HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos foram sendo escritos.

               Capítulo III

O APELO DO SEXO

 

Elmar Carvalho

 

Desde sempre e até muitos anos depois da adolescência de Marcos a maioria esmagadora das mulheres de Évora (e de outras cidades, sobretudo nordestinas) preservava a virgindade até o casamento. Algumas, quando confiavam no namorado e sob promessa de casório, abriam exceção. Quase sempre a promessa era cumprida, sob pena de escândalo e inimizade entre as famílias envolvidas. Como dizia o cantor Reginaldo Rossi, num de seus grandes sucessos da época, a pílula já existia, mas ninguém falava, e muito menos era usada pelas moças solteiras de então.

Desse modo, os jovens se iniciavam no sexo com as raparigas, como eram designadas as prostitutas. Algumas tinham foro de professoras, e várias gerações de “alunos” passaram pelo seu tirocínio pedagógico. Cada cidade tinha os seus bordéis, com seus nomes pitorescos e muitas vezes jocosos. Havia os de luxo, os caros, os populares e o chamado baixo meretrício; estes eram infestados por mulheres mais feias e mais velhas. Algumas das meretrizes eram “importadas” de outros estados, entre os quais Pernambuco e Bahia. Era raro, mas apareciam as estrangeiras, de preferência louras e de fala enrolada.

Os jovens, quase sempre sem emprego e sem dinheiro, passavam pelos cabarés, para espiar o movimento e os casais no salão, geralmente cheio de espelhos e envolto na penumbra de luzes negras. Às vezes, tinham recurso para tomar apenas duas ou três cervejas, enquanto ouviam os sucessos musicais do momento, sobretudo músicas românticas, recheadas de muita paixão, adultério, vingança e amores infelizes.

Das velhas vitrolas evolavam as vozes de Waldick Soriano, Roberto Muller, Evaldo Braga, José Ribeiro, Carmem Silva e outros astros da chamada música brega. Vez por outra um felizardo, metido a galã e conquistador, conseguia que alguma rapariga fosse com ele gratuitamente. Outros, mais sortudos ainda, tornavam-se gigolôs de madame (como era chamada a dona do brega) ou de alguma rameira de alta rotatividade.

Alguns mais afoitos, na ânsia incontida de apaziguar o sexo, iam para o quarto com alguma das mulheres, e somente após o coito declaravam não ter dinheiro. Era o chamado “passar o seixo”. Quase sempre as raparigas se revoltavam com o logro; faziam uso de palavrões e xingamentos, e algumas vezes lesionavam o caloteiro com giletes, navalhas ou facas, ou com unhadas e dentadas. Algumas ostentavam as cicatrizes e hematomas de eventuais revides.

Marcos já fazia planos de fazer sua estreia, principalmente desde o seu alumbramento, ao ver Neuza desnuda. Via com frequência as revistas proibidas, que seus colegas e amigos lhe exibiam. Conseguia algumas por empréstimo, e ficava com elas durante alguns dias, até que o proprietário lhe cobrava a devolução. Um amigo seu, filho de próspero comerciante, tinha o requinte de possuir um luxuoso almanaque pornográfico, em papel couchê e com fotos em policromia, recurso gráfico raro na época. Mas não o emprestava, e só deixava que outra pessoa o folheasse por poucos minutos, sob seu olhar atento e cuidadoso.

Seguindo o exemplo de seus colegas, gostava de observar as coxas das colegas do ginásio. Algumas, mais atrevidas, encurtavam as saias da farda, fora da vigilância materna. Outras, por displicência, malícia ou generosidade davam brecha, em que se podia flagrar pequena nesga triangular de calcinha, às vezes retesas, esticadas. Alguns seios mais volumosos pareciam querer voar da clausura do sutiã pelo decote da blusa. Mamilos mais aguçados espetavam os tecidos mais finos. Nada escapava aos olhares famintos e curiosos dos jovens que desabrochavam para o apelo do sexo, numa época em que ainda havia certo recato e o mistério, natural ou dissimulado, fazia parte da sedução e do fascínio.

Marcos Azevedo atingiu o ápice de notoriedade local quando escreveu a épica Ode à punheta, em que parodiava Vou-me embora pra Pasárgada, de Manuel Bandeira. Várias cópias mimeografadas do poema circularam na cidade, passadas de mão em mão. Alcançou o auge de sua glória quando o famoso boêmio e declamador Cazuza o recitou embriagado, em magnífica interpretação, ilustrada por esclarecedora mímica, no enorme “saloon” do Quartel General, ou simplesmente QG, um dos mais luxuosos lupanares da velha urbe, com sua voz grave, possante, levemente metálica e estentórica. A estrofe inicial retumbou no saguão lotado de fregueses assíduos e convidados especiais:

Vou-me embora pra Solitária,

Em Évora não sou Dom João.

