Hora da tristeza sem volta

Ebe Lima* em homenagem póstuma ao escritor Bartolomeu Campos de Queirós - especial para Entretextos

 

 

 

 

Enquanto relia A cabeça bem-feita de Edgar Morin, vejo na tela do computador chegar uma nova mensagem, é uma amiga que faz seu doutorado em Belo Horizonte. Ela me dá a notícia da morte de Bartolomeu Campos de Queirós. São quase dez horas da manhã.  Meus olhos se enchem de lágrimas e fico por um momento em silêncio amargando a tristeza dessa hora, que passo a chamar de tristeza sem volta. Meu filho Pedro está comigo e também se entristece. O Bartô, como o chamamos, esteve conosco no seu aniversário de sete anos, ocasião em que desenhamos muitas borboletas e enfeitamos a casa toda com flores e amigos para recebê-lo.  Contudo, não foi o nosso primeiro encontro. Fui apresentada ao livro Mário, ainda na graduação e, desde aquela ocasião, mantive uma relação estreita de amizade com esse homem, que passou a representar, para mim, sinônimo de humanidades, assim mesmo no plural. Poderia levantar todo o percurso que conduziu minha vida a partir daquele encontro e  falar de como o encontro com a sua literatura passou a inaugurar em mim uma condição especial de leitora, e, por consequência, de mediadora, porque eu não me contentava em ler e levar sua prosa poética para meus alunos na educação infantil, depois, para os da graduação. Eu passei a desejar estudar mais e mais, porque via na sua obra um verdadeiro projeto estético e ético, que dava ressonância àquele propósito de construção de uma cidade justa, que eu ainda nem sabia existir na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen e na poesia de tantos outros grandes poetas.
Guiada por essa leitura, construí um espaço de pesquisa permanente sobre o conjunto de sua obra, orientada de forma direta pela professora Eliana Yunes e de forma indireta, mas igualmente importante pela professora Goiandira Ortiz. Esse estudo me levou ao Rio de Janeiro, à PUC, à UFRJ e à Biblioteca Nacional.  De lá voltei com o PROLER e com a Eliana Yunes, o Francisco Gregório, o Fernando Lébeis e o Bartolomeu nos idos de 1994. Aprendi com ele que a “beleza é aquilo que não damos conta de ver sozinho”. Então, se ele era o que eu entendia naquele momento e hoje como modelo de beleza que congrega a noção de justiça e bondade, eu queria trazê-lo para a minha Vila Boa de Goiás. E ele veio não só naquele ano, mas voltou em muitas outras oportunidades. Tornou-se um parente Por parte de pai e até prometeu que um dia viria fazer aqui sua morada, acho que porque Vila Boa guarda semelhanças com a Papagaios da sua infância.  
O casamento me levou para o Maranhão e foi de lá que recebi seu telefonema perguntando se eu gostaria que minha dissertação fosse publicada pela Editora Miguilim. Dez anos se passaram entre o mestrado e meu novo projeto de estudo, agora para o Doutorado. E, novamente, tomo sua obra como exemplo de literatura com a qual podemos construir um modelo de educação literária. Como forma de comprovação ou socialização daquilo que venho estudando na teoria, sua obra é lida e apreciada pelos meus filhos e filhas e pelas crianças e funcionários todos da Escola Letras de Alfenim, que no ano passado fez uma justa e bela homenagem a esse escritor, que sabe guardar o respeito necessário à infância como faixa etária e como condição de existência para alguns poucos como ele.
Defendi e defendo ainda hoje, que todos os meninos que habitam as narrativas poéticas de Bartolomeu guardam lembranças do menino que ele nunca deixou de ser e por exatamente dar conta de sua dimensão pessoal e particular, aponta para uma dimensão cósmica, universal. Sua narrativa nos acolhe a todos e todas porque dá notícias daquilo que nos aproxima enquanto seres humanos, marcados pelas mesmas dores e pelo mesmo desejo de busca da felicidade, mas não de uma felicidade individual e isolada, mas de uma felicidade coletiva, partilhada como alimento capaz de preencher nossa falta original.
Choro agora porque essa é uma tristeza sem volta. Mas a mesma dor que abre a ferida oferece também a possibilidade de cura. Essa possibilidade está na sua poesia, que nos salva do isolamento existencial  e que nos ensina que Até passarinho passa. O Bartô estará sempre conosco através do Pedro, do Mário, do Antônio e de todos os outros seus personagens que passam a fazer parte da família humana que nos une a todos, moços e velhos, brancos e negros, homens e mulheres, aqui e além. Estas foram as derradeiras palavras que ele me enviou em resposta a uma cesta de mangas “Sabina”:
 
“(...) querida. Tenho que lhe agradecer, muitas vezes, por tanto carinho. Mas ando sem palavras para dizer-me. Diante de tudo fiquei perplexo. Sei hoje, mais que nunca, que viver é um grande susto. E agora fiquei mudo. Já não ando aceitando aulas ou conferências, por não ter nada a dizer. Deveria ter agradecido sua matéria na revista Presente, que li e mais gostei. Emociona-me ver você debruçada sobre um texto tão insignificante como o meu e retirando dele uma reflexão tão bela. Recebi as mangas pelo correio. Devo declarar que fiquei surpreendido com a beleza do presente. Vou ter que fazer um ritual para bem apreciá-las. Chegaram lindas e fortes...” (Bartolomeu Campos de Queirós, em conversa com Ebe Lima).
 
 
Sua boca pode estar muda, mas suas palavras continuam ecoando dentro de nós, como diz meu filho, o Pedro, mas que também poderia ser o Mário: ele deve estar no céu contando histórias de homens e mulheres para aquele que inventou os homens e as mulheres.
 
 
[*Ebe Maria de Lima Siqueira é Professora de Literatura na Universidade Estadual de Goiás, na Escola Letras de Alfenim, na Cidade de Goiás/GO e doutoranda em Estudos Literários na UFG/Goiânia].
 

Nota: O texto acima foi enviado por e-mail:
De: ebelima Para: Rosidelma Fraga /Enviadas: Terça-feira, 17 de Janeiro de 2012 23:06.