0


 

O verdadeiro pintor, toda a sua vida, busca a pintura; o verdadeiro poeta, a poesia.  (Paul Valéry).

 

Neste texto discutem-se, teoricamente, as similitudes entre poesia e pintura, com foco na imagem visual e no efeito sinestésico da arte. Sabe-se que a relação entre o aspecto visual e o verbal foi bastante recorrente na Antiguidade e pode ser tão imprescindível na contemporaneidade e ser oferecido ao leitor como uma proposta interdisciplinar, intersemiótica e intertextual.

Desde Platão, o leitor tem percebido comparações entre poesia e pintura, assim como seu discípulo Aristóteles esboçou proposições entre tais artes. Observa-se no símile Ut pictura poesis (HORÁCIO, 1984), nos três caracteres peculiares da pintura, em primeiro lugar: a distância, a luz e o deleite. A pintura[1] e a poesia assemelham-se na criação de imagens que evocam o olhar, diferenciando-se apenas no seu objeto. Enquanto a poesia se ocupa da imagem pela exploração da palavra, a pintura utiliza-se de elementos: espaço, cor, linha, forma, nos quais se instauram o visual.

Neste foco de leitura, torna-se fundamental apontar a contribuição do estudo do crítico Aguinaldo José Gonçalves (1994) sobre a interpretação dos topos Ut Pictura Poesis na história da literatura e das artes.  A obra Laokoon Revisitado: Relações homológicas entre texto e imagem (1988) também se constitui como uma referência crucial para a reflexão proposta. Nela são investigadas poesia e pintura de Oswald de Andrade e Mondrian, Manuel Bandeira e Magritte, João Cabral de Melo Neto e Miró, cujos exemplos serviram de arquétipo analítico para se compreender a homologia entre pintura e poesia no que se refere à convergência entre a poesia de Manoel de Barros, a pintura de Paul Klee, Joan Miró e as aquarelas de Martha Barros[2]. Essas abordagens comparatistas entram para o panorama de convergências, assim como definiu Sandra Nitrini quando sugeriu a obra tal Aguinaldo José Gonçalves e, ainda do mesmo autor, Transição e permanência Miro/João Cabral: da tela ao texto. Em Literatura comparada (1997), Nitrini enfatiza que tais obras são fulcrais aos estudos dialogados e intersemióticos, conforme menciona a pesquisadora no capítulo “Um repertório dos anos 60 e 70 em busca de estratégias comparatistas”.

Gonçalves introduz sua obra, asseverando que “não há necessidade de se consultar nenhum tratado de estética comparada, para que seja possível perceber as relações mais imediatas entre as artes, em geral, e entre literatura e pintura, em particular” (GONÇALVES, 1994, p.18). Dessa homologia, a arte literária e arte pictórica se relacionam e cabe questionar por que há essa proximidade e, muitas vezes, o distanciamento com profunda figurativização e abstração, de tal modo que as duas artes, mesmo com objetos de trabalho diferenciados, são especificamente tão próximas ou irmãs na arte da expressão de imagem poética. E conforme ressaltou o crítico Gonçalves, abrem-se curiosidades quanto ao fato de poetas serem pintores-desenhistas e vice-versa e utilizarem-se dos dois códigos.

 No prefácio de Laokoon revisitado, o crítico João Alexandre Barbosa aponta que o estudioso pós-moderno não tem a plena convicção de que a poesia não seja apenas texto e a pintura não se reduza à representação de imagens. Entretanto, desde Simónides de Céos (Séc. IV-V a.C.), a pintura foi traduzida como uma “poesia muda e a poesia uma pintura falante”. Dessas homologias resultaram os debates de Lessing nos ensaios da obra Laocoonte: ou os limites da pintura e da poesia (1994), os quais são imprescindíveis no diálogo e apreensão das imagens dialogadas, uma vez que nesta obra Lessing buscou a união de todas as artes. Lessing revelou que a ideia homológica entre poesia e pintura pode soar tão evidente como também soar falso, pois a pintura se refere às artes plásticas em geral, ao passo que a poesia se trata das artes progressivas.

