(Miguel Carqueija)


O que acontece quando a Chapeuzinho Vermelho enfrenta o Lobo Mau

HAYLEY STARK, A FATÍDICA HEROÍNA DE “HARD CANDY” (MENINAMA.COM)




O título posto no Brasil — “Meninama.com” — não faz justiça à nobreza e ao heroísmo de Hayley Stark, neste que é um dos filmes mais perfeitos dos últimos anos.


“Eu sou todas as meninas que você abusou, machucou, violentou e matou.”
(Hayley Stark)


ATENÇÃO: HÁ “SPOILERS” (revelações sobre o enredo)

    De um modo geral, só gosto mesmo do cinema de arte. Sejam obras como “Pollyanna”, “A bela adormecida” e “As três vidas de Thomasina”, de Walt Disney; “O corvo”, “O castelo assombrado” e “Profeta”, de Roger Corman; “La zanzara”, de Rita Pavone; “A fantástica fábrica de chocolates”, de David L. Wolper; “Nausicaa do Vale do Vento” e “Meu vizinho Totoro”, de Hayao Miyazaki; “E o vento levou”, de David O. Selznick; “Rapsódia em agosto”, de Akira Kurosawa; “Cidadão Kane”, de Orson Welles; “Metrópolis”, de Ozamu Tezuka; “Mundo sem sol”, de Jacques Cousteau; “Abençoai as feras e as crianças” e “Os 5.000 dedos do Dr. T”, de Stanley Kramer; “O abismo negro”, de Ron Miller; “O iluminado” e “Barry Lyndon”, de Stanley Kubrick; ou a franquia “Harry Potter”, de J.K. Rowling; não sendo cinema de arte, posso até assistir, mas não dou muita importância.
    O cinema hollywoodiano das últimas três décadas é essencialmente lixo; daí a minha surpresa diante de uma obra tão densa, enxuta e envolvente como “Hard candy” (Doce amargo), de 2005, dirigida por David Slade e estrelada por Ellen Page, no papel de Hayley Stark (numa das interpretações mais espetaculares que eu já vi), e Patrick Wilson como o fotógrafo abusador, Jeff Kohlver. O roteiro é assinado por Brian Nelson, que também é um dos produtores — aliás, como vem ocorrendo nas últimas décadas em Hollywood, há um excesso de produtores. A película é da Vulcan — que parece ser uma empresa recente e pequena. Pesquisando, descobri que na verdade é um filme independente, de realizador britânico e co-produção americana e canadense.
    Quase não existe elenco, neste filme claustrofóbico e marcado pela cor vermelha — até a genial abertura geométrica dá a entender esses detalhes. Os outros nomes do elenco são Sandra Oh e Jennifer Holmes, com pequenas atuações.
    Ellen Page domina do princípio ao fim, no papel da misteriosa Hayley Stark (nome provavelmente falso), de 14 anos, espécie de nova versão da Capuchinho Vermelho ou Chapeuzinho Vermelho — uma Chapeuzinho que sabe se defender do Lobo Mau. A menina, aliás, utiliza mesmo um casaco vermelho com capuz.
          Percorre o filme inteiro uma tensa atmosfera que beira o nível fantástico. O mistério que cerca a justiceira adolescente permanece até o fim, gerando um sem-número de perguntas e questionamentos. Afinal, quem é a menina? De onde ela vem? Como ela sabe de tanta coisa? De onde ela tira a coragem e a auto-confiança, a ponto de ir ao encontro de um pedófilo estuprador e assassino, deixar-se levar à sua residência, sozinha, sem testemunhas? Lá ela o droga e o amarra, começando então a espantosa sessão de torturas físicas e psicológicas. Passo a passo, implacavelmente e com notável inteligência, impecável frieza e imperturbável lógica, ela demole uma por uma todas as desculpas, todas as mentiras, todas as empulhações do criminoso, deixando a nu toda a baixeza, toda a abjeção que ele representa: um monstro infame e desprezível. Hayley revira toda a casa do molestador e acaba descobrindo o esconderijo do seu “tesouro secreto”, onde estão guardadas as provas fotográficas de seus crimes, que vão além do simples cultivo de pornografia. Com todas as mentiras desmascaradas, jogadas por terra, o fotógrafo Jeff Kohlver terá de admitir tudo, inclusive o assassinato, com um cúmplice (de quem ela já havia cuidado...) da desaparecida adolescente Dona Mauer.
    Toda a história flui como uma sinfonia, como é próprio do cinema de arte. Não é uma história de violência, mas de justiça, perpassado por uma atmosfera quase sobrenatural. Em tese, a menina justiceira pode até ser um “anjo da vingança” enviado à Terra com a missão de punir pervertidos. O final é mais misterioso que o início. Entretanto, causa admiração a nobreza com que a fita é conduzida, sem linguagem chula, sem cenas vulgares. Através do longo duelo-diálogo entre os dois personagens, patenteia-se a sabedoria da garota em contraste com a podridão moral e a hipocrisia do abusador. A tensão dramática é quase insuportável, com destaque para as cenas em que Jeff se liberta e ameaça a vida da menina — que, porém, o enfrenta com galhardia e astúcia — e a impressionante sequência da castração.
    A maneira como as cenas mudam, com o apagamento total da tela, dá um toque sui-generis à produção. As duas lutas corporais são mostradas com um efeito vertiginoso, são tomadas espetaculares. A música e a fotografia são também excelentes. Em tudo e por tudo, mas principalmente pela mensagem moral, “Hard candy” é um filme sensacional e memorável, dominado pela interpretação avassaladora da jovem atriz Ellen Page.