si mesmo, o que desaponta a procura por consumo rápido. Como dito, o autor se revela cambiante quanto a influências. Esse aspecto lhe rende o caráter universal; salvo de fáceis delineações bibliográficas (o homem específico e vário, o rio de Heráclito). Sua gramática, com achados aparentemente cristalizados, não abriga processos mentais de simples identificação. A esse respeito, a contrariedade e o estranhamento de páginas com procedimentos verbais moderados e não menos ambíguos. João Luiz Rocha secundariza os requintes e concentra o punho nos braços de Scheherazade. Em todos os quesitos, a lavra dos quarenta poemas convidam o leitor à autolibertação em toda sua espontânea complexidade. A alteridade do ser existencial que me habita não ofusca o palmilhar da formação da alma. Ao contrário, convida o leitor a viver o palmilhar – o sentido da vida na Balada do inatingível cam(r)inho.
G. Monteiro é autor, entre outros, de Paradeiro.