HUMBERTO DE CAMPOS - MEMÓRIAS
Em: 06/10/2011, às 13H22
TIOS FRANKLIN E EMÍDIO
HUMBERTO DE CAMPOS - MEMÓRIAS
ERA um europeu do norte, no espírito e na figura, meu tio Franklin Veras. Estatura acima de mediana, forte, louro, esbelto, alvo e corado, olhos de azul que só vi em mulheres e crianças alemãs, era um belo tipo de homem. Usava apenas bigode e, quando o conheci, já o cabelo lhe alvejava nas têmporas. Vestia-se como quem tem visitado o mundo e apreciado as boas cousas que ele possui e se acham ao alcance do seu dinheiro. Ao chegarmos a Parnaíba, já o encontramos na posse de fortuna considerável, tendo casa montada não só ali, como em Tutóia e em São Luís. Seus filhos estudavam na Inglaterra. Eele próprio já havia feito algumas viagens de recreio pela América do Norte e pela Europa. Comerciante, com uma grande casa importadora e exportadora, a de maior movimento do Estado, levava, por esse tempo, vida de príncipe. Ecomo os recursos para os caprichos do coração e dos sentidos pouco lhe custavam, consagrava todos os instantes não tomados pelos negócios ao culto das mulheres, que considerava, parece, como todo homem de bom gosto, a mais perfeita obra da Criação.
ERA um europeu do norte, no espírito e na figura, meu tio Franklin Veras. Estatura acima de mediana, forte, louro, esbelto, alvo e corado, olhos de azul que só vi em mulheres e crianças alemãs, era um belo tipo de homem. Usava apenas bigode e, quando o conheci, já o cabelo lhe alvejava nas têmporas. Vestia-se como quem tem visitado o mundo e apreciado as boas cousas que ele possui e se acham ao alcance do seu dinheiro. Ao chegarmos a Parnaíba, já o encontramos na posse de fortuna considerável, tendo casa montada não só ali, como em Tutóia e em São Luís. Seus filhos estudavam na Inglaterra. Eele próprio já havia feito algumas viagens de recreio pela América do Norte e pela Europa. Comerciante, com uma grande casa importadora e exportadora, a de maior movimento do Estado, levava, por esse tempo, vida de príncipe. Ecomo os recursos para os caprichos do coração e dos sentidos pouco lhe custavam, consagrava todos os instantes não tomados pelos negócios ao culto das mulheres, que considerava, parece, como todo homem de bom gosto, a mais perfeita obra da Criação.
Tio Franklin, foi, na verdade, o mais completo expoente das virtudes elegantes, e dos defeitos invejáveis da família. Era o mais alegre, o mais viajado, o mais aristocrata, o de vida mais intensa, e, no exercício de uma assombrosa atividade comercial e mundana, o mais inteligente. Era de raciocínio pronto, que explodia em frase rápida e original, embora menos colorida que a do seu irmão Feliciano Veras. Certa vez, um juiz de Direito de Parnaíba, homem circunspecto e conservador, chamou-o à parte, para uma confidência.
– Coronel – disse –, venho pedir-lhe um conselho.
– Diga.
– Eu tenho na minha fazenda, do Buriti, uma rapariga nova e bonita, casada com um caboclo que foi para o Amazonas. Essa cabocla é minha comadre. Eu sou padrinho de um filho do casal. Mas, com a ausência do marido, a cabocla começou a atirar-se a mim, tornando-se uma verdadeira perseguição.
– E o Doutor, que fez? Ainda não aproveitou?
– Não, Coronel; até agora, não.
– Por quê?
– Por escrúpulos. Compreende, ela é minha comadre. O filho dela é meu afilhado.
– Ora, Doutor! – exclamou meu tio. – Que escrúpulos, nada! Diga-me uma cousa: o Doutor não se deita com a mãe dos seus filhos?
– Deito-me, sim.
– Então? Se o doutor pode deitar-se com a mãe dos seus filhos, por que não poderá fazer o mesmo com a mãe dos seus afilhados?
Casado na família Gomes Neves, com a irmã do seu cunhado Filipe Neves, marido da sua irmã Madalena, teve com essa primeira mulher dezoito filhos, dos quais se criaram cinco – uma menina e quatro rapazes, que se diplomaram, três em Direito e um em Engenharia. Enviuvou aos cinquenta e poucos anos, e contraiu novas núpcias com uma ilustre educadora maranhense, pertencente à família Parga Nina, de são Luís. Esta faleceu um ano depois, e ele casou pela terceira vez, com uma distinta senhora, viúva, de Parnaíba, nascendo-lhe ainda um filho, que conclui, agora, o curso de Medicina. Em luta, há muitos anos, com uma enfermidade que o levava constantemente à Europa e o trazia ao Rio, sucumbiu, afinal, em 1920, após mais de setenta anos de atividade vitoriosa, e de haver colhido na árvore da Vida, de mistura com alguns espinhos, todos os frutos bons que ela dá.
Tio Emídio, que foi o último a desaparecer, era, no físico, um tipo diverso. Baixo e gordo. Cabelos negros e ondeados. Trabalhador infatigável, como o irmão, não menos feliz nos empreendimentos. Comerciante, primeiro, em Miritiba, onde casou com a irmã mais velha de minha mãe, mudou-se, em seguida, para Curralinho, à margem do Parnaíba, e, finalmente, para a cidade deste nome. Aí aportou com cinco filhos. Nasceu-lhe mais um. Dedicando-se permanentemente ao comércio, experimentava, de vez em quando, corajosamente, as indústrias. Montou uma usina de beneficiar arroz. Levantou um grande engenho, que as águas do rio arrasaram numa noite de enchente. Mas não desanimou. Educou os filhos cuidadosamente, diplomando em escola superior aquele que se quis diplomar. Faleceu-lhe a mulher, boa e santa. Eele, obedecendo a um antigo impulso do seu temperamento, recolheu-se a uma das ilhas do delta, lavrando a terra em que nascera, rejuvenescendo, como Anteu, ao seu contato materno e prodigioso.
Falando ligeiro, alto e zangado, dava a impressão de um homem permanentemente irritado com a vida e com todo o mundo. Se pedia um copo d’água, achava-a quente e de gosto mau, mas bebia-a toda. À mesa, nenhum prato merecia louvor, mas comia de todos e depressa. Reclamava contra tudo, mesmo antes de saber como as cousas estavam feitas. Achava sempre que os outros chegavam atrasados, ainda que eles chegassem vinte minutos antes da hora prometida. No entanto, não havia, nessas trovoadas secas, o menor vestígio de cólera. Eu não sei de coração melhor que o seu. Era incapaz de fazer chorar uma criança. Seu coração era, enfim, uma colmeia do mel mais suave, que as abelhas fabricavam de bom grado, mas fazendo barulho.
Conta um antigo viajante dos altos sertões brasileiros ter visto, em uma tribo de índios, o maioral tomar um pedaço de madeira verde, raspar a casca, e dar um pouco desta, misturado a um resto de carne, ao cão que acompanhava o explorador; e logo o animal tombou se debatendo, envenenado, no tormento da morte. O índio aprofundou, porém, a incisão do pedaço de madeira, raspou o cerne, e introduziu-o na boca do cão. E de pronto os sintomas de envenenamento desapareceram, e o animal, momentos depois, restabelecido e alegre, ladrava festivo e contente.