HISTÓRIAS DE ÉVORA - Capítulo IX
Por Elmar Carvalho Em: 09/06/2016, às 09H06
HISTÓRIAS DE ÉVORA
Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.
Capítulo IX
Caça e caçador
Elmar Carvalho
Após as explicações sobre a campanha de vacinação, Madalena, notando a timidez do rapaz, mas também percebendo o seu olhar embevecido e guloso ao mesmo tempo, sobretudo direcionado ao seu colo e ao seu rosto, com cautela e habilidade, caçou conversa. Perguntou-lhe se ele gostava de literatura, principalmente de ler poemas e romances, tendo ele lhe respondido afirmativamente.
Marcos lhe falou sobre suas produções e projetos literários. Acrescentou que publicava alguns contos, crônicas e poemas no jornal mural e no tipográfico; que já lera todos os livros da pequena biblioteca de seu pai, mas que este tomava livros emprestados de uma pessoa amiga e ele próprio recorria aos livros da biblioteca pública, cujo prazo máximo para devolução era de dez dias.
Percebendo a mulher que o jovem, embora a olhasse com admiração e desejo, jamais iria tomar qualquer iniciativa, por retraimento, receio ou respeito, pousou, muito de leve as suas mãos sobre as dele, que de imediato reagiu, entrelaçando nos seus os cálidos dedos de Madalena.
Num impulso, quase sem pensar, cego de paixão e desejo, o rapaz se levantou, contornou a mesa, e foi em direção à mulher, que também se levantara. Olhando-a profundamente nos olhos, segurou as suas têmporas, em seguida a enlaçou com suavidade, e colheu nos seus os carnudos lábios dela. Ela correspondeu, mas em seguida, com muita delicadeza, se afastou.
– Olhe, aqui não, cuidado, a empregada pode nos ver. Por favor, me acompanhe, venha conhecer a nossa biblioteca.
Foram para um amplo compartimento, onde se encontravam grandes e altas estantes de madeira, repletas de livros. Para não chamar a atenção da empregada, ela puxou a porta, mas a deixou entreaberta. Para a realidade da época, era uma grande biblioteca particular.
Em suas estantes se enfileiravam os volumes da Enciclopédia Britânica, do Tesouro da Juventude, dos Clássicos Jackson, da Biblioteca do Prêmio Nobel, das coleções Clássicos da Literatura Brasileira e Clássicos da Literatura Universal, todos em capa dura, com vinhetas, cercaduras e letras douradas, além de centenas de livros avulsos de poemas, contos, fábulas e romances.
O moço contemplava tudo isso com ternura, e uma quase beatitude, tal qual estivesse diante de um tesouro sagrado. Retirava alguns exemplares e os folheava com delicadeza, em verdadeira carícia. Chegou a roçar o nariz em alguns deles, como se os estivesse cheirando e beijando.
Com muita suavidade e cuidado, passou páginas e páginas da Poesia Completa de Manuel Bandeira, impressa em papel bíblia. Nada disso escapou aos olhares furtivos e periféricos de Madalena, que lhe franqueara escolhesse alguns livros, que só deveriam ser devolvidos quando ele concluísse a leitura, que deveria ser atenta e sem pressa. Ela imaginou a pele suave de seu rosto afagada por dedos tão hábeis e tão macios, conforme já pudera constatar, ainda que por instante demasiado fugaz.
Marcos escolheu dois romances e Poesias Escolhidas, de Castro Alves, edição comemorativa do centenário do poeta, obra publicada em 1947 pela Imprensa Nacional. Ela se aproximou dele. Fitou-o nos olhos, e emocionada e nervosa disse, com a voz embargada:
– Peço todo sigilo e que não pense mal de mim. Não sou uma leviana e nem doidivanas. Amo e respeito meu marido. Não sei o que deu em mim. Quando você voltar para devolver os livros, conversaremos novamente...
Marcos lhe fez discreta reverência e, sério, a fitou nos olhos, mas não tentou beijá-la ou afagá-la. Não era caçador, mas se fosse, jamais espantaria uma incauta e entontecida gazela.