HISTÓRIAS DE ÉVORA - Capítulo XXVI
Por Elmar Carvalho Em: 20/10/2016, às 07H19
HISTÓRIAS DE ÉVORA
Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.
Capítulo XXVI
Amor sem esperança
Elmar Carvalho
Marcos aprendera a dizer versos de improviso. Adquirira essa habilidade, vendo, vez ou outra, os violeiros em seus repentes na feira livre, no lado externo do mercado público. Comprava, de vez em quando, alguns folhetos de literatura de cordel. Com o seu vocabulário bem acima da média, sobretudo levando-se em conta que ele ainda era adolescente, tinha certa facilidade para rimar e não se lhe podia negar ter algum talento para o improviso, cujo dom ele não levava muito a sério, e por isso quase não o exercitava.
Chegou mesmo, numa cantoria, na casa de uns conhecidos, no subúrbio, a participar de um “desafio”, com certo desembaraço, embora tenha reconhecido, no próprio repente, que o cantador adversário lhe era superior, o que nunca acontecia nos blefes e nos hiperbólicos autoelogios dos cantadores profissionais, que por vezes tinham rasgos “condoreiros”, como era o caso de Rogaciano Leite. Não mais teve coragem de enfrentar esse tipo de embate, e passou a nutrir profunda admiração e respeito por esses poetas populares.
Por simples brincadeira, Fabrício, Mário Cunha e outros amigos lhe propunham motes ou temas, para que improvisasse alguns versos rimados a título de glosa. Certa vez, quando passavam perto do Armazém Confiança, do senhor Abdias, Fabrício argumentou, para provocá-lo:
– Marcos, você já notou que nada muda nesta cidade, que é sempre a mesma rotina. Sempre o mesmo sempre velho e tedioso. Sempre o seu Abdias fica com essa amplificadora velha, fazendo as mesmas propagandas mequetrefes, dizendo sempre as mesmas coisas com a sua voz fanhosa...
Não perdeu Marcos a oportunidade de desovar mais um de seus repentes:
– Mudam as noites, e mudam os dias, só não muda a enfadonha voz do senhor Abdias.
Como Marcos tivesse falado alto, no momento em que a amplificadora silenciara, o comerciante ouviu o epigrama, e gritou ao microfone, enfurecido, de modo que todos ouvissem:
– Marcos, você agora virou um moleque, a fazer gaiatices e deboches? Vou contar a seu pai, que é um homem de bem, para ver se ele lhe ensina a respeitar os mais velhos. Você, um rapaz inteligente e estudioso, agora fica a fazer esses versos de pés quebrados e sem pés nem cabeça, a zombar dos outros!...
Os dois amigos trataram de se afastar logo do local, em passos apressados. Marcos passou a ser mais cuidadoso com os seus versos, para não ferir a suscetibilidade de ninguém. Seus pais sempre o advertiam para ter respeito para com os mais velhos, e não tripudiar sobre os defeitos físicos ou morais de quem quer que fosse. Afinal, todos somos humanos, todos temos os nossos defeitos e fraquezas, todos temos o nosso calcanhar de Aquiles e os nossos pés de barro.
Marcos gostava de ficar à tarde em um posto de combustível, perto da Praça da Rodoviária, para ver as normalistas passarem, na ida para a Escola Normal, ou quando retornavam. Eram jovens, cheias de graça, cheias de vida e de esperança, e tudo lhes sorria. A farda tinha saia azul e blusa branca. Isso lhe fazia lembrar a música de Nelson Gonçalves, verdadeiro poema da Velha Guarda, muito cantada nas serestas e nas libações: “Vestida de azul e branco / Trazendo um sorriso franco / No rostinho encantador...”
Algumas eram belas, de rosto e de corpo. E ele as olhava com encantamento e saudável cobiça. Algumas lhe retribuíam o olhar embevecido. Quase todas eram um pouco mais velhas que ele, e já tinham noivos ou namorados fixos. Uma delas, mais atrevida, encarava o seu olhar, e sorria. Tempos depois, através de Fabrício, Marcos fez amizade com um irmão dela. De vez em quando tomavam uns porres na casa desse rapaz.
A normalista incentivava Marcos a dizer os seus poemas. Elogiava-os com muito entusiasmo, sorrindo e batendo palmas. Disse-lhe, quando estavam a sós, que ele se parecia com famoso galã de telenovela, por quem as moças da época suspiravam. Era três anos mais velha que Marcos, o que, no albor da mocidade e na época preconceituosa de então, representava uma significativa diferença. Além do mais, era noiva de um acadêmico de Direito, de família abastada, que estudava na capital, com quem mantinha um namoro morno, insípido, formal, à vista de todos, fosse na sala da casa paterna ou na calçada que dava para a rua movimentada. O futuro bacharel era respeitoso; aliás, excessivamente respeitoso para o gosto da noiva, ardente em sua virgindade estoica.
Era um amor sem esperança, uma doce ilusão, fadada a se desfazer com o seu casamento. Após alguns tragos, quando Marcos já estava mais desinibido, a moça lhe pedia para recitar alguns versos de sua autoria. Ela o aplaudia com muita intensidade e com palavras de vívido entusiasmo, como só ela sabia fazer. Após algum tempo, o rapaz fingia ter sede, e pedia para essa boa e linda samaritana lhe dar o que beber.
Acompanhava-a até a cozinha, onde ficava a geladeira. Mas a sede do jovem não era de beber; estava sedento da taça dos lindos lábios da moça. A sós, lhe sussurrava Marcos ao ouvido os versos de Vespasiano Ramos, que decorara ao ler surrada antologia de sonetos de seu pai: “Sou perseguido pela sede insana / Do amor que anima e que nos faz sofrer: / Tenho sede demais, Samaritana / Tenho sede demais: quero beber!”
Ambos se beijavam e se abraçavam com sofreguidão, quase com loucura e desespero, como se os corpos abraçados e abrasados quisessem se trans/fundir um no outro. Ela mergulhava os seus olhos grandes, castanhos, apaixonados, prenhes de mistério e sortilégio, nos olhos verdes de Marcos, onde boiava tímida esperança, mesmo ante o naufrágio, que era certo.
Sabiam que o tempo seria muito curto, e logo teriam que retornar à sala. Sabiam que era um amor sem esperança, em face da idade de Marcos e do compromisso da moça. Era apenas uma doce ilusão, nada mais. Um frágil, furtivo e efêmero encantamento, que sequer podia se mostrar à luz do sol.