HISTÓRIAS DE ÉVORA - Capítulo XXII
Por Elmar Carvalho Em: 22/09/2016, às 06H05
HISTÓRIAS DE ÉVORA
Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.
Capítulo XXII
A serra encantada (I)
Elmar Carvalho
“Desde menino a visão da serra me fascinava. Vista de todos os pontos da cidade, parecia um debrum do céu, no sobretom de seu azul diferenciado. Nas manhãs friorentas de inverno, a Serra do Cachimbo parecia cachimbar as névoas pousadas em seu cume; daí o seu nome. Como disse um poeta louco, nostálgico daquele azul esfumaçado, nevoento:
Ao longe, nas manhãs de inverno,
a serra cachimbava suas névoas.
As névoas se misturavam com as nuvens
que rondavam sobre o cume.
Conforme o horário do dia, a serra mudava de cor, tomando as mais diferentes nuanças de azul, indo do mais escuro ao mais pálido, intercambiando a opala e a esmeralda quase azulada, em perfeito furta-cor. Ao por do sol, era um espetáculo de beleza e suave melancolia ver-se a serra refletida no Lago Galileia, que se transformava em imenso e mágico caleidoscópio, variável conforme as águas estivessem onduladas ou não.
Na primeira metade da década de sessenta, uns aviões esquisitos sobrevoaram Évora durante uma semana, seguindo em direção à serra. Os mais estranhos boatos e especulações surgiram. Uns diziam que uma guerra estava para estourar. Outros afirmavam que os estranhos objetos voadores eram americanos, dotados de modernos aparelhos, e estariam descobrindo e demarcando nossas jazidas de metais e de pedras preciosas, além de areia monazítica.
A revoada aeronáutica durou pouco tempo e logo os boatos cessaram. Mas para sempre me ficou essa lembrança. Não sei se a memória que guardo da forma desses aviões corresponde ou não à realidade. Muitos anos depois, à noite, quando parei minha motocicleta nas imediações da Serra do Cachimbo, vi umas luzes estranhas, no meio da escuridão, a cinquenta metros da estrada e a dez metros de altura. Mas aí já é outra história, que não desejo contar.
Muitas vezes, em minha infância, vi uns clarões na encosta da serra. Na vez primeira, um tanto assombrado e imerso em deslumbramento, perguntei a minha mãe sobre o que seria aquilo. Ela me respondeu que talvez fosse uma queimada de roça ou alguém procurando o tesouro escondido por jesuítas em fuga, há mais de dois séculos. Disse que muitos acreditavam que ela fosse uma cidade encantada; que quando o sortilégio fosse quebrado suas pedras e árvores se transformariam em casas, palácios, templos, carruagens, pessoas e bichos.
Contou-me algumas dessas lendas ou crendices do povo simples. Segundo diziam, em lugar esconso e quase inacessível, havia uma furna repleta de objetos de ouro e prata, como taças, cálices, lampadários, candelabros, ostensórios, rosários, pulseiras, colares e outras joias. Entretanto, quando um homem, dotado de invulgar coragem, tentou recolher esses objetos, foi atingido por forte vendaval, que rugia de forma assustadora no interior da gruta. Também ouviu gritos pavorosos, gemidos, imprecações medonhas, arrastar de correntes, uivos e esturros de animais ferozes. Quando ele conseguiu sair, viu que sua luta e coragem tinham sido em vão. As joias que conseguiu retirar se transformaram em cinza e poeira.
Guardei com muita nitidez uma dessas histórias, que muito me impressionou. Mais tarde, quando planejei escrever as minhas Histórias de Évora, obtive mais informações com os parentes e amigos do protagonista, e eis que a conto agora, algumas décadas depois, não sei se envolta em amálgama de ficção involuntária.
No final da década de cinquenta, o senhor João Galdino foi caçar na região da serra em companhia de uns amigos. Foram os quatro homens num Jeep Willys, do tipo cara alta. Cada um seguiu à procura de uma ‘espera’, já no final da tarde. Combinaram se encontrar no local onde ficou o carro, por volta das cinco da manhã. Todos retornaram, menos Galdino.
Às seis da manhã, seus companheiros começaram a ficar preocupados, temendo tivesse ele sofrido algum acidente, como queda da árvore, em meio a fatal cochilo, ou que teria sido atacado por algum animal selvagem. Até mesmo picada de cobra ou eventual ataque cardíaco não foram descartados.
Procuraram o companheiro num raio de três quilômetros, tocando fortes e estridentes apitos, mas sem nenhuma resposta por parte de João Galdino. Os caçadores contrataram os serviços de dois mateiros, residentes na região, para que continuassem as buscas no dia seguinte. Deram-lhes quase todo o dinheiro que conduziam, e prometeram pagar-lhes uma boa quantia pelo trabalho, sobretudo se o indigitado companheiro fosse encontrado, morto ou vivo.
Retornaram no final da tarde à cidade, para comunicar o fato ao prefeito, ao delegado de Polícia Civil, ao comandante da Companhia de Polícia Militar e aos seus familiares, para que novas buscas fossem empreendidas nos dias seguintes. Durante mais de uma semana foram feitas expedições à procura de João Galdino, mas sem a obtenção de nenhuma notícia sobre o seu paradeiro. Todos o deram como morto.
Três meses depois um homem desconhecido, de barba longa e esquálida, bateu à porta de sua família. Sua aparência denotava sujeira, e suas roupas estavam em frangalhos e encardidas. Trazia feridas e arranhões em certas partes do corpo, com certeza produzidos por pedras e espinhos.”