Em Solitária sou rei, e terei

As mulheres que sempre desejei

No côncavo de minha mão.

Certo dia estava ele na sala de sua casa, enquanto sua mãe fazia alguns afazeres, quando chegou Suzana, uma garota da vizinhança, doente mental. Ela era mais ou menos de sua idade. Não era considerada bonita, mas tinha seios empinados e encantadores. Por mistério insondável tinha forte inclinação para o sexo, embora, nos demais aspectos, fosse ingênua e inocente como uma criança, já que a sua idade mental era bem menor que a real. Corriam rumores de que alguns meninos já tinham transado com ela e feito outras saliências.

No entanto, ela gostava de dar esmolas, rezar, frequentar a igreja e cantar músicas religiosas, com sua angelical voz e ar de beatitude. Insistia para que seus pais fizessem caridade; com eles visitava o abrigo dos velhinhos. Viria a morrer pouco tempo depois, aos dezessete anos, vítima de fulminante aneurisma. Ganhou fama de alma milagrosa e seu túmulo se tornou o mais visitado do velho cemitério de Évora.

As duas irmãs e os dois irmãos de Marcos haviam saído para o colégio, de modo que a garota puxou conversa com dona Rita. Logo após, o rapaz resolveu ir para o seu dormitório a fim de ler uma antologia de poemas brasileiros, que a Fename – MEC havia publicado. Na verdade ele já estava relendo alguns poemas dessa seleta, que conservaria para sempre.

Não demorou muito Suzana, aproveitando-se do fato de que dona Rita fora orientar Neuza sobre o preparo do almoço, entrou no quarto em que Marcos se encontrava. Entabulou rápida conversa, apenas para lhe atrair a atenção. Começou a se embalar. Em seguida, no sentido da largura da rede (e não do comprimento), entreabriu as grossas coxas, puxou o vestido para o busto, e curvou a cabeça e os seios para baixo, de modo a ressaltar o monte de Vênus, que já era naturalmente acentuado, vendo-se logo abaixo a concha de valvas bem cerradas.

Tirara a calcinha, e uma quase imperceptível e delicada penugem o recobria. Marcos, como se dizia na época, foi no outro mundo e voltou, mas tudo fez para se controlar. Como a moça notou que ele se mantinha distante, retraído, parecendo recear alguma coisa, com os dedos de ambas as mãos afastou os grandes lábios, e disse, com a voz embargada de desejo, sussurrante, vem, coloca teu pinto bem aqui, neste buraquinho.

Nesse curto instante, coisas demais passaram pela cabeça alucinada de Marcos. Recordou que Suzana era irmã de um amigo seu, grande craque de seu time. Lembrou os conselhos de seus pais, para que nunca agisse de forma precipitada e jamais fizesse coisas de que pudesse vir a se arrepender, que viessem a lhe pesar na consciência.

Vieram-lhe à mente certas lições do catecismo sobre pecado. Parecia ouvir as palavras severas do padre Alberto, ameaçando os pecadores com o infernal fogo eterno; castigo bem mais severo que a ofensa. Lúcifer, com as suas negras asas de morcego, com as suas garras longas e aduncas, parecia ter saído das ilustrações do livro de edificação religiosa e estar ali bem perto, a revoar. Pensou nas irmãs. Achou que se atendesse ao chamado de Suzana estaria se aproveitando de sua inocência de doente. Ela, no entanto, o instigou novamente. Vem, coloca teu negócio bem aqui... Tu vai ver como é bom. E acrescentou, talvez para forçá-lo a sair de sua indecisão: Parece que tu não é homem...

Chateado, constrangido e envergonhado, ele então lhe exibiu o membro, ereto, tinindo de teso, e pulsante. Você está vendo como estou, mas não quero. A qualquer momento a mamãe pode entrar aqui. A moça ainda disse, deixa de ser besta, a gente faz ligeiro.

Felizmente, nesse momento dramático e de alta tentação, sua mãe gritou, chamando-o, talvez temendo o que pudesse acontecer:

– Ei! Marcos, vem cá, vem ajudar a mudar este móvel para outro local.

 

O jovem, ainda afogueado, sentiu como se houvesse saltado uma fogueira, talvez a fogueira eterna do padre Alberto, em suas catilinárias sacras incandescentes, em que o perdão parecia não existir, em que a punição era infinitamente maior do que o pecado.