Ideais encadernadas

[Marcello Rollemberg]

 

A discussão já ficou até chata: o livro em seu formato papel desaparecerá, dando lugar apenas ao livro eletrônico? Mais do que um debate clichê nesses tempos tecnológicos, o blábláblá sobre o (possível) fim do livro em papel acaba servindo, na verdade, para realçar cada vez mais sua importância cultural e social. Não se perde tempo discutindo irrelevâncias. E o livro em papel, com suas ideias encadernadas, é um bem cultural da humanidade há séculos. E possibilita uma série de leituras – com o perdão do trocadilho – que vão muito além do que suas páginas registram e querem dizer. E afinal, dizem. E é justamente esse o caminho que o historiador e bibliotecário francês Michel Melot percorre com seu importante Livro, que será lançado pela Ateliê Editorial durante o Simpósio Internacional Livros e Universidades, que a Edusp organiza esta semana (entre os dias 5 e 8 de novembro) para comemorar seus 50 anos de fundação.
 
E o título é realmente essa simplicidade lacônica apresentada acima: a palavra e uma vírgula. Um título simples, mais eivado de significados, uma obra aberta para inúmeras considerações e vários entendimentos. Porque é exatamente isso o que o livro permite e o que Melot deseja demonstrar. “Um caleidoscópio de tipos que acenam para o significado laico, senão, coloquial do livro nas sociedades contemporâneas. Dessacralização do objeto, cujo longo percurso se apresenta como tema central de Livro, este belíssimo ensaio de Michel Melot”, afirma a professora da ECA e estudiosa da história do livro Marisa Midori Deaecto, que assina o prefácio à edição brasileira da obra.
 
É esse mundo “dessacralizado” que Melot apresenta ao longo dos nove capítulos de seu trabalho, abordando temas que vão desde os primórdios dos códices até essa contemporaneidade bipolar, passando por assuntos que ganham subtítulos instigantes: “Livro de Culto ou Culto do Livro?”, “O Editor, o Autor, o Livro: uma Nova Trindade”, “A Dialética da Dobra”, “O Espírito da Letra”, por exemplo. Nada escapa ao olhar atento de Melot nem à sua escrita refinada e, ao mesmo tempo, provocativa. Nem um improvável – mas não impossível, como prova o autor – traço erótico que o livro objeto pode ter. Este trabalho do pesquisador francês talvez seja o paroxismo daquilo que seu colega do outro lado do Canal da Mancha, Holbrook Jackson, quis dizer ao escrever sobre os cinco sentidos que o livro instiga, em seu clássico Anatomy of Bibliomania. Os livros inspiram sentidos os mais diversos – seja o cheiro que exala de suas páginas, seja a textura de uma encadernação, a beleza pictórica de uma capa. E, como foi abordado há pouco, esse lado erótico ou erotizante que o livro pode apresentar, mesmo que não haja a intencionalidade. Esse aspecto é realçado graças a um trabalho fotográfico de primeira linha elaborado por Nicolas Taffin, que estabelece um feliz e inusitado diálogo com o texto de Melot.
 
“Entre Duas Capas” – Para elaborar os tópicos de seu longo ensaio, Melot apresenta uma definição de livro tão simples quanto o título de seu trabalho: livro, para ele, é “aquele que reside entre duas capas”. Mas que não se engane o leitor mais apressado. Nem com o título, nem com a definição. Simplicidade assim guarda um universo de explicações, muitos caminhos e uma erudição que não tem tonalidade de arrogância intelectual nem de hermetismo. Pelo contrário.
 
O trabalho de Melot é, antes de mais nada, um convite à leitura prazerosa, a um passeio pela história do livro e da leitura, a uma discussão saborosa acerca do que o livro representa para a sociedade, tanto como objeto quanto como fiel depositário de ideias (boas ou não) encadernadas. O livro e todas suas nuances, mesmo aquelas que têm uma tela de cristal líquido ou LCD como anteparo. Como afirma Régis Debray no prefácio à edição francesa do volume: “O que degrada redime (a matéria). O que murcha assegura (os limites). O livro também brinca de quem-perde-ganha”. E toda a tese de Melot acaba por residir em uma obviedade que os arautos da tecnologia se recusam a ver: o livro, todas as suas variáveis e todas as suas encarnações (ou seriam “encadernações”?) chegaram até aqui, ao século 21, e continuam a fustigar corações e mentes. O livro permanece, o homem – seu autor -, não. Pelo menos não no corpo físico. É como afirma Michel Melot, de uma forma tão irrefutável quanto sintética de suas ideias: “O livro é um indicador da condição humana. Como nós, é completo quando está sozinho, é incompleto diante dos outros. A força do livro é que ele sobrevive a nós e tem, como nossa vida, um fim. O leitor deve curvar-se a ele. Escrevi o que eu queria escrever. Que me sigam, ou não, este livro já terá cumprido seu percurso. Mas você não chegou ao fim com o livro”.