Cunha e Silva Filho

 

                          Uma vez escrevi um artigo no qual falava da maneira como lia um jornal, por onde começava, por onde terminava, o que lia no meio do jornal, essas coisas que ninguém sabe ou pode explicar direito, pois o cronista pode inventar modos de ler ou de escrever ou de até inventar autores e obras assim como dizem que o escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) fazia com a sua literatura. No fundo, talvez, tudo não passe de uma questão de gosto, de preferências ainda que muitas vezes anárquicas, volúveis, infiéis, passageiras ou contínuas (por quê não?).
                         Contudo, aqui não pretendo me limitar ao exemplo do jornal que, aliás, leio mais do que revista. Dizem os grandes escritores que, invariavelmente todas as manhãs, leem os jornais, não um jornal, já que um só não lhes satisfaz a sede das notícias ou das mesmas notícias escritas de forma diferente e com propósitos também diferentes que tanto gosto fazem, sobretudo pelos editoriais, aos analistas do discurso.
                        Recorramos, agora, a algumas passagens da memória de leituras de jornais, não lhes fazendo a síntese, o que me é quase impossível dados o tempo longo decorrido e os temas variados e por vezes complexos com que os seus autores os abordavam. Forçando a memória, me lembro da Última Hora, que li muito nos anos setenta, aproveitando as viagens de ônibus em direção a uma escola estadual muito distante. 
                       De duas colunas gostava, a de Afrânio Coutinho (1911-2000) que, em geral, falava de literatura, teoria literária, educação e com frequência tinha uma palavra de defesa pela melhoria do ensino no país, por melhores salários do professor em todos os níveis, e a de uma senhora - a Sandra Cavalcanti - que para mim escrevia com muito brilho, não entrando nesse juízo na questão das matérias tratadas nas suas crônicas Muita gente falava mal dela associando-a a um fato ou boato que, por algum tempo, causava mal-estar na política carioca. Afirmavam seus adversários que tinha sido responsável por desaparecimentos de mendigos afogados no rio Guandu no tempo em que era governador da ex-estado da Guanabara, Carlos Lacerda (1914-1977). Nunca acreditei nisso nem acredito agora tampouco. Sandra Cavalcanti era uma exímia jornalista, de estilo claro, impecável, fluente, original e de leitura agradável. Está hoje bem esquecida. 
                   Carlos Heitor Cony era outro colunista de mão cheia, corajoso, principalmente durante o primeiro ano da ditadura militar, cujos artigos saídos, primeiro, no Correio da Manhã, foram, em 1979, reunidos em livros em duas partes, sob o título O ato e o fato, publicados pela Civilização Brasileira. Jornalista com uma capacidade de estilo de um ficcionista de amplos recursos literários. Mas, nele me agradava sobremaneira a coragem de discutir seus temas, sobretudo políticos. Gosto mais dele daquela época do que de hoje na sua mini-coluna na Folha de São Paulo.
                 Não posso esquecer de, mesmo em memórias desordenadas, das leituras que fiz do colunista Hélio Fernandes, na Tribuna da Imprensa, com seus longos e destemidos artigos atacando as ações dos governos militares. Que fôlego de grande jornalista me revelava ele como alguns outros da época que tanto se arriscaram em defesa da volta do país a um estado democrático. Onde estão agora os continuadores desses intrépidos jornalistas que tanta falta nos fazem, sendo um dos últimos o saudoso Fausto Wolf.(1940-2008)?
                 Do Jornal do Brasil, dos tempos áureos, me deliciava com os artigos de Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde – 1893-1983) tanto os de natureza política quanto de natureza literária. Que maneira singular de escrever! Parecia que, ao lermos um artigo dele, íamos aprendendo a escrever melhor em nosso próprio estilo de escrita.
