Cunha e Silva Filho

           Muita gente está viajando para passar o “feriadão,” inclusive os políticos brasileiros que esvaziaram o Congresso a fim de emendarem o dia santo com festas juninas no Nordeste, sobretudo nas suntuosas quadrilhas de   Campina Grande, cidade paraibana. O sagrado torna-se profano e bota profano nisso.
           Pouca gente, suponho, estará meditando sobre o Messias, sobre o sentido do feriado no país mais católico do mundo. O que interessa a esses muitos viajantes é fugir para as delícias hedonísticas, do carpe diem dolcevitiano que o calendário brasileiro lhes propicia à farta.
          O corpo de Cristo em si, ficará para alguns religiosos e católicos mais chegados à celebração. Ou seja, restringir-se-á às igrejas e capelas, aos conventos, mosteiros e basílicas, ou aos lares católicos que preferem respeitar o dia santo indoors, em família, sozinhos, lendo as orações da liturgia católica, pensando profundamente nos mistérios espirituais. Longe do tumultuo das velhas capitais ou das metrópoles ou megalópoles.
        Ontem, na tevê, as luzes dos carros saindo dessas grandes cidades brasileiras – penso em São Paulo, Rio de Janeiro – constelavam a noite.  Carros se engarrafavam nas rodovias em direção ao sossego das cidades menores. Mas quem pensava no significado de Corpus Christi? Lá se iam indivíduos de diversas classes sociais antegozando outros prazeres mundanos, inclusive os da carne. O Messias não estava nos seus planos.
           Amam apenas o feriado, a diversão ou, como na filosofia de Platão, o ponto fulcral era o desejo de permanecerem nas sombras da caverna. Um professor de filosofia, em crônica recente, falava de tempos minguados de “transcendências,” esses da contemporaneidade de ponta cabeça, cúmplice universal dos desmandos, da impunidade, da violência, da falta de democracia genuína, do político no poder agindo, isto sim, de forma séria e comprometido com o bem-estar da sociedade.
          Nesse ínterim, em meio à  patuscada dos prazeres, ao frenesi dionisíaco, quem estaria pensando no símbolo da imagem de Cristo morto, imóvel, ensanguentado, com as cinco chagas? Ainda bem que, pelo menos, no Brasil e seguramente em outras partes do mundo cristão, se mantém, no calendário da Igreja, a realização da procissão de Corpus Christi, tanto na cidade grande, quanto nos pequenas cidades do interior do país.
       Bem me lembro das procissões de Corpus Christi a que assisti em Teresina na adolescência. Naquela, época, no entanto, não entendia bem de todo o seu simbolismo, de seu ritual, da caminhada da celebração religiosa por algumas ruas da capital. Tive aulas de catecismo, porém não concluí o período até à realização da primeira comunhão. Só sei que memorizei bem as orações básicas, o “Pai Nosso” e a “Ave Maria”, fazer o “O Sinal da Cruz,” mas não consegui memorizar o “Creio em Deus.” Até hoje, esta última oração ainda a rezo (os protestantes me corrigirão: “oro”) olhando no texto impresso.
        O mesmo ocorre com a linda oração, “Salve Rainha”, que não memorizei. Também nunca aprendi a rezar o terço nem acompanhar um missa em toda aquela parte de respostas dadas no seu desenrolar litúrgico. Sou meio gauche durante a missa, sobretudo quando chega a  vez de ajoelhar-se, sentar-se ou ficar em pé. Atrapalho-me todo.
         Entretanto, memorizei bem o "Pai Nosso" e "Ave Maria" em inglês, graças ao livro do Pe. Julio Albino Ferreira, An English method (em dois volumes num só tomo, 14 ed, Oporto: Costa Cabral, 1939, 408 p.), um grande autor didático português que se dedicou com afinco  à  língua inglesa, escrevendo para o ensino do inglês pelo menos quinze obras. Elogiadas em Portugal, na Inglaterra, na Europa, nos EUA e no Brasil.
       Essa edição, que eu trouxe de Teresina, pertencia a meu pai e ainda ostenta a bela assinatura dele tão nítida na minha lembrança. O “Salve Rainha”  que não decorei em português, tampouco pude aprender de cor em inglês, Gosto, no entanto, de ler, em voz alta, todas essas orações em inglês.
       Também acho muito bonitas essas orações em latim, que também não memorizei nessa língua, mas gosto de lê-las em voz alta. Percebo que tais orações, as lições do catecismo (no meu caso, ensinado pela professora Dona Eremita, que, além disso, me ajudou a aprender a ler em aulas particulares) são melhor aprendidas na infância ou adolescência.
       Retorno ao fio da meada em torno do dia de Corpus Christi. Pois é, no país, quando há dias santos, o povão, parte das classes médias, a burguesia e a elite, em suma, os que não professam nenhuma religião ou pertencem a outras, levam em consideração apenas o fato de que o dia santo é mais um feriado de lazer, de fuga ao trabalho, de divertimento, de vida prosaica, quando não de pândega. Para outros, dia de ganhar algum dinheiro em trabalhos extras, em bebedeiras, em passeios a shoppings de luxo.
      O feriado é um vale-tudo longe do Corpus Christi, das preces, do comedimento, do silêncio místico, do isolamento. É um dia de descanso hedonista, equivalente a qualquer fim-de-semana destinado a passeios variados, ou idas aos restaurantes, a churrascarias, a diversões pagãs. Poucos se lembram daquele Ser ungido, sofrido, torturado, morto e sepultado. “Pai nosso, que estais no céu, santificado seja o Vosso nome...” Corpus Christi. Amém!
     Depois do dia santo, lá vêm os carros, de volta, de novo a compor o turbilhão e a indiferença dos que estão acordados, todavia, nas sombras.