Baseando-se em Lessing, Gonçalves considera que, ainda hoje, há caminhos profícuos a serem investigados entre poesia e pintura, poesia e ilustrações, especialmente nos casos em que o poeta é pintor, desenhista e compõe o texto literário na associação dos dois códigos:

 

[...] o fato de poetas demonstrarem interesse mais específico pelo trabalho de certos pintores, o mesmo acontecendo com pintores em relação a certos poetas, é um caso que merece uma investigação mais profícua do que a que se desenvolveu até hoje pela estética comparada. Outro fenômeno que não é menos merecedor do interesse crítico nos casos de ilustrações das mais variadas naturezas, tanto naquele, mais comum, em que um artista plástico ilustra o texto literário, quanto em casos mais raros, em que o escritor é também pintor e compõe sua obra a partir da associação dos dois códigos (GONÇALVES, 1994, p.17; sem grifos no original).

 

Tendo a obra Teoria da literatura de René Wellek e A. Warren como foco, Gonçalves aponta, no capítulo “Poesia e pintura: conjunção retórica”, que para se pensar no método de homologia estrutural é essencial considerar as relações entre sistema plástico-pictórico e sistema poético. A equivalência interartística no mundo ocidental origina-se das especulações filosóficas e estéticas. Aristóteles sistematizou as correspondências entre poesia e pintura e essas duas artes foram amparadas no conceito de mimese literária. Poeticamente, muitas vezes, a imitação era passada no discurso como se a representação fosse um quadro ou uma pintura. A título de exemplo, enfatiza-se o capítulo “A cicatriz de Ulisses”, da obra Mimesis (1987), no qual Erich Auerbach salienta que esta analogia pictórica das cenas aproximava a literatura das artes plásticas e isso era possível pela dicção espacial. A cena do reconhecimento observada pela ama Euricléia passa pela tessitura de descrições, cujo ritmo lembra a plasticidade de um quadro. Para o autor, é a descrição do discurso poético-épico que permitia que o espectador encontrasse na obra a proximidade com a arte pictórica.

 Ao interpretar o texto de Auerbach e Horácio, na pesquisa O ut pictura poesis e as origens críticas da correspondência entre a literatura e a pintura na antiguidade clássica (2010, p.10), Sânderson Reginaldo de Mello elucida que nas obras de Homero, no que tange à tradição épica ocidental, havia uma carga de expressividade que permitia aos espectadores identificar Homero como poeta-pintor. Tal identificação ocasionava-se pelos detalhes de objetos e “o imaginário é despertado pela movimentada diegese e pela potencialidade visual do uso das palavras, que pretendem despertar a imagem mental do artefato” (MELLO, 2010, p.7).

A esse turno, o texto literário, por se ocupar da imagem-palavra em forma de elementos descritivos, pode estar tão próximo da pintura. Aristóteles também asseverou que a similitude entre pintura e poesia emanava dos vícios e das virtudes, sendo que tais caracteres eram colocados no plano das imitações. Poetas e pintores imitavam/copiavam os homens melhores ou piores por meio de palavras, traços e cores.

O que se vê na filosofia da arte pictórica e poética discutida por Platão é a natureza do falseamento entre elas:

 

Platão aponta um falseamento dos poetas, quando estes não são fieis aos acontecimentos históricos, pela não recuperação dos mesmos no tempo e no espaço, bem como pelo falseamento dos personagens postos à semelhança de deuses e heróis. Essa mesma concepção é também aplicada aos pintores, nas pinturas históricas, ou nas narrativas mitológicas, cujas imitações distanciam-se muito dos objetos e dos fatos que se pretendem contar (MELLO, 2010, p.225).

 

Em razão do falseamento assinalado na citação acima, pode-se assegurar que a pintura e a poesia, ao se utilizarem dos mesmos paradigmas de representação mimética, podiam acarretar divergências e interpretações equivocadas. A contraposição apontada por Platão no décimo livro da República levou-o a instituir três graus na coexistência entre pintura e poesia. São eles, o ontológico, o gnosiológico e o psicológico. O primeiro refere-se ao nível da atividade da mimesis, o segundo ao nível do conhecimento do artífice e o terceiro se trata do nível dos efeitos provocados no espectador.

Antes da expressão horaciana Ut Pictura Poesis, Platão (427-347 a.C) teorizou, nos livros II, III e X de sua República (1997), acerca da representação da arte pictográfica. Para ele, a poesia e a pintura fingiam na imitação da natureza e por esse caráter falsificador, ambas constituíam-se como empecilhos para o caminho da alma ao conhecimento da verdade.