                Outro, era o grande jornalista e também escritor Barbosa Lima Sobrinho (1897-2000), que me enchia de orgulho pela coragem e desassombro de suas posições, e aqui tão ousadas quanto as do crítico e pensador Tristão de Athayde. Outro mais eram os artigos fascinantes e independentes de Nelson Werneck Sodré, que lia sempre com o maior deleite. Este último, graças a Deus, ainda se encontra vivo. Do Jornal do Brasil, ou como era mais conhecidos pelos aficionados, do JB, acompanhava as crônicas de Carlos Drummond de Andrade, crônicas que me davam a forte impressão de que eram escritas por um escritor e poeta que estava atento a tudo o que interessava ao Brasil. 
                Ele era atualizadíssimo, tanto no que concerne a novas formas de linguajar, de comportamentos, de modos de vida moderna, por exemplo, dos jovens, quanto pela suas veementes críticas a erros e desacertos governamentais em várias questões que diziam respeito à defesa de nosso direitos de nação e de soberania da vontade popular. Apontava os erros e propunha sugestões de como solucioná-los. Drummond, que agora, completará 112 anos de seu nascimento, será o autor homenageado na décima edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). 
               Ainda no JB, Caderno Ideias, não esqueço os inúmeros artigos do jovem ensaísta, crítico, historiador e pensador José Guilherme Merquior (1941-1990), um dos mais preparados ensaístas que o país já teve em todos os tempos, com obras que ultrapassaram as fronteiras nacionais, posto que, em seu país, fosse alvo de crítica em virtude de suas posições de liberal social ou por ter seu nome associado à função de assessor de Leitão de Abreu, (1913-1992), que foi ministro da Casa Civil do presidente Médici (1905-1985). Merquior, depois, passou a escrever uma coluna no Globo, chamada, se não me engano, O mundo das ideias, sempre escrita com aquele mesmo vigor, erudição e independência intelectual.
               Anos atrás, também era assíduo leitor do Jornal de Letras, dos irmãos Condé. Ia logo para a coluna de Assis Brasil, sobre Literatura brasileira hoje, que li enquanto durou..
Outra época tinha a mania de ler um jornal americano publicado no Rio e talvez em São Paulo, não sei ao certo. Chamava-se Latin American Daily News, onde, numa coluna, escrevia com muita verve um talentoso jornalista americano, Art Buchwald (1925-2007).
Por muitos anos, li também uma revista americana de orientação evangélica, de título The Plain Truth,do editor Pastor Louis Armstrong, há muito falecido, mas confesso que, embora algumas matérias fossem culturais e não rigorosamente religiosas, eu a lia para treinar a minha compreensão escrita em inglês.
             No Piauí, durante um largo tempo, li muito o jornal Estado do Piauí (Teresina), de Josípio Lustosa, onde meu pai escreveu por muitos anos com aquela sua pena fluente, límpida, correta e, com o já salientei em vários momentos, com uma independência e uma coragem sem precedentes na historia do jornalismo piauiense. Com ele aprendi muito, principalmente não ser hermético nem escrever com frieza de objetividade. Com ele aprendi também a valorizar mais os estudos históricos, sociológicos, culturais e o amor à democracia, à liberdade de pensamento, o horror às injustiças e o respeito à dignidade humana.
             Quanto a leitura de livros, sou daqueles que leio mais de um livro ao mesmo tempo. Ainda que seja uma ou duas páginas, vou lendo, ora um, ora outro. Gosto de combinar a leitura de ficção, com a de ensaio. Às vezes, deixo o que estava lendo pra depois. Pego outro livro, e mais outro, e mais outro. No fim, sinto-me perdido e um pouco amargurado de não poder concluir logo a leitura de todos os que, por grupo, escolhera para leitura. O diabo é que ainda tenho que escrever os meus próprios textos, fazer uma tradução, ler artigos em blogs, comentar, quando possível, um artigo ou uma crônica, ou um ensaio que me chamaram a atenção. Tenho um horário de leituras e estudos a que nem sempre obedeço. Há sempre uma novidade que aparece para atrapalhar minha programação.
             A leitura é o maior combustível de quem escreve. É um hábito contínuo, persistente, sem retorno.É um bem à mente e ao corpo. Um forma de dar sentido e direção à brevidade da vida.