Carta de D. fr. Manuel da Cruz ao rei de Portugal
Carta de D. fr. Manuel da Cruz ao rei de Portugal

Reginaldo Miranda[1]

 

Sobre a velha pendência nas divisas entre o Piauí e Ceará é importante esclarecer que o Estado do Piauí sempre respeitou as divisas com os seus vizinhos, às vezes perdendo áreas para eles por fruto de injunções políticas. É o caso da região de Alto Parnaíba e Tasso Fragoso, que foram colonizadas por piauienses e desmembradas do antigo termo de Parnaguá. Depois, passaram ao Maranhão porque cartas geográficas apontaram nascente diversa para o rio Parnaíba, embora as duas maiores lá existentes sejam das mesmas proporções. Desde os primórdios convencionou-se que a divisa entre as duas capitanias/províncias deveria ter marco natural, ou seja, o rio Parnaíba. Ainda assim perde também o Piauí na foz, ficando três das cinco bocas do delta parnaibano para aquele vizinho.

Da mesma forma, teve a antiga província do Piauí de ceder parte de seu território ao Ceará: a importante vila de Principe Imperial, hoje cidade de Crateús com outros municípios desmembrados, para reaver áreas invadidas na faixa litorânea. Tudo isso foi feito sem que se alegasse “direitos culturais e de pertencimento da população”. Ninguém ouviu a população que era “guardiã daquele território” e nele habitava desde a colonização, “por diversas gerações”.

Mesmo depois dessa permuta, permanece o Estado do Ceará ocupando indevidamente extensa área territorial pertencente ao Estado do Piauí, na Serra de Ibiapaba. Terra que é do Piauí por direito. Determina o decreto n.º 3.012, de 22 de outubro de 1880, que altera a linha divisória das Províncias do Ceará o do Piauhy”, o seguinte:

Art. 1º É annexado à Provincia do Ceará o território da comarca do Principe Imperial, da Provincia do Piauhy, servindo de linha divisória das duas províncias a Serra Grande ou da Ibiapaba, sem outra interrupção além da do rio Puty, no ponto do Boqueirão, e pertencendo à Província do Piauhy todas as vertentes occidentaes da mesma serra, nesta parte, e à do Ceará as orientaes”.(grifo nosso)

Essa linha divisória entre as duas antigas províncias está tão clara quanto a luz do sol ao pino do meio-dia. Não cabe dizer-se em sã consciência que esse decreto se circunscreve apenas aos limites dos dois municípios: Príncipe Imperial e Amarração. Não. Na verdade, determina a “linha divisória das duas províncias”. Não existe dúvida na exegese desse dispositivo legal. Aliás, é somente nesses dois municípios, em decorrência da permuta, que a divisa não é o divisor de águas. No mais, “sem outra interrupção”, fique claro, é “a Serra Grande ou da Ibiapaba”“pertencendo à Província do Piauhy todas as vertentes occidentaes da mesma serra, nesta parte, e à do Ceará as orientaes”. É, pois, um texto de fácil dicção, sem necessidade de forçar a mente em malabarismos hermenêuticos. Não se pode e nem se deve falsear a verdade. Assim, quanto ao aspecto legal não há o que discutir, o território de inclinação ocidental de Ibiapaba pertence ao Estado do Piauí.

Outra arguição dos cearenses é a questão histórica, de ocupação territorial. No entanto, nesse aspecto não lhes assiste melhor sorte. Desde o recuado ano de 1739, o venerando Bispo D. Fr. Manuel da Cruz, de imperecível memória, protestava contra a invasão de seu Bispado pelos padres do Ceará. Diante de tanto incômodo foi ele encarregado por el rei para emitir parecer sobre as delimitações dos confins de sua Diocese, com individuação, clareza e fundamentos. Em 1745, para desincumbir-se dessa missão assim se pronunciou:

“É certo, que os limites dos bispados do estado do Brasil, e Maranhão se não podem fazer, senão pelas balizas naturais de montes, ou rios, e suas vertentes pela grande extensão de terras, e muitas ainda incultas, ficando sendo moralmente impossíveis por este respeito as divisões por marcos, linhas, ou rumos; o que suposto, está esse bispado dividido dos bispados de Pernambuco, e Pará, com quem confina pelos limites, de que está de posse sem ser necessário acrescentar, nem diminuir coisa alguma na forma seguinte:”(grifo nosso)

Note-se que o grande Bispo do Norte, declarou que já estava “de posse [daquelas terras] sem ser necessário acrescentar, nem diminuir coisa alguma na forma seguinte:

‘Parte este bispado pela parte do sul com o bispado de Pernambuco, e lhe serve de divisa a serra da Ibiapaba, águas vertentes à Parnaíba, que corre para o Maranhão, para este bispado, e águas vertentes ao Acaracu, e Camocim para Pernambuco. (grifo nosso)

Para esclarecer, desde 27 de fevereiro de 1725, com a edição da Bula Inscrutabili Caelestis Patris do Papa Bento XIII, foi a comarca/capitania do Piauí desanexada do Bispado de Olinda e anexada ao do Maranhão, conservando os limites estabelecidos em 1718, quando foi criada a capitania do Piauhy e, mais remotamente, os de criação da freguesia da Vitória, instalada em 2 de março de 1697.

Então, segundo o testemunho daquele Bispo, desde aquelas datas a divisa de seu Bispado com o de Pernambuco foi a cumeada da serra de Ibiapaba, de ponta a ponta, sem exceção, de cujo território “está de posse sem ser necessário acrescentar, nem diminuir coisa alguma”. Então, é falso dizer-se que o Piauí nunca teve posse dessa banda ocidental da serra de Ibiapaba. O Bispo afirmou ao rei, via conselho ultramarino, que detinha essa posse, de que estava sendo molestado.

É importante ressaltar, que as divisas indicadas pelo Bispo em 1745, são as mesmas colhidas pelo decreto ainda vigente de 22 de outubro de 1880, com exceção das áreas grosseiramente permutadas. Portanto, existe uma lei em vigor que sustenta a posição do Piauí, sendo injusta a ocupação da parte ocidental daquela serra pelo Ceará. Mais, o decreto vigente está ancorado na lei que dividiu os dois Bispados, tendo raiz nos séculos XVI e XVII. Dessa forma, pode-se concluir que a banda ocidental da serra de Ibiapaba pertence histórica e legalmente ao Piauí, sendo injusta, precária e clandestina a posse exercida pelo Ceará. É hora, pois, de corrigir esse equívoco. Justiça neles!

 

  

 


[1] REGINALDO MIRANDA, advogado e escritor. Representa a OAB-PI na composição da Comissão de Estudos Territoriais do Estado do Piauí – CETE. É membro da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. Contato: e-mail: [email protected]