Humberto de Campos - Memórias inacabas
Por Rogel Samuel Em: 27/10/2011, às 17H12
Memórias Inacabadas
(Obra póstuma)
I
NO LIMIAR DO SÉCULO
QUANDO o século XX amanheceu, encontrou-me perfeitamente identificado com a vida comercial, e contente com ela. O trabalho tornara-se, para mim, não uma obrigação, mas um prazer; não um sacrifício, mas uma alegria. Todas as minhas horas pertenciam ao homem generoso que me dera o pão e o agasalho, e, mais que o agasalho e o pão, um tratamento paternal. Meu estômago era grato à sua mesa, e minha cabeça ao seu teto. Mais profundo era, porém, à sua bondade severa, e sempre igual, o reconhecimento do meu coração de órfão, que já se havia acostumado, quase, ao escárneo e ao desprezo. Dedicava-me aos seus interesses como se eles fossem os do meu pai. E sentia-me crescer, com isso, cada dia, na sua confiança e na sua estima.
Eu já disse, creio, na primeira parte desta obra, que um dos segredos da minha ascensão na vida é a perseverança. Tenho desejos de subir, mas não gosto de mudar de escada. Arbusto de raízes sôfregas, abro os braços, e floresço, e frutifico, onde me plantam. Na selva ou num horto, não invejo o terreno em que se erguem as outras, contentando-me com aquele que o Destino me deu, e do qual tiro para levantar a fronte acima do meu bosque, toda a seiva que posso. Daí, a situação vantajosa que me cabia, dentro em pouco, no círculo estreito daquela casa de comércio. Não tendo conhecimentos na cidade, não saía, jamais, senão para ir à Biblioteca Pública. Aos domingos, “seu” Zé costumava abancar-se à sua mesa de jantar, depois do ajantarado, e entregar-se à extração de contas ou à feitura de despachos para a Alfândega. Uma tarde, perguntou-me se queria auxiliá-lo. Aceitei. E, daí em diante, enquanto os outros empregados passeavam de bonde pela cidade, eu me impunha ao seu apreço, entrando na intimidade dos negócios da casa.
Esse convívio enchia-me de esperanças. Comecei a alimentar sonhos de vitória, dentro das possibilidades da minha vida. Via-me sócio de José Dias de Matos e apontado, na praça, como um dos donos da mercearia. Fazia cálculos sobre a nova firma, da qual constaria o meu nome. E, tirando o lápis de trás da orelha, escrevia, seguidamente, em uma folha de papel de embrulho, que depois amarrotava e punha fora:
– Matos, Veras & Cia... Matos, Veras & Cia... Matos, Veras & Cia....
E puxava, por baixo, um rabisco elegante, que engrossava à proporção que se desenvolvia da direita para a esquerda.
De repente, ensombrava-me o espírito uma contrariedade. Osório Lima, então primeiro caixeiro da casa, começava a namorar a Mundica, filha da Emília, que “seu” Zé perfilhara. O Osório devia, portanto, após o casamento, entrar para a firma. E eu, intimamente, embora contrafeito, condescendia em dar-lhe sociedade. E passava a escrever:
– Matos, Lima & Veras... Matos, Lima & Veras... Matos, Lima & Veras...
Surgiu, entretanto, outra ideia. “Seu” Zé falava sempre em ir para Portugal, onde compraria uma quinta, na qual terminasse tranquilamente os seus dias, ao lado da Emília. Afastado da atividade comercial, passaria a sócio comanditário. Ficaríamos na casa o Osório e eu. Earquitetava a nova firma:
– Lima & Veras... Lima & Veras... Lima & Veras...
Ou, então, por melhor soante, comercialmente:
– Lima, Veras & Cia... Lima, Veras & Cia..., Lima, Veras & Cia...
Convém assinalar, talvez, aqui, o domínio absoluto que exercia, então, sobre mim, o espírito mercantil. Eu gostava de ler. Eu amava os livros e acentuara esse gosto na passagem pelas tipografias. Eles constituíam, todavia, para mim, um passatempo amável, um delicado recreio da imaginação. Não me passava, mesmo vagamente, pela ideia, tornar-me homem de letras. Nunca me ocorreu escrever um verso. Nunca pensei em uma frase bonita. O lugar que, no meu coração e no meu cérebro, devia ser ocupado, tiranicamente, mais tarde, pelos nomes de Homero e de Virgílio, de Heródoto e de Tácito, de Rabelais e de Dante, de Goethe e de Hugo, estava repleto de firmas comerciais: Lima, Ramalho & Cia., Cunha, Santos & Cia., Maia, Sobrinho & Cia., Jorge, Santos & Cia. Os varões insignes que eu havia conhecido na Galeria de homens célebres da antiguidade tinham se dissipado como sombras. Uma firma comercial dava tal expressão de força aos homens que a constituíam, que eles eram, aos meus olhos, como semideuses de nova espécie. É que eles representavam anos de trabalho, de esforço, de tenacidade, isto é, das virtudes cuja significação eu compreendia porque as havia tomado para base da minha prosperidade e da minha vida.
Os homens que nunca viveram no comércio não podem compreender, absolutamente, a mentalidade comercial. O comércio antigo constituía, sob o ponto de vista social, um mundo à parte, com a sua aristocracia e a sua moral, e um padrão especial para julgamento das virtudes e dos defeitos. O empregado de uma firma identificava-se de tal maneira com ela, que participava do orgulho dos chefes, no seio da classe. O auxiliar de uma grande casa exportadora ou importadora sentia tamanha vaidade da sua condição, que, despedido, não aceitava emprego senão em estabelecimento do mesmo gênero, e de equivalente prestígio na praça. Por isso mesmo, cada um procurava manter-se no lugar conquistado, sofrendo, embora, dos chefes, as mais terríveis humilhações. O patrão era quase um pai. E era preferível o castigo sofrido em família, ao desdém lá fora, diante dos companheiros. O empregado no comércio era, em suma, como essas senhoras que, no lar, apanham do marido, mas, nos passeios perante a sociedade, sentem profundo e secreto orgulho de serem portadoras do seu nome.
E eu, caixeiro de Dias de Matos & Cia., mercearia modesta, mas honrada, era animado pela mentalidade da minha classe. De passagem pela Praça Gonçalves Dias, rodeada de palmeiras, nunca levantei os olhos para contemplar o poeta, lá em cima. Nunca, porém, deixei de olhar uma casa de secos e molhados que havia quase à esquina, para, examinando-lhe o sortimento, e o letreiro das tabuletas, e a arrumação das mercadorias, estabelecer, com íntimo desvanecimento, confronto com as pilhas de latas de leite, de azeitonas, de marmelada, de ervilhas, de paio, de banha de porco, e com os caracteres góticos, feitos por mim, com alvaiade diluído, nas lousas de madeira da Casa Trasmontana.
Os grandes e opulentos príncipes italianos da Renascença tratavam com desdém um duque de Módena. E os vendeiros do Maranhão não eram mais, no meu julgamento, do que insignificantes duques de Módena, a que eu, caixeiro de confiança de Dias Matos & Cia., olhava superiormente, como um valido, prestigioso homem da corte, do doge de Veneza ou de Gênova.