HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos foram sendo escritos.

 Capítulo II

 O DONO DO CÉU

 Elmar Carvalho

 

 

Marcos Azevedo cursava o terceiro ano ginasial no Liceu Eborense. Tinha certo pavor à matemática, e estudava apenas o suficiente para passar de ano. Entretanto, era um dos primeiros alunos em História, Geografia, Português, Literatura e outras disciplinas da área de Humanidades.

Ele e mais cinco colegas do Liceu idealizaram um jornal mural, que tinha colunas com notícias, informações sociais, artigos, crônicas, contos e poemas. Era um de seus principais colaboradores, sobretudo com matérias literárias. Eventualmente divulgava seus textos através de fotocópias e mimeógrafo. O Arauto, assim se chamava o jornal estudantil, dispunha de um talentoso desenhista e pintor, Mário Cunha, que lhe fazia as caricaturas, charges e ilustrações. Ele e Marcos eram grandes amigos.  

Por intermédio de seu pai, vez ou outra, publicava contos e crônicas no jornal tipográfico A Batalha, o único de Évora, na época. Escrevia seus textos à mão, com um emaranhado de correções, cortes e acréscimos, e depois os datilografava na velha Remington de seu pai. Por estudar à tarde, reservava a manhã para ler livros literários (muitos deles tomados por empréstimo de particulares e da biblioteca pública), bem como estudar e escrever.

Por volta das nove horas, saiu com o objetivo de se encontrar com seus amigos no Liceu, e trocarem as velhas matérias por novas, para que o jornal mural não perdesse a grande receptividade que tinha entre os alunos e professores do colégio e mesmo entre outras pessoas da cidade.

Ao passar pela Vila Inglesa, que tinha um grande terreno descampado na frente, viu uma linda garota loura, muito alva, de pele muito fina e sedosa, de olhos azuis. Ouvira falar que ela era uma neta do alto comerciante James Cavalcante Taylor, proprietário da Casa Britânica, a mais poderosa empresa do estado, com filiais em várias cidades do Brasil.

Marcos olhou para a jovem e lhe admirou as curvas e a beleza longilínea e esbelta; seus cabelos longos e dourados faiscavam à luz do sol, levemente agitados pela brisa que vinha do grande lago Galileia, situado perto. O rapaz, além de sua discreta timidez, ou por isso mesmo, cultivava certo retraimento orgulhoso, nos primeiros contatos. Mesmo assim olhou novamente para a ninfa, que lhe observava, a segurar sua nova e cara bicicleta, cheia de enfeites cromados e reluzentes. Seguiu adiante, sem apressar ou diminuir a velocidade.

Marcos não estranhou o olhar da moça, afinal era considerado um belo tipo de rapaz, moreno claro, de boa estatura e olhos esverdeados.

– Ei! Menino, venha cá – ouviu a garota chamá-lo, com uma inflexão que lhe pareceu levemente imperiosa. Foi até onde ela estava, com as suas roupas caras e a sua rica bicicleta. Notou-lhe certo desdém no semblante e o olhar incisivo de quem se considerava acima dos outros.

– Você sabe de quem é esta Vila? É do meu avô.

E vendo estampada a perplexidade nos olhos do rapaz, continuou de forma fria e com certa arrogância:

– Você sabe de quem é este terreno onde nós estamos e que vai até acolá?... – e estendeu o indicador, como se quisesse abarcar o mundo todo. É do meu avô.

Marcos ficou decepcionado com essa moça tão linda, mas tão tola em sua ridícula presunção. Mais do que decepcionado ficou aborrecido, e o sangue lhe subiu à cabeça. Ele não sabia, algumas vezes, se conter, especialmente quando achava que o seu amor próprio havia sido golpeado; e se tornava impulsivo, sem medir as consequências de seus atos ou palavras. Por isso, fixando nos olhos a bela ninfa dourada, de rosto angelical, disse com toda sua altivez e desprezo:

– E, por acaso, seu avô é também o dono deste céu que nos cobre e deste ar que respiramos?

Virou-lhe as costas, e sequer ouviu o seu arremedo de resposta. Seguiu firme, com os versos do poeta Carlos Pena Filho a lhe borbulharem na cabeça e na alma: “Deu-lhe o frio esquecimento. E mais não podia dar.” Contudo, não a esqueceu inteiramente, e aquela beleza de cachopa presumida e fútil ainda o perseguiria por muitos anos.