Por que há simplesmente o ente (1) e não antes o Nada? Eis a questão. Certamente não se trata de uma questão qualquer. “Por que há simplesmente o ente e não antes o Nada?” - essa é evidentemente a primeira de todas as questões. A primeira, sem dúvida, não na ordem da seqüência cronológica das questões. Em sua caminhada histórica através do tempo o homem e os povos investigam muito. Pesquisam e procuram e examinam muitas coisas antes de se depararem com a questão, “Por que há simplesmente o ente e não antes o Nada?” Muitos nunca a encontram, não no sentido de a lerem e ouvirem formulada, mas no sentido de investigarem a questão, i.e, de a levantarem, de a colocarem, de se porem no estado da questão.
E não obstante todos são atingidos uma vez ou outra, talvez mesmo de quando em vez, por sua fôrça secreta, sem saberem ao certo, o que lhes acontece. Assim num grande desespero, quando todo peso parece desaparecer das coisas e se obscurece todo sentido, surge a questão. Talvez apenas insinuada, como uma badalada surda, que ecoa na existência (2) e aos poucos de novo se esboroa. Assim num júbilo da alma, quando as coisas se transfiguram e nos parecem rodear pela primeira vez, como se antes nos fosse possível perceber-lhes a ausência do que a presença e essência. Assim numa monotonia, quando igualmente distamos de júbilo e desespero e a banalidade do ente estende um vazio, onde se nos afigura indiferente, se há o ente ou se não há, o que faz ecoar de forma especial a questão: Por que há simplesmente o ente e não antes o Nada?
Em todo caso, quer seja mesmo investigada ou quer, ignorada como questão, perpasse pela existência como um hálito tênue, quer nos pressione mais duramente ou quer se veja preterida e recalcada por qualquer pretexto, de fato nunca é a questão que na ordem cronológica investigamos por primeiro.
Mas é a primeira questão em outro sentido - a saber quanto à dignidade. O que se explica de três modos. A questão, “por que há simplesmente o ente e não antes o Nada?”, se constitui para nós na primeira em dignidade antes de tudo por ser a mais vasta, depois por ser a mais profunda e afinal por ser a mais originária das questões.
A questão cobre o máximo de envergadura. Não se detém em nenhum ente de qualquer espécie. Abrange todo ente, i. e, não só o ente atual no sentido mais amplo, como também o ente, que já foi e o que ainda será. O arco da questão encontra seus limites apenas no que absolutamente nunca pode ser, no Nada. Tudo, que não for nada, cai sob seu alcance, no fim até mesmo o próprio Nada. Não certamente por ser alguma coisa, um ente, de vez que dele falamos, mas por “ser” o Nada. É tão vasto o âmbito da questão, que nunca o poderemos ultrapassar. Não investigamos esse ou aquele nem mesmo, percorrendo um por um, todos os entes, mas antecipadamente o ente todo, ou como dizemos, por razões a serem discutidas ainda, o ente como tal na totalidade.
Com ser assim a mais vasta, a questão é ainda a mais profunda: “Por que há simplesmente o ente...? “ “Por que” significa, qual é o fundo? De que fundo provém o ente? Em que fundo descansa o ente? A questão não investiga isso ou aquilo no ente, o que ele é cada vez, aqui ou ali, como é constituído, pelo que pode ser modificado, para que serve etc... Ela procura o fundo do ente enquanto ente. Procurar o fundo, isso é aprofundar. O que se põe em questão, entra assim numa referência com o fundo. sendo, porém, uma questão, fica aberto, se o fundo (Grund) é um fundamento originário (Ur-grund), verdadeiramente fundante, que produz fundação; ou se ele nega qualquer fundação e é assim um abismo (Ab-grund); ou se o fundo não é nem uma nem outra coisa, mas dá simplesmente uma aparência, talvez necessária, de fundação, tornando-se destarte um simulacro de fundamento (Un-grund). Como quer que seja, procura-se decidir a questão no fundo, que dá fundamento para o ente ser, como tal, o ente que é. Essa questão do “por quê” não procura causas de igual espécie e do mesmo plano que o ente. Não se move em nenhuma fácie ou superfície. Afunda-se nas regiões profundas e vai até os últimos limites dos fundos. É avessa a toda superfície e planura, voltada para as profundezas. A mais vasta, é igualmente a mais profunda das questões profundas.
Por ser a mais vasta e profunda das questões, é também a mais originária. O que se deve entender por isso? Ao refletirmos sobre todo o âmbito do que se põe em questão, o ente como tal no seu todo, depara-se-nos fàcilmente o seguinte: Afastamo-nos inteiramente de qualquer ente particular, enquanto este ou aquele. Intencionamos sim o ente em seu todo mas sem qualquer preferência. Apenas um dentre eles sempre de novo se insinua estranhamente: o homem, que investiga a questão. Não obstante, não está em questão nenhum ente particular. No sentido de seu raio ilimitado de ação Lodos os entes se equivalem. Um elefante numa floresta virgem da Índia é tão bem um ente, quanto um fenômeno de combustão química no planeta Marte ou qualquer coisa outra.