A rigor, Platão via na pintura e na escrita a ancoragem da natureza divina e física, na qual o artífice traduziria o ideal supremo e, neste sentido, a pintura situaria no último grau de afastamento da verdade. O pintor estaria neste plano porque, conforme o filósofo, ele nada cria e logo o autor diz: “Deus criou a cama, o marceneiro a produziu no mundo e o pintor a copiou” (PLATÃO, 1997, p.323). Efetivamente, o poeta era um imitador de terceiro grau, devido a sua incapacidade de imitar as aparências em detrimento do mundo real.

Como se nota, a natureza da arte estava centrada no plano da imitação em grau de verdade e criação. Assim, Platão inferiu que alguns poetas, assim como os pintores e artífices, reproduziam a obra somente pela aparência das coisas representadas e não tinha conhecimento da sua própria imitação. Por conseguinte

 

[...] o poeta aplica a cada arte cores adequadas, com as suas palavras e frases, de tal modo que, sem ser competente senão para imitar, junto daqueles que, como ele, só veem as coisas segundo as palavras (...). Despojadas do seu colorido artístico creio eu, que figura fazem as obras dos poetas (PLATÃO, 1997, p. 328).

 

Sobre a obra dos poetas, similarmente à defesa de Platão, aponta-se que a poiesis se situa no âmbito da fruição e do prazer. Desta forma, lembra-se de Aristóteles, ao considerar a poesia como forma mimética e, por excelência, como conhecimento e deleite (fruição) ao ouvinte. E a imitação pictórica era vista no plano do ornamento das imagens e sobremaneira que era possível que o espectador viesse a se reconhecer na arte, formando o encontro entre o poeta e o ouvinte.

Na obra Elementos de uma semiótica pictórica o autor Louís Marin (1971) apresenta-nos a pintura como “um sistema aberto de leituras” e assegura que durante o processo de uma leitura a outra sempre haverá o percurso do olhar observador. Esse, sem dúvida, deve perseguir as articulações de sentido do pictórico. O significado da imagem visual somente será possível pelo discurso verbal sobre ela, posto que entre o código visual e o verbal há uma interdependência na articulação entre a linguagem plástica e o discurso produzido sobre tal arte, pois, a arte pictórica se veste de código-simbólico e a semiótica da pintura serve justamente para colocar em evidência a semântica iconográfica ou iconológica das imagens abstratas.

Desde a Antiguidade a arte passava pelo efeito estético e pressupunha um leitor apto a recebê-la, conforme dantes apontado. Aristóteles via que a contemplação da obra de arte visual somente era capaz de proporcionar o prazer ao espectador se o artista fosse capaz de reconhecer o objeto retratado. Na obra Teoria e metodologia literárias (1998), o crítico português Victor Manuel Aguiar e Silva esclarece que a expressão ut pictura poesis liga-se ao processo de recepção e não visa necessariamente à imbricação das artes:

 

A fórmula ut pictura poesis, [...] na Arte poética de Horácio, se limita a significar que alguns poemas são lidos com agrado uma só vez, mas que outros poemas podem ser lidos com agrado muitas vezes, como acontece com obras da pintura; que alguns poemas devem ser lidos e apreciados nas suas minudências, mas que outros ganham em serem apreciados no seu significado global, tal como acontece com obras de pintura (AGUIAR E SILVA, 1998, p. 164).

 

Nessa perspectiva, infere-se que a poesia e a pintura convergem-se no âmbito da recepção e/ou apreciação artística e não como o ato da poiesis propriamente dita como se estuda na Arte Poética, de Horácio. Ao estudioso dessas artes, deve-se interessar a recepção e significação da imagem no que concernem à fruição estética e à harmonia de linguagens que se utilizam de códigos diferentes, mas que se aproximam no panorama do pictórico, por isso a associação entre a poesia muda e pintura falante, herdeira de Simónides de Céos.

 


[1] Citando o capítulo “A sabedoria da arte”, de O óbvio e o obtuso (p.154), de Barthes, Aguinaldo Gonçalves elucida que “o poder demiurgo do pintor é o de fazer existir o material como matéria, mesmo se do sentido surge a tela, o lápis e a cor continuam a ser coisas, substâncias obstinadas, a que nada pode desfazer a obstinação de estar ali”.

[2] Uma das discussões que venho desenvolvendo em minha tese de doutoramento, mas não apontarei aqui, a fim de preservar a originalidade pretendida em minhas análises.

 

[Texto escrito por Rosidelma Fraga, para o Portal Entretextos. 16 de Abril de 2013].