Há muito, muito tempo, o jornal o Observer, de Londres, lançou um concurso no qual competidores deveriam formular definições para a palavra “highbrow”, cuja acepção no dicionário corresponderia a uma “pessoa excessivamente intelectualizada”. Dois escritores ingleses entraram no páreo: Aldous Huxley (1894- 1963), o célebre autor de Admirável Novo Mundo e Gilbert Frankau (1884-19520), romancista e contista muito conhecido e autor, entre outros, dos romances Peter Jackson e Cigar Merchant. Ambos, diferentes intelectualmente em muitos aspectos, logo se posicionaram acerca do termo proposto.1
                     Aldous Huxley tomou a defesa do highbrowism – o que era de se esperar -, pois ele era um ilustre descendente de uma linhagem de intelectuais. Neto do famoso cientista Thomas Huxley. Seu tio-avô era Matthew Arnold. O pai foi editor da Cornhill Magazine. Sua tia, Humphrey Ward foi uma famosa romancista no tempo dela. O irmão de Aldous Huxley, Julian Huxley, foi um insigne biólogo. O próprio Aldous Huxley educou-se em Eton e Oxford. Huxley exerceu uma atividade intelectual múltipla, repartindo-se entre o jornalista, o dramaturgo, o crítico de música e arte, o ficcionista, o poeta, o ensaísta, o biógrafo. 
                     Gilbert Frankau foi um contista e romancista de muito talento. Suas estórias eram do tipo que fisgava a atenção do leitor até a última página. Mas, a crítica informa que esse autor não alimentava nenhuma veleidade literária. Huxley, entretanto, compunha romances altamente complexos, que não davam importância à fabulação, mas punham sua tônica na denúncia irônica às loucuras e defeitos do seu tempo. Sua literatura acentuava primordialmente a argúcia da inteligência, a seriedade moral e o desinteresse pelos padrões convencionais. Ficção avessa aos sentimentalismos, porém impregnada de conhecimentos e erudição.
                  Gilberto Frankau, ao contrário, foi um ficcionista que ia fundo na vivência e na experiência direta da vida, no conhecimento do homem comum. Era dessa matéria da realidade que construía seu universo ficcional.
                   Huxley fora o protótipo do intelectual complexo e sofisticado, distante das massas, senhor de gostos refinados, preferindo fruir não a sensualidade de uma bela mulher estampada nas revistas da época, porém o prazer estético das figuras produzidas pela pintura de um Rubens, de um El Greco, de um Constable, de um Seurat. No plano literário, na música, seu intelectualismo se voltava para as obras de Dostoiévski, a música de Beethoven, de preferência ao jazz ou às estórias meramente excitantes.
                   Todo o seu gosto artístico direcionava-se à esfera da altas elucubrações intelectuais, que para ele eram uma questão de gosto. Por isso, se definia: “ -- Sou um highbrow.”
Na sua discussão em defesa do highbrowism, menciona algumas preferências que não se coadunavam com os seus interesses: corridas de cavalo, jogos de futebol,.. A esses dois interesses prefere dedicar-se ao cultivo e aperfeiçoamento do conhecimento. Já a matança de animais por simples diversão o deixava tremendamente enojado e furioso de indignação.
Huxley, no entanto, não vê apenas a questão do gosto individual por algumas coisas. Entende que o debate se prende aos argumentos tendentes ao confronto de “padrões mais objetivos.”
                 Sendo assim, Huxley assinala que o antípoda do highbrowism, o lowbrowism, está sempre se insurgindo contra o que consideram ser a desumanização do highbrowism, ponderando que eles, os lowbrows2, é que afirmam expressar “admiravelmente” o sentimento do homem. Acham, portanto, que estão com a razão, principalmente porque alegam que formam um conjunto maior de adeptos.
                  No entanto, curiosamente Huxley observa que os highbrows são como os fariseus da parábola, que agradecem a Deus por serem diferentes dos outros e, ao contrário, fazem um retrato dos que lhes são adversários de forma muito menos lisonjeira do que Jonathan Swift (1667-1745) fez dos Yahoos.
                 Huxley nota que as críticas dos lowbvrows se tornaram tão virulentas que para eles a única forma de revide dos higbrows seria uma atitude de desprezo com ares de superioridade. O highbrowism, para Huxley se relaciona à virtude e ao caráter de bondade, ao passo que a ignorância e a grosseria de seus adversários ligam-se à maldade.
                 No parágrafo seguinte, Huxley afirma que as argumentações oferecidas pelos dois tipos de intelectuais se lhe parecem “fúteis” e cada “atitude emocional” dos dois lados se lhe afigura também “deplorável”. Um maior número de adeptos de uma visão não é evidência suficiente da validade de um conceito e, para tanto, cita o exemplo de que, em 1600, a Terra não era o centro do universo só porque a maioria então pensava que o fosse, nem o fato de que Ella Wheeler Wilcox(1850-1919), poeta americana de dicção sentimental, por ter mais leitores, seja melhor poeta do que Gerald Manly Hopkins (1844-1889),, cujo poema mais conhecido é “Pied Beauty”, segundo a crítica um poeta que se distinguia pela beleza sutil e original de pensamento e som.

                 Huxley não entende por que motivo os lowbrows reivindicam só para si o apanágio de humanidade. Por que razão, segundo ele, deveria ser “desumana” a distinção feita entre homens e animais e “humana” aquela que os homens compartilham com os “animais inferiores?”
Os highbrows argumentam que, ao contrário dos lowbrows, pelo fato de serem minoria eles estão com a razão. A maior ofensa cometida pelos highbrows é a de votarem desprezo pelos outros e manifestarem um sentimento de farisaísmo auto-complacente. Huxley ressalta que, no passado, os highbrows detinham sozinhos o poder da superioridade, ao passo que os lowbrows se resignavam à sua condição de inferioridade.
              Para Huxley, tempos depois, houve uma mudança. Os lowbrows manifestaram um comportamento semelhante aos highbrows. Valorizram-se e ainda mais valorizaram sua diferença. A idéia da mediania e da simplicidade ganha foros de legitimidade e grandeza, i.e., puseram-se em igualdade de condições singularizados pela diferença e até engrandecidos por uma certa forma mística em sua própria identidade comum. Essa nova postura acrescentou ainda uma nota dissonante à confusão contemporânea.
             O autor de Ponto Contraponto, em última análise, vê entre os dois grupos apenas uma diferença qualitativa, no entanto reconhece que, em alguns ângulos, a vida de um highbrow se afigura “mais intensa do que a de um lowbrow.
             Entre os highbrows, frisa Huxley, há uma variedade muito maior de aspectos, havendo ainda o fato de que o poder que detêm do conhecimento propicia uma maior racionalização dos fatos da experiência.
            Lembra que os lowbrows têm uma visão do mundo desconexa, enquanto que os highbrows, pelo conhecimento, conseguem a fusão desses acontecimentos isolados e, com isso conseguem dispor de um todo parcialmente inteligível.
            Lembra ainda que os highbrows são privilegiados já que a assimilação do valor artístico ´´e mais completa e dispõe de maior opulência graças ao seu refinamento e à sua complexidade.
Para o ensaísta a absorção de um maior refinamento artístico se faz superior em qualidade e engrandece muito superiormente a experiência. Passa a ter um caráter de profundidade, não de horizontalidade.
           Todavia, é inegável que ele encontra na sofisticação da inteligência uma vida mais plena ainda que sublinhe a circunstância de que uma vida menos plena não significa que seja melhor ou pior.
          Ao dignificar o conteúdo da vida de um highbrow pelo balizamento estético e científico, o ensaísta não tem dúvida de que ele seja muito mais enriquecedor e significativo. Por outro lado, nada garante a muita gente de boa formação a possibilidade de desfrutar de maiores prazeres mercê dos “processos e experiências” conducentes a uma vida “rica” e “significativa”, visto que elas bem podem usufruir de prazeres por “processos e experiências” derivados de uma existência menos rica e menos plena de sentido. 
          Tudo se resume, como ressalta o ensaísta, a uma questão de preferências e capacidades individuais.
          Pelas características já apontadas atrás, podemos facilmente deduzir como Gilbert Frankau reagiu diante das idéias discutidas por Huxley no tocante ao conceito de highbrowism. Ao se proclamar “Eu sou um lowbrow,” Frankau se opõe frontalmente a Huxley, que, pelo visto, encarna o protótipo do highbrowism.
A exposição de Frankau praticamente acompanha, pelo prisma da divergência contundente, cada afirmação huxleyana. O seu discurso é uma réplica ao intelectualismo do autor do Admirável Novo Mundo.
         O discurso contra-argumentativo de Frankau se incia por uma citação, de resto, irresistível, de um trecho poético de Rudyard Kipling (1865-1936), o qual, em última análise, equivale a um diálogo contrastivo com a cosmovisão huxleyana. O pequeno trecho poético de Kipling acentua um dado evidente – a valorização da vontade individual, um sentido de liberdade. Evidencia, ademais, um sentimento de comunhão humana, de liberdade de escolha, sem receio mesmo da ameaça de forças negativas ou de diretrizes de cunho cristão. Ao invocar o nome do Senhor, Kipling eleva às alturas o papel das pessoas como seres bem conscientes, situados nas duas pontas da existência,de sua finitude e fugacidade.
         Ironicamente, Frankau reforça que essas idéias são de Kipling, autor para quem a visão de cavaleiros galantes sobre ginetes caçando raposas a toda brida e arriscando suas vidas, não lhe causa nenhuma indignação extrema ou indiferente repulsa. O trecho poético de Kipling reafirma, em forma de prece, a repulsa por qualquer sentimento de orgulho – o Médio, o Alto, o Baixo, assim maiusculados, é uma maneira de permitir a aproximação fraterna. 
         Com a citação de Kipling, Frankau procura desconstruir o edifício ideológico huxleyano e primeiro o faz lamentando profundamente a sua posição e a de seus colegas highbrows, acrescentando que, ao se comportarem como o fazem, não avaliam o quanto de alegria estão perdendo. 
         Frankau, então, vai alinhando todos os pontos de discórdia entre ele e seu colega-ficcionista, assim resumidos nos seus aspectos principais:
- A vida de um highbrow não é mais plena do que a de um lowbrow.
- A mensagem desse tipo de intelectual considerada “significativa” (território de todo higbrow) – divisor de água de todos os highbrows – só lhe provoca consternação.
- As ”manifestações de vida” consubstanciadas nos “símbolos privados” com os quais os poetas protegem suas emoções pessoais.
- Huxley não pode se considerar melhor do que os lowbrows só porque encontra numa pintura de Rubens uma emoção muito superior a uma garota sex appeal de uma capa de revista ilustrada por Harrison Fischer.
- Não seria demonstração de virtude que um livro lido por Huxley seja mais divertido do que uma partida de bridge.
- Empregando mais de uma vez no seu texto expressões características de auto-inferioridade, discorda da assertiva de Huxley de que os seres humanos passam no mínimo metade de seu tempo de lazer discutindo sobre gostos.
- Pontuando ironicamente o repto a Huxley, rebate, ponto por ponto, o pensamento intelectualista do adversário e o faz ao longo de todo o seu ensaio.
- Utilizando-se de expressões de auto-inferioridade que não deixam de ser um forte e recorrente traço de ironia, tais como “organismos presumivelme inferiores,” “mente essencialmente lowbrow”,”nós lowbrows,” “humilde lowbrow”, em vez de rebaixarem, elevam a qualidade do nível de seu próprio intelectualismo.
            Frankau não rejeita o valor do conhecimento científico e do conhecimento da chamada arte erudita. Tampouco renega o conhecimento oriundo de outras áreas consideradas inferiores.
Note-se que, citando o trecho de Kipling, o ensaísta demonstra que à valorização hipertrofiada da ciência e do conhecimento huxleyano, ele contrapõe a exaltação da convivência de nosso semelhantes.
           Além disso, toda a argumentação de Frankau reveste-se de uma enganosa aparência de mediania do espírito. A defesa de sua posição não é mais do que uma questão de opção por determinados aspectos da vida cultural e de preferências antiintelectualistas. O seu horror dirigir-se-ia com certeza à presunção e à fatuidade dos highbrows. Tanto é verdade que o texto dele está permeado de alusões literárias e de evidências de um escritor sintonizado com a cultura letrada.
           Ao dizer que a maior parte do seu dia e daqueles de sua espécie se gasta no trabalho árduo – e aqui se pode indiciar uma metáfora para a atividade do espírito -, ele está apenas asseverando que o tempo dolazer, entendido como entretenimento simples e corriqueiro, não possui outra função senão a de relaxar a mente e o corpo.
          Frankau de modo algum se põe contra as preferências intelectuais de Huxley ilustradas pelas leituras de romances russo e da fruição da música de Beethoven. O grande erro de Huxley para ele é a intromissão nas preferências não-eruditas pelo jazz e por estórias policiais.
         O que ele reprova com veemência é o caráter marcadamente elitista de Huxley que não entende serem as preferências pelas coisas mais humildes tão ou mais abrangentes do que as do autor de Ponto Contraponto.
          Frankau discorda das pretensões de Huxley quando este alega que sua experiência é mais ampla e que, por vivermos num mundo constituído de acontecimentos “isolados e desconexos,” somente o conhecimento é capaz de fundi-los num todo no mínimo parcialmente inteligível. Daí utilizar-se de uma citação de um apóstolo: “Conhecimento em demasia leva à demência”.
Afirma o ensaísta que não se pode exagerar as nossas crenças com base no saber, pois este somente tem funcionalidade na medida em que atende à nossa profissão ou ofício particular. A vida – assinala ele -, não passa de uma questão de trabalho e jogo. E conclui; “... em quase cada dificuldade, a consciência e o senso comum se tornam a nossa mais segura orientação.
          O ensaísta - repito -, não abjura a ciência verdadeira “que lida com os fenômenos materiais”. Invoca uma citação de um falecido satírico sem nomeá-lo, que diz; “... toda Arte prestar-se-ia à inutilidade a menos que transmitisse a complexidade de sua experiência por meio de palavras simples, sons simples e pinceladas simples.”
          Aí, de acordo com Frankau, residiria o grande impasse entre highbrows e lowbrows, e dá um exemplo. O lowbrow diria: “Seja claro.” O highbrow: “É claro, a menos que você seja um imbecil.” Isso é que para Frankau seria puro esnobismo. 
          Entretanto, o ensaísta não deixa de reconhecer que o esnobismo, o complexo de superioridade podem, infelizmente, conviver com o lowbrowism. Estende, então, sua crítica até os limites de seu grupo, ilustrando com alguns exemplos. Qualquer homem que exerça um ofício ou trabalho pode se dar a esse pedantismo inócuo. Um bom operário não está isento de um leve complexo de superioridade, assim como um mecânico de motor qu, no trabalho, faz questão de envolvê-lo de um certo mistério para não-iniciados. Da mesma sorte, um cirurgião operando, ou um advogado defendendo uma causa.
         E, agora, afastando-se de sua ironia mais explícita, se interroga como se intentasse modelizar sua réplica: “Por que não deveria o autor de obras admiráveis como Ponto Contraponto e Admirável Novo Mundo se dar ao luxo do complexo de superioridade?”
      Com falsa modéstia, Frankau revigora seu elogio a Huxley, mas ao mesmo tempo sustenta sua posição central ao afirmar que o romancista famoso muito ganharia caso pudesse se entusiasmar com a “multidão ensurdecedora num divertido final de uma Copa de Futebol.”.
        No entanto, declara ser bem provável que Huxley sinta um secreto desejo de compartilhar do momento em que um homem de negócios, extenuado, vai encontrar uma forma de relaxamento no tranqüilo e lúdico exercício de palavras cruzadas.
No entanto, o ponto alto de sua réplica a Huxley me parece esta bela, profunda e filosófica conclusão: “Todas as alturas são solitárias.”
        Para finalizar, o ensaísta se permite uma divagação sondando o interior de Huxley. O grande highbrow não sentiria por vezes entre a frieza e a gelidez de seus hábitos o acicate de se embrenhar na companhia calorosa, por exemplo, daquele tipo de pessoa que lhe vai colher um morango, ou de ler poesia desde que seu poeta genuíno fizesse poemas para aquela gente modesta “em estilo simples sobre coisas singelas que elas bem conhecem e amam?"

NOTAS:
1 Na preparação desta síntese comparativa, utilizei-me da seguinte fonte: ECKERSLEY, C.E. Brighter English. Revised edition. London: Longmans, 1964. O texto de Aldous Huxley tem por título “I am a highbrow”, p. 206-210; o de Gilbert Frankau tem por titulo “I am a lowbrow”, p. 213-217. Ambos se encontram na seção Essays, p. 193-222.

2 “Lowbrow” refere-se às pessoas sem nenhuma ligação ou interesse com idéias sérias no planos artístico ou cultural. É óbvio que, no texto de Frankau, o termo conota-se de auto-ironia quando aplicado ao próprio escritor, mas não  quando dirigido às pessoas simples.