Para satisfazermos, portanto, a questão, “Por que há simplesmente o ente e não antes o Nada?”, no sentido correto de sua investigação, devemos eliminar a preferência de qualquer ente em particular, inclusive a referência ao homem. Pois o que é esse ente! Imaginemos a terra na imensidão obscura do espaço no universo. Proporcionalmente não passa de um minúsculo grão de areia com um quilômetro de extensão, e o resto é o vácuo Em sua superfície vive rastejando em profusão um punhado entorpecido de animais pretensamente astutos, que por um instante descobriram o conhecimento (Cfr. Nietzsche, Sobre a Verdade e a Mentira no sentido extra-moral, 1873 inédito). E o que significa o espaço de tempo de uma vida humana no curso de milhões de anos? Mal uma pulsação do ponteiro de segundos, um sopro de respiração. Dentro da totalidade do ente não há razão para se privilegiar este ente, que se chama homem e ao qual pertencemos por acaso.
Mas tão logo o ente em seu todo cai no campo de força da questão, investe-o a investigação, com a qual entra numa relação sui generis, porque única. Pois somente nela o ente em seu todo se revela como tal, se abre na direção de seu possível fundamento e assim se mantém em questão. Para ele a investigação não é um fenômeno qualquer dentro do real, como p . e. a queda dos pingos de chuva. A questão do “por quê” defronta-se por assim dizer, com o ente no seu todo. Dele como que se desliga, embora não de todo. E é justamente o que lhe confere uma distinção. Ao defrontar-se com o ente no seu todo, sem, todavia, se lhe poder escapar de todo, repercute o que na questão se investiga, sobre a própria investigação. Por que o por quê? Em que se funda a questão do por quê, que pretende pôr o ente no todo em seu próprio fundo. Será ainda esse “por que” uma questão sobre o fundo entendido, como superfície, de sorte que sempre se procura um ente para fundamento? Não é essa “primeira” questão a primeira em dignidade, considerada segundo o valor intrínseco da questão do Ser (3) e suas modalidades.
Sem dúvida alguma — quer se ponha a questão, “Por que há simplesmente o ente e não antes o Nada?”, quer não, em nada se altera o ente em si mesmo. Também sem ela os planetas continuam a percorrer as suas órbitas. Também sem ela o elã da vida continua a pulsar através dos animais e das plantas.
Se, porem, for posta de maneira devida, dar-se-á necessariamente uma repercussão, do que se investiga, sobre a própria investigação. Por isso não se investiga, sobre a própria investigação. Por isso não se trata de um fenômeno qualquer mas de um evento especial, que chamamos um acontecimento.
Como todas as demais questões nela diretamente radica das, nas quais se desenvolve, a questão do “por quê” é irredutível a qualquer outra. Impele ã procura de seu próprio por quê. A primeira vista e considerada de um ponto externo, a questão “por que o por quê? assemelha-se a uma repetição jocosa, que se poderia repetir até ao infinito, da mesma partícula interrogativa. Parece mesmo uma especulação vazia e desvairada sobre significações verbais sem conteúdo. Certamente assim o parece. Trata-se apenas de saber, se nos deixaremos enganar por essa aparência demasiado fácil, dando logo tudo por resolvido, ou se ainda seremos capazes de experimentar na repercussão da questão do “por quê” sobre si mesma um acontecimento provocante.
No caso, porém, de não sermos vitimas de uma ilusão de ótica, havemos de ver, que a questão do “por quê” na qualidade de questão sobre o ente como tal no seu todo, nada tem a ver com qualquer jogo de palavras. Suposto, ainda possuirmos tanta fôrça de espírito para realizarmos verdadeiramente a repercussão sobre seu próprio por quê. Pois tal repercussão não se fará certamente por si mesma. Então faremos a experiência de fundar-se essa questão eminente num salto. No salto, em que se deixa para trás (4) toda e qualquer segurança da existência seja verdadeira ou presumida. Sua investigação ou se concretiza no salto e como salto ou não se realiza nunca. O que significa aqui “salto”, esclarecer-se-á mais adiante. A questão não é o salto. Nele se deve transformar. Ela ainda se acha inocentemente ‘defronte do ente. Por ora basta saber, que o salto dá origem (er-springt) ao próprio fundamento da investigação. Saltando, ela origina para si o fundo, em que se funda. Um tal salto, que origina para si seu próprio fundamento, denominamos, de acordo com a significação verdadeira da palavra, um salto originário. (5) Ora, uma vez que a questão, “por que há simplesmente o ente e não antes o Nada?” dá origem ao fundamento de toda questão verdadeira e lhe é, nesse sentido, originária, deve-se reconhecê-la, como a mais originária das questões.
Assim, com o ser a mais vasta e profunda questão, é também a mais originária e vice-versa.
[Introdução à metafísica. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